• Nenhum resultado encontrado

EXPERIÊNCIA COMO RECENSEADORA NO CENSO DE 2010

Em 2010, quando me inscrevi para o concurso temporário do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), não imaginava que estaria traçando uma escolha que refletiria mais tarde no meu Trabalho de Conclusão de Curso em 2012, em Ciências Sociais, e posteriormente a pesquisa da minha dissertação. Participei do concurso temporário de forma desacreditada na possibilidade de ser aprovada e tornar-me uma recenseadora no censo 2010, no entanto recebi o resultado de que havia sido classificada e que faria uma semana de treinamento para participar de um dos “importantes” eventos do País. Nesse mesmo período o IBGE lançou várias campanhas publicitárias promovendo o censo e demonstrando a importância da participação de todos. No decorrer do treinamento aprendemos sobre o censo, a sua importância e a usar o equipamento que nos auxiliaria nas pesquisas. Como o censo é uma pesquisa quantitativa realizada em quase todo o território Brasileiro, nós, recenseadores aprendemos que deveríamos intervir o mínimo possível nas respostas dos nossos entrevistados para uma melhor coleta de dados. A neutralidade da pesquisa e do pesquisador foi uma qualidade muito aclamada. No decorrer do curso de bacharel em Ciências Sociais, compreendi as dificuldades de se colher dados com pessoas, e pude reforçar essa experiência no trabalho como recenseadora. Aprendi que poderia me esforçar ao máximo para não intervir nas respostas, mas a minha simples presença naquele lugar já era capaz de gerar intervenções

profundas. Ao longo do trabalho no censo transitei em um espaço geográfico pequeno, mas tão diverso que as respostas pré-estabelecidas não eram capazes de dar conta da complexidade de um curto espaço da cidade. Foi em uma dessas andanças de casa em casa, com colete do IBGE e um pequeno aparelho que se assemelhava a um “smartphone” (um pequeno computador portátil) que obtive uma resposta emblemática para a minha atual pesquisa. Durante anos essa experiência não havia sido despertada, foi só quando iniciei meus estudos com mulheres indígenas urbanas que pude perceber o quanto era importante.

Havíamos sido instruídos no treinamento, que nos depararíamos com dois tipos de questionários: um questionário básico com “algumas” perguntas (“questionário básico”) e um questionário mais completo com um número maior de perguntas (“questionário da amostra”). Esses questionários eram sorteados a cada quantidade “x” de domicílios (de modo que nunca saberíamos quando iriamos começar um questionário mais longo), diante disso só nos era possível saber qual questionário que iríamos aplicar no momento em que as perguntas surgiam na tela do dispositivo eletrônico. Os quesitos do censo giravam em torno dos itens sobre o domicílio, características dos moradores: rendimento, educação, idade, cor ou raça, entre outras perguntas. É importante salientar que apenas um morador de cada domicílio era suficiente para que a pesquisa fosse efetivada. Ainda que a autoidentificação fosse um elemento muito aclamado para o censo, apenas um morador classificaria todos os indivíduos do domicílio, desse modo, como podemos considerar o critério aplicado como “autoidentificação”? Embora inúmeras propagandas fossem veiculadas na televisão aberta acerca do censo, das entrevistas e das formas de abordagem para tranquilizar e avisar aos brasileiros sobre a pesquisa a ser feita, muitos moradores ainda não se mostravam solícitos ou abertos a participar das pesquisas.

Em um desses momentos, me deparei com um domicílio no qual o questionário maior seria aplicado, de início como de costume tranquilizei que seriam poucas perguntas a serem feitas e que agiria de forma mais rápida possível, visto que a senhora que me abriu a porta não parecia interessada em participar e rapidamente afirmou que estava ocupada. No entanto, o questionário sorteado para aquele domicílio foi o maior tipo dos questionários, o da “amostra”. Fiz as perguntas iniciais e continuei com o questionário normalmente até que nos deparamos com o quesito acerca da “cor ou raça”5

. Como de costume, visto que muitos entrevistados fazem a mesma pergunta, ela perguntou-me sobre a sua cor/raça, como fomos instruídos durante o treinamento para tal fato aprendemos que devemos dizer que “o critério

5 A dissertação não pretende analisar e debater sobre a junção dos termos “cor” e “raça” adotadas nos censos do IBGE como elementos similares, neste momento apenas me restrinjo a descrever como se encontra a questão.

era o de ‘autoidentificação’ e que somente ela poderia dizer a qual ‘cor/raça’ pertence”. Para a minha surpresa a senhora pergunta sobre cada item no qual ela poderia ser e me responde em seguida: “indígena, né? Afinal, somos todos descendentes de índios nesse país”. Como a minha tarefa não permitia opinar sobre a “autoidentificação" de cada um marquei o que ela havia me dito. Em seguida, a pergunta no “questionário da amostra” para quem se autodeclarava como índio era: “Qual a etnia ou povo que pertence?”, “Fala a língua indígena no seu domicílio?”, “Especifique as línguas indígenas falada no domicílio”. No momento em fazia essas perguntas, ela mesma fala para voltar e classificá-la enquanto “parda”.

São essas experiências que nos fazem refletir sobre quem são os índios do censo no IBGE. Será que ela teria se classificado como índia caso perguntas a cerca da etnia e língua não houvessem sido feitas no censo? Será esse todo o conhecimento sobre os indígenas que temos como sendo apenas parte de uma linha ancestral do “povo brasileiro”? Ou essa atitude é reflexo perverso do discurso da mestiçagem positiva, em que o Brasil ‘não discrimina’ pois acredita serem todos ‘uma mistura das raças’? Esta última pode recusar a uma diversidade cultural, ao ponto de não enxergar as diferenças existentes entre os distintos grupos e através dessa ideologia negar a real necessidade de políticas públicas para os grupos em situação de exclusão.