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A exemplo do que ocorre no colóquio entre os dois cães de Cervantes, ao se afirmar como regra de conduta para os

O ESTATUTO DA RAZÃO DE E STADO

27. A experiência e suas fontes

O primeiro testemunho conhecido da nova expressão se encontra no Dialogo del Reggimento di

Firenze, escrito em 1521 por Francesco Guicciardini, como uma análise do governo de Lorenzo di Medici

e, ainda mais, como uma ocasião para consolidar a visão do autor sobre a função da ação política, associada a critérios de eficiência racional que se justificam como o único método apto à obtenção de resultados concretos300.

Ali, de passagem, quando trata do destino dos prisioneiros pisanos em Florença, Guicciardini observa que matá-los não seria, certamente, algo adequado a um bom cristão; mas quando se aconselha que se faça isto, assim se faz “segundo a razão e o uso dos Estados”301.

A expressão não foi posta ali por acaso. Forjado pela linguagem vulgar, para designar a compreensão de uma autonomia do político em relação às regras ordinárias302, o termo denota uma

orientação de prática política que, ao superar os preceitos transcendentais até então imperativos sobre a

sua atividade, se desenvolvia a partir do próprio objeto da política303. No Dialogo del Reggimento di

Firenze, portanto, le não é uma curiosidade circunstancial na fortuna da razão de Estado, mas uma

importante ilustração do que havia de novo no espaço público304.

299 VIROLI, 1994:XIII, em conclusão ao que observa: “a presença do termo ‘razão’ em ambas as definições não deve provocar equívocos: no caso da política, ‘razão’ significa recta ratio (...); no caso da razão de Estado, ‘razão’ tem um significado instrumental e indica a capacidade de calcular a eficácia dos meios em relação a um fim” (VIROLI, 1994:IX)..

300 Sobre o Dialogo e este seu pressuposto teórico, cf. GILBERT, 1970:106.

301 Referindo-se à passagem, veja-se GARCÍA-PELAYO, 1962:29; STOLLEIS, 1998a:35. 302 A propósito, consulte-se STOLLEIS, 1998b:294.

303 Ainda aqui, cf. STOLLEIS, 1998a:280.

304 STOLLEIS, 1994:25. Maurizio Viroli vai mais além, e entende que terá sido Guicciardini quem inventou, ou redescobriu, o conceito de razão de Estado em seu Dialogo del Reggimento di

Firenze: “Antes da invenção dese conceito, todas as práticas políticas que repugnavam aos

princípios da razão moral e cívica eram exculpadas pelo apelo à prática do Estado. Com a construção do conceito de razão de Estado, elas poderão ser exculpadas, e mesmo justificadas, por um apelo à nova razão (...). Guicciardini sabia bem que uma permissão ou justificação de ações com violação à razão moral e legal, baseada numa razão ou numa lei, é mais forte do que a escusa ou justificação baseada em referência às práticas correntes do comportamento costumeiro” (VIROLI, 1998:52).

Quando Giovanni Della Casa torna a usar da expressão, ela já é corrente entre os homens. Em sua Orazione a Carlo V, composta entre 1547 e 1549 para sustentar a restituição de Piacenza ao Duque Otavio Farnese, e jamais enviada ao seu destinatário, é ele mesmo quem acusa o fato quando afirma que o termo já se tornara uma voz comum305.

No texto, Della Casa distingue “a voz bárbara e feroz da razão de Estado daquela da razão civil”306, apontando a radical incompatibilidade entre a primeira, “falsa e dissoluta, e disposta ao engodo”, e a segunda, que é “simples, e correta, e constante”, com o que prossegue: “E porque alguns que se cegaram pela avareza e pela cupidez afirmam que Vossa Majestade não consentirá jamais em devolver Piacenza, segundo dispõe a razão civil, uma vez que a razão de Estado não comporta essa ação, digo-vos que esta voz não é apenas pouco cristã, porque é também bem pouco humana”307.

Depois de Guicciardini e Della Casa, se referem à razão de Estado, sempre com esta concepção de uma má razão, contrária ao direito, à moral e à religião, autores como Sperone Speroni, que em 1562 a equipara a uma tirania “que pretende dispor de leis até mesmo sobre Deus”, ou o embaixador veneziano Andréa Gussoni, que em 1562 trata dela como uma “utilidade própria, um argumento que se avalia na mente dos príncipes”308.

Contemporânea de Maquiavel, a nova expressão se viu associada à figura e às idéias do Secretário florentino, que apresenta o conceito da derrogação da moral e do direito em nome da salvação à cidade, por exemplo, nos seus Comentários à Primeira Década de Tito Lívio, onde ele afirma que, com glória ou com infâmia, a pátria deve ser defendida; e em qualquer caso ela será bem defendida309.

Por isso, quando condena a “falsa e perniciosa razão de Estado”, o espanhol Pedro de Rivadeneira, que se propõe à empresa de dar forma, no seu século, a uma “verdadeira razão de Estado”, a partir das virtudes do príncipe cristão310, não poupa Maquiavel quando fala dele como “homem e ministro de Satanás”, que forjou “esta perversa e diabólica doutrina da razão de Estado em Itália”311.

Traiano Boccalini, segundo quem a razão de Estado, por efeito do conceito maquiaveliano de

virtù, é uma lei útil aos Estados, mas contraposta à lei dos homens e de Deus312, também coloca o

305 STOLLEIS, 1994:25; STOLLEIS, 1998b:294. 306 Cf. BORRELLI, 2000:81; VIROLI, 1994:173.

307 Para a transcrição das partes da Oração, cf. DE MATTEI, 1979:13; SCHELLHASE, 1990:246; ECHEVERRÍA, 1998:xiv.

308 Os registros se encontram em GARCÍA-PELAYO, 1962:29.

309 MAQUIAVEL, 2000:419. Reportando-se ao texto, veja-se também FERNÁNDEZ GARCÍA, 1997:5.

310 Veja-se o registro de Rivadeneira em FERNÁNDEZ-SANTAMARÍA, 1986:30. 311 RIVADENEIRA, 1998:7; FERNÁNDEZ-SANTAMARÍA, 1986:31 e 35-36

florentino, “condenado por seduzir e corromper o gênero humano, e por disseminar escandalosos preceitos políticos”313, como o idealizador da noção.

A primeira obra dedicada ao tema – Della ragion di Stato, do jesuíta Giovanni Botero, que havia sido secretário de São Carlos Borromeo, e que terminou expulso da Companhia, por defender a doutrina da supremacia temporal do Papa sobre os príncipes314 – surgiu em 1589, e também se inicia com a afirmação de que, ao lado de Tácito, Maquiavel é aquele de quem falam os que tratam da razão de Estado315.

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