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1.2 Ônibus versus Bondes

1.2.2 Expectativas e fim dos bondes

Passado esse momento de instabilidade, a convivência entre as companhias de bondes e ônibus tornou-se mais tranquila. Mesmo assim, ambos os transportes coletivos continuavam sendo um assunto de destaque na imprensa local e entre os moradores da cidade. Quais seriam então as expectativas da população em relação a esses veículos?

No final da década de 1930, o jornal O Povo lançou uma coluna para discutir com os fortalezenses os problemas citadinos. “Uma enquete urbana”, como foi chamada, propunha que os leitores do periódico respondessem a seguinte questão: “Se o senhor [ou senhora] fosse nomeado prefeito de Fortaleza, quais seriam as suas cinco principais cogitações administrativas?”165 Vale ressaltar que o uso da palavra “nomeado” em vez de “eleito” não

era sem razão. Expressa bem o momento que se vivia no campo político com a ascensão do Estado Novo. Apesar do breve período de existência da coluna – a duração foi de pouco mais de um mês –, os comentários publicados explicitam alguns anseios da população em relação à cidade naquele período.

Temas como construção de açougues e de um estádio, iluminação de ruas, embelezamento de praças, entre outros, fizeram parte de “Uma enquete urbana”. Entre os assuntos mais recorrentes estavam a pavimentação das ruas e a melhoria dos transportes coletivos. Em média, das quatro opiniões diárias expostas no jornal, pelo menos uma delas versava sobre tais temas.

A Light e os seus bondes eram os principais alvos. De modo geral, apresentavam- como os principais desejos dos participantes em relação aos veículos da empresa inglesa: a anulação do contrato com a Light, a retirada dos bondes da Praça do Ferreira e a expansão dos veículos pela cidade. Apesar de parecer contraditório, os desejos estavam bastante interligados. Por exemplo, alguns dos leitores que queriam a retirada dos bondes da Praça do Ferreira também chegavam a dizer, na mesma publicação, que, se fossem prefeitos, iriam

165 O Povo, 16 fev. 1939.

aumentar o número de veículos e a expandir as linhas dos transportes da Light para o subúrbio de Fortaleza.

Mesmo com essas contradições, as pessoas que queriam o fim do acordo entre a administração municipal e a Light argumentavam que a retirada total dos bondes deveria acontecer porque “os seus serviços não condiz[iam] com o progresso da cidade, precisa[va]-se de transportes rápidos”.166 E quais seriam esses veículos rápidos? Os ônibus. Aqueles que

queriam retirar tramways do “coração” da cidade também demonstravam um pensamento similar: “deteria as atuais linhas de bondes, pelo menos 5 quarteirões da Praça do Ferreira – [a tendência moderna é substituir os bondes pelos ônibus]”.167

Importante observar que, enquanto se propunha o deslocamento dos bondes para áreas periféricas da cidade ou a sua retirada total, questionava-se a transferência dos pontos ônibus para outras regiões do Centro que não fosse a Praça do Ferreira. Ao longo das décadas de 1930 e 1940, a administração municipal fez inúmeras tentativas de retirada dos ônibus do “Coração da Cidade”, todas envoltas em reclamações de usuários e donos das empresas de transporte. Ao que parece, no âmbito dos transportes coletivos, os veículos da firma inglesa tornavam-se cada vez mais secundários.

Esses leitores expressam um desejo em fortalecer os transportes automotores em Fortaleza. E o interesse na pavimentação das vias só reforçava essa tese. Mas, apesar de algumas pessoas não concordarem, os bondes elétricos não estavam completamente descartados desse projeto de cidade. Os veículos da Light deveriam sair do ponto principal do Centro, mas a sua presença seria bem-vinda nos bairros mais afastados da área central, tais como a Porangaba, a Barra do Ceará e o Morro da Balança.168 Conforme a cidade aumentava

suas fronteiras, a necessidade por transportes também crescia, o que se tornou um problema ainda maior na década de 1940.

Nesse momento, os transportes de Fortaleza viviam em meio a uma crise. No caso dos ônibus, como a gasolina estava escassa, os veículos tiveram que usar como combustível o gasogênio, produzido pela combustão de carvão. Já os bondes enfrentavam dificuldade de renovação do seu material. A Light estava com problemas não só em relação aos seus veículos, mas também no que se referia à produção e à distribuição de eletricidade.169

O transporte de ônibus já não era uma novidade nesse momento. Tanto é que os serviços das empresas também foram alvos de críticas na imprensa local. Como visto no

166 O Povo, 25 fev. 1939. 167 O Povo, 3 mar. 1939. 168 O Povo, 11 mar. 1939. 169 MENEZES, 2009, p. 22.

tópico anterior, os veículos foram considerados desconfortáveis, sujos e sem padrão. Mesmo com todos os defeitos, os ônibus não superavam a precariedade do serviço de bondes.

A Light continua a ser um triste assunto para os que amam a cidade. Na verdade, ela não tem passado de um trambolho, que teima em estorvar o nosso progresso, com os seus ridículos calhambeques modelo 1914. [...] “Não há quem desconheça as deficiências dos serviços da Light. A falta de pontualidade no horário dos bondes, a imundicie dos seus carros, o barulho infernal de ferro velho que eles deixam pelas ruas, a espera incômoda dos desvios e, sobretudo, os incêndios que por último vêm pondo em perigo a própria segurança física dos passageiros, constituem aspectos por onde se pode analisar com cuidado o que tem sido a contribuição daquela companhia ao progresso de nossa terra”.170

Os bondes que anteriormente eram símbolo do progresso, a partir de então, representavam o atraso. Parecia inadmissível que os veículos de 1914 ainda estivessem circulando pela cidade, não oferecendo qualquer segurança aos seus passageiros. Os riscos iam dos mais simples, como rasgar a roupa em um parafuso mal encaixado, aos mais complexos, como presenciar frequentemente curtos-circuitos ou incêndios nos veículos. O barulho e a lentidão também se tornaram características marcantes dos bondes da Light. Era o ruído e a lerdeza do atraso e não mais do moderno.

Sem muita perspectiva de mudança, os pedidos pela retirada da Light ganharam mais força em meados dos anos 1940. Além da precariedade dos serviços, argumentava-se que a companhia não cumpriu as promessas estabelecidas no “acordo de 1939”. Nesse ano, a Light entrou em negociação com o poder público a fim de majorar o preço das passagens de bondes. A prefeitura aceitou, mas, em troca, exigiu da firma o cumprimento de algumas obrigações, tais como “Modificação do tráfego dos bondes da praça do Ferreira, conforme o “croquis” aprovado pela Prefeitura, obrigando-se esta a adotar igual medida quanto aos ônibus – 24 meses”; “[...] Reforma de 11 bondes, de 30 para 44 passageiros, sendo 8 bondes em cada 3 meses – 18 meses”; “Prolongamento da linha de alta tensão, para luz e força, até Mucuripe – 9 meses”. Além disso, a companhia era obrigada a “MANTER EM TRÁFEGO, BONDES EM NÚMERO SUFICIENTE A ATENDER AS NECESSIDADES DO PÚBLICO [...]” e servir “COM LINHAS DE ÔNIBUS três (3) pontos da cidade ligados ao centro por ruas que tenham pavimentação adequada, nos quais TERÁ EXCLUSIVIDADE desde que antes do início do serviço não se apresentem particulares que se proponham fazer o mesmo tráfego. [...]”. A intenção era levar eletricidade para lugares mais distantes como o bairro do

Mucuripe, melhorar o transporte de bondes e expandir o serviço de ônibus, mas as promessas não foram cumpridas. Como disse um leitor do jornal Correio do Ceará, eram “belas promessas, ‘para inglês vêr’ mas que os Cearenses não viram nenhuma delas”.171

Diante da grave crise em que se encontravam, os dirigentes da Light novamente prometeram melhorar os seus serviços. “O gerente da companhia declarou-nos que o primeiro navio que chegar da Inglaterra trará o material para consertos, pedido há anos. 53 bondes poderão voltar a transportar a população”.172 Poucos meses depois, no entanto, os bondes da

Light deixaram de circular definitivamente pela cidade.

Após tantas disputas entre as empresas de bondes e ônibus, os últimos permanecem em Fortaleza até os dias de hoje. Mas, antes mesmo de os ônibus começarem a circular pelas ruas, outros transportes já trafegavam pelas vias da cidade, era o caso das carroças, dos alimárias e bicicletas. Veremos a seguir como se deu a convivência desses diferentes veículos na cidade.