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Experiência e Ceticismo amadurecido: sobre a negatividade na Fenomenologia do espírito

Experiência e dialética: desenvolvimento e transformação do conceito de Experiência em Dialética

2.2. Experiência e negatividade: mediação e o trabalho do negativo

2.2.2. Experiência e Ceticismo amadurecido: sobre a negatividade na Fenomenologia do espírito

A experiência conduziria com sua negatividade a consciência natural à dúvida. Segundo este movimento, “a consciência natural vai mostrar-se” imediatamente “como sendo apenas conceito de saber, ou saber não real”150. Em sua determinação imediata

como saber real a consciência acaba por constituir uma “significação negativa”, pois sua efetivação é a própria perda da sua verdade imediata. Ela assim perde-se a si mesma a cada momento que se torna efetiva ou torna-se verdadeira, pois perde o que, de fato, tinha por verdade, mas mostra ser seu oposto, o inessencial ou não-verdadeiro. Este ceticismo imanente à consciência natural é o motor do próprio movimento fenomenológico-dialético, que, em Hegel, é definido como um ceticismo amadurecido151. Analisando este caminho da dúvida, vemos então a relação crítica e o confronto com o ceticismo moderno, além da filosofia moderna, em particular da filosofia cartesiana.

Para Hegel, a dúvida é a característica inaugural da filosofia moderna, em Descartes, utilizada para cindir, o que era puramente subjetivo, no caso o cogito, do que era objetivo. Esta dúvida está contida na filosofia cartesiana como idéia metodológica que marca a inflexão histórica do pensamento filosófico moderno. Nas Meditações, Descartes caracteriza a dúvida como processo constitutivo do cogito. Partindo de uma transcendental e o plano fenomênico. Ver. HEGEL, G.W.F. Como o senso comum compreende a filosofia. Tr. br.: Eloísa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994, pp.125 ss

150 F.e. I, p.66 ( p.72)

151 O ceticismo amadurecido não é uma figura determinada da Fenomenologia do espírito, para

evitar conflitos entre a figura do ceticismo na autoconsciencia e o metodo cético efetivo que marca toda obra. O ceticismo amaburecido não se reduz ou se soluciona na dita figura da autoconsciencia. Trata-se, no entanto, de um método apresetativo dialético-especulativo que engloba todo obra , em seu desenvolvimento total.

relação entre sujeito-objeto, o cogito coloca-se em dúvida frente ao que não reconhece precisamente como “claro e distinto”. Em tal movimento, a dúvida nega assim gradativamente o objeto e concomitantemente positiva o cogito. Nesta relação de negação representada nas Meditações, a dúvida sobre conhecimentos objetivos acaba por realizar uma diferenciação entre sujeito e objeto, que marca fundamentalmente a modernidade, promovendo uma “redução epistemológica” do objeto ao sujeito152. Por

isso, mantém uma perspectiva “subjetiva”, a partir de uma ordenação epistêmica.

Conforme Hegel, na dúvida cartesiana as verdades recebidas não conseguiriam estabelecer-se como universais, pois, em todo caso, esta dúvida implicaria apenas as verdades particulares, não atingindo a verdade mesma. Isto se deveria também à não significação temporal do objeto negado na dúvida, pois este permaneceria imutável, ou seja, após a dúvida permanece o mesmo. Assim a dúvida cartesiana tem um sentido clássico, de uma negação que ao se negar torna-se o mesmo indiferenciado. Tal sentido clássico da dúvida é definido por Hegel como “um vacilar nessa ou naquela pretensa verdade, seguido de um conveniente desvanecer-de-novo [Wiederverschwinden] da dúvida e um regresso àquela verdade, de forma que, no fim a coisa seja tomada como era antes”153. Pelo contrário, para Hegel, a dúvida, ao negar,

modifica profundamente não só a coisa, como também o próprio sujeito, pois modifica toda uma cosmovisão da própria consciência da coisa. Assim podemos dizer que incide tanto sobre o objeto quanto sobre o próprio sujeito, ou seja, ambos devem transformar- se, constituindo-se mutuamente.

152 Na interpretação da dúvida metafísica proposta por E. Forlin, torna-se bastante elucidativa

uma possível relação, tanto de semelhança, quanto de diferença, entre a atividade da dúvida na Fenomenologia do espírito e nas Meditações de Descartes; na constituição da autoconsciência, no caso da Fenomenologia do espírito, ou do cogito, no caso das Meditações. Cf. FORLIN, E. O papel da dúvida metafísica no processo de constituição do cogito. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004, pp.45, nota: 59: “Este é o percurso que mais tarde Hegel irá refazer aos moldes de sua dialética. Na história da formação da consciência, descrita na Fenomenologia do espírito, há um movimento onde, inicialmente, a consciência parte das ‘certeza sensível’ e alcança a consciência-de-si. A diferença é que, enquanto ali se tratava de uma gênese dialética do sujeito e do objeto, em Descartes é antes uma redução do objeto que resulta na posição do sujeito. De qualquer forma, há tanto em Hegel, quanto em Descartes, um progressivo desvelamento das mediações que estruturam a experiência que o sujeito faz do objeto”. 153

Em Hegel, a dúvida se expõe não como dúvida abstrata cética em seu sentido moderno, porém como momento da negatividade da experiência da consciência em seu movimento. Com efeito, não se tratando de um “temor do erro”, como para os modernos, em especial a partir da dúvida cartesiana e sua dicotomia sujeito-objeto, como busca do certo e evidente do cogito. Isto seria, para Hegel, o próprio “temor à verdade”, mas é a própria consciência que põe em dúvida não só seu saber do objeto, mas sua visão de mundo, suas convicções, sendo mais que uma dúvida (Zweifel) torna- se assim um desespero (Verzweilflung).154

Com isto, a consciência natural não põe em dúvida somente o conhecimento de seu objeto, mas antes a si mesma, ela se perde na dúvida. Este movimento próprio do saber, que vai da “consciência natural”, enquanto saber ainda sem realidade, cuja realização é o perder-se de si, até atingir o saber efetivo ou absoluto, necessariamente passa em cada grau de determinação da consciência, até alcançar a totalidade das figuras da consciência, através da negatividade de um “ceticismo amadurecido”155. Ao

invés de se fixar, como “ceticismo” moderno, na unilateralidade das determinações abstratas do entendimento, como na sensibilidade e na representação, e caindo, com isto, no abismo vazio, pois “ceticismo que termina com a abstração do nada ou do esvaziamento não pode ir além disso, mas tem de esperar que algo de novo se lhe apresente – e que novo seja esse – para jogá-lo no abismo vazio”156. Para Hegel, o

movimento de negatividade cética é realizado pela própria consciência que se vê como

154 Como ressalta Hyppolite, “esse caminho não é somente o da dúvida, mas também, nos diz

Hegel, aquela da dúvida desesperada [Verzweiflung]. A experiência não conduz somente ao saber no sentido restrito do termo, mas à concepção de existência. Logo, não se trata apenas da dúvida, mas de um efetivo desespero”. Ver. HYPPOLITE, J. Op. cit. p. 29. 155

Sobre o problema da interpretação heideggeriana do ceticismo como skepsis. Analisando a origem da palavra alemã Skeptizismus, do grego  do verbo , que significa “ver”, “observar de forma detalhada”, “olhar minuciosamente”, trata-se aí de um observar que penetra na interioridade da consciência, constatando assim uma relação entre o termo grego  e o alemão Einsicht (visão que se dirige ao interior). Ver. HEIDEGGER, M. El concepto hegeliano de la experiencia. p. 129ss. Esta interpretação heideggeriana se limita a uma simples análise etimológica da palavra alemã Skeptizismus, não atingindo de fato, a sua essência que seria a negatividade. Esta negatividade, como foi visto, em outra interpretação de Heidegger sobre a parusia, é totalmente esquecida por ele, como nos lembra Platy-Bonjour (Cf. Nota. 24). Em parte, tal esquecimento da negatividade nessa interpretação do ceticismo hegeliano, por parte de Heidegger, tem como objetivo arrefecer o “poder do negativo” frente à tradição e o remeter de forma a-crítica à “origem”, no caso, à origem grega da palavra, skepsis. Heidegger parece esquecer que a verdade do conceito não está em sua “origem”, mas no término de seu máximo desenvolvimento como resultado e seu devir.

uma consciência não satisfeita com seu objeto e, com isto, não satisfeita consigo mesma. Deste modo, sua experiência confere um significado negativo para si, “negação que é determinada” ou negação que possui um conteúdo e é inerente a este.

A negação determinada é um momento essencial de toda dialética, tal como a platônica, no Sofista, e sua discussão sobre o ser e o não-ser. Nesse diálogo, Platão define seu movimento dialético, com base na relação posta por seu personagem principal, o Estrangeiro, entre ser e não-ser, em relação com o ser eleático. Em sua exposição crítica aos sofistas, o Estrangeiro chega à definição do não-ser como alteridade em relação ao ser: trata-se de uma crítica interna à ontologia parmenídica, pois o não-ser não se reduz a nada, pois “quando falamos do não-ser isso não significa, ao que parece, qualquer coisa contrária ao ser, mas apenas outra coisa qualquer que não o ser”157. O que o próprio Platão define como “uma oposição determinada [de ser a

ser”158. É a partir desta discussão platônica entre o ser e não-ser, que podemos então

entender a negação determinada entre a consciência verdadeira e a não-verdadeira, na Fenomenologia. Segundo Hegel, a consciência não-verdadeira que se reconhece em sua não-verdade, não é somente um momento de negatividade – no sentido que pensa a “consciência natural”, que a remete ao vazio –, porém já é a própria superação da não-verdade, é seu ser-outro, sua verdade. Isto é, ao reconhecer o próprio erro ela já o supera. Pois o erro é o Outro da verdade, que é uma outra verdade, estabelecendo uma nova posição. Esta negatividade segue uma ordem teleológica da experiência, que leva a consciência a sua formação e a seu fim.

A experiência da consciência, em seu desenvolvimento, se dá necessariamente numa ordem teleológica do saber, segunda a qual “a meta está ali onde o saber não necessita ir além de si mesmo”159, isto é, onde conclui seu processo e conhece em si e

para si, efetivando-se na correspondência concreta entre o conceito e seu objeto. A vida em sua naturalidade, conforme Hegel, que tem seu existir imediato (Dasein), não passa além de si mesma a não ser em sua morte; todavia, a “consciência é para si mesma seu conceito; por isso, é imediatamente o ir-além do limitado, – e já que este

157 PLATÃO, Sofista, 257b. 158 Idem, ibidem, 257e.

limite lhe pertence – é ir-além de si mesma”160. A consciência não é só um ser-ai

determinado naturalmente, pois está sempre ultrapassando a si mesma, em sua racionalidade infinita e seu devir histórico, transcendendo os seus limites, e reconhecendo-se como espírito, o que não ocorre sem representar para a consciência, que se satisfaz na limitação, uma violência que lhe nega a passividade por meio do pensar. Tal violência torna a consciência angustiada e desesperada, em face da verdade que tinha por verdadeira e que, por fim, não o era, marcando o aparecimento de uma outra verdade para si, até o movimento de sua determinação se efetivar como a verdade em-si (objeto) e para-si (saber).

Neste movimento na forma da experiência da vida da consciência, a negatividade cética acaba determinando-se como parte essencial do desdobramento fenomenológico hegeliano. De fato, poderíamos dizer que, assim, a experiência se apresenta como este movimento mediativo-negativo entre o saber e o objeto, no interior da própria consciência. A experiência, deste modo, assume a definição mesma de seu movimento, ou seja, da dialética.

2.3. Experiência e Dialética: sobre a transformação especulativa do