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CAPÍTULO 2 – ARTICULAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: DIFERENTES

3.2 A LINGUAGEM E A COMUNICAÇÃO VISUAL DO SURDO: ALGUMAS

3.2.3 Comunicações visuais e experiência visual: resistência ao colonialismo

3.2.3.1 Experiência visual: caminhos e relações do texto escrito e imagético nos

A comunicação visual-espacial/cinésico-espacial, talvez estranha para muitos ouvintes, para o surdo produz formas de apreensão, interpretação e narração do mundo a partir de uma cultura surda visual. Nesse sentido, numa proposta curricular, como no caso desta pesquisa, os professores ouvintes são “estrangeiros” que se aproximam da língua de sinais e da cultura visual e, por vezes, continuam a privilegiar hábitos próprios de sua cultura, vinculados à modalidade oral, fonocêntrica – inerentes ao som em seu cotidiano de comunicação com os interlocutores ouvintes. E essa característica se expressa nos variados instrumentos e artefatos utilizados nas mediações do processo de ensinar e aprender.

Nesse processo, apesar de muitos outros fatores que influenciam e moldam esse quadro, a linguagem é preponderante – o meio para interlocuções entre as pessoas nele envolvidos. As diferentes linguagens tendem a ser um foco de atenção. Nessa direção, as estratégias de trabalho para a produção de material didático e as tomadas de posições frente à importância da visualidade em metodologias e nos textos (didáticos), pensando nas relações com o português como L2, aparecem nas narrativas.

Na proposta do IF-SC, a prioridade não se limita à comunicação, mas ao processo de aprendizagem dos alunos, às questões culturais surdas, à subjetividade, à forma como esse aluno aprende e se desenvolve como sujeito surdo. Também a nossa proposta abrange a formação e a capacitação dos profissionais que trabalham com alunos surdos. Temas focados na forma de ensinar, avaliar e conhecer o desenvolvimento do aluno surdo. A preparação das aulas com Power Point, voltadas para a questão visual.

[...]

A proposta bilíngüe do IF-SC é para uma comunicação visual, porém ainda está fraca, pois nós professores temos dificuldades na preparação das imagens e materiais, o que requer muito tempo. Assim vai entrando o português, um português de surdo que tem sentido pelos sinais, porque é preciso entender o material para poder utilizar português e imagens, mas não é simples fazer isso.

[...]

A imagem (me refiro a fotos, desenhos ,etc.) deve sempre estar acompanhada do discurso. Também, se eu limitar minha explicação apenas a LIBRAS, os alunos podem não compreender, mesmo sendo uma língua visual, mas nem sempre conseguirá sozinho dar conta das explicações. A imagem precisa estar associada ao discurso em LIBRAS e com os classificadores e demais estratégias, para que assim o aluno possa compreender.

A visualidade é importante sempre, pois não existem sinais para todas as palavras e termos, mas no caso do intérprete(TILS), talvez por desconhecimento do assunto, acaba resumindo a

informação, isso me preocupa. (NARRADOR 1)

Nas narrativas, percebemos algumas relações entre as imagens (ilustrações) e a produção do material didático visual, bem como a utilização e “dosagem” de linguagens, principalmente as mais comuns no cotidiano da educação de surdos: somente português escrito, português escrito e imagens, somente imagens, etc. Situações apresentadas nas narrativas do professor 3 – “A imagem (me refiro fotos, desenhos , etc.) deve sempre estar acompanhada do discurso” – e – “Assim vai entrando o português, um português de surdo que tem sentido pelos sinais porque é preciso entender o material pode utilizar português e imagens [...]”. São posições que nos permitem refletir sobre concepções tradicionais do material didático para surdos, enfatizando a importância de diferentes linguagens (semióticas) como fator constitutivo do letramento surdo. E a língua de sinais como imprescindível na mediação do português escrito ou das imagens (texto imagético).

Nessa direção, considerando o pressuposto de que a língua de sinais é L1 e português é L2, não há como se conceber um letramento para o sujeito surdo como um processo que não seja “multimodal (diferentes linguagens)”, usando uma expressão de Menezes de Souza (2005) ao discutir o letramento do índio.

Face às zonas de contato entre culturas distintas e línguas de naturezas diferentes, a multimodalidade na produção de material didático para surdos, ampliando o uso de diferentes linguagens, leva a pensar outras formas, e não somente aquelas universais, fundamentadas na cultura e língua ouvinte. Formas em que a visualidade cumpre um papel culturalmente mais relevante para a comunidade surda, uma vez que pode vincular-se à não-linearidade dos processos de construção de sentido surdo, para os quais a experiência visual e o movimento são fatores de relevância, como, por exemplo – CDs, softwares, filmes sinalizados, escrita e imagem concomitantementes no texto, textos imagéticos, etc62.

Pensar possibilidades para o material didático multimodal remete à natureza ideológica do signo e sua dimensão histórica, numa concepção de linguagem em que o discurso está intimamente ligado a suas condições contextuais, como bem expressam as narrativas anteriores.

62 Para conhecer uma experiência nessa linha de proposição, ver: RAMIRES, A. R.G. & MASUTTI, M.L. (Orgs)

A educação de surdos em uma perspectiva bilíngüe: uma experiência de elaboração de softwares e suas implicações pedagógicas. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2009.

Entende-se, à maneira de Bakhtin (1990), que no signo a ligação entre o significante e o significado63 não está pronta e terminada, mas prevê que a conexão entre o significante e o significado seja feita indiretamente na relação entre sujeito e texto (escrito ou imagético), sempre mediada por sua língua e cultura. Essa mediação é realizada pelos usuários das linguagens situadas socialmente em determinados contextos e marcadas por todas as variáveis neles existentes nesse contexto (grupo social, sexo, faixa etária, etc).

Isso nos faz refletir sobre o sentido das narrativas dos professores surdos ao destacarem a mediação pela língua de sinais para o texto escrito ou imagético. O signo, qualquer que seja, do ponto de vista bakhtiniano é fruto das interpretações, e as linguagens, verbal ou não-verbal, se complementam (BAKHTIN, 1990, p. 37-38). Segundo Menezes de Souza (2004), esse contexto e as condições sócio-históricas de interpretação são chamados por Bhabha de lócus de enunciação. A produção de sentidos para o surdo acontece a partir de seu lócus de enunciação, ou seja, com sua língua ele é o intérprete/leitor sempre contextualizado e ensinado culturalmente a ver, ler e comunicar, estabelecendo elos de sentido (ou descartando esses elos) entre este ou aquele.

Menezes de Souza (2004, p. 119) faz uma relação de conceitos que interessa para a temática em estudo: para entender a representação, é primordial entender o lócus de enunciação do narrador, do escritor. Porque, diversamente do conceito de enunciado pronto, homogêneo e fechado, o conceito de lócus de enunciação revela um lócus atravessado por toda gama de valores socioculturais constituintes de qualquer sujeito “– que é isso que Bhabha chama de ‘terceiro espaço’ – que toda gama contraditória e conflitante de elementos lingüísticos e culturais interagem e constituem o hibridismo.”

Refletir nessa direção, trazendo para o centro dessas reflexões a multiplicidade de linguagens e o colonialismo na questão curricular para surdos, permite-nos conhecer mais esse ”terceiro espaço” e entender as resistências surdas à imposição de formas de aprender e ensinar baseadas na cultura hegemônica oral e escrita, na perspectiva do professor ouvinte. Nas diferentes linguagens entre o surdo e o ouvinte, há impasses que podem se tornar alternativas, se forem melhor negociados. Vivemos nesse tempo de negociação, quando os tensionamentos da comunidade surda traduzem-se em políticas públicas referenciadas no reconhecimento legal traduzido por meio da Lei 10.436 de 2002, comumente referida como a Lei de LIBRAS pela legislação decorrente. Essa legislação apresenta, para além dos

63 Equivalem a palavra e conceito/significante para o ouvinte e sinal e conceito/significante para o surdo. Ou

chamados aspectos legais uma política lingüística e educacional para outras propostas curriculares que se difundem no país.

Nesse sentido, no fechamento deste capítulo que apenas aponta questões e de onde emergem muitas outras problematizações vinculadas ao desconhecimento, à rigidez de alguns aspectos da proposição curricular do IF-SC, reafirma-se que esta é constituída pelos discursos que circulam nesse espaço, um local de relações de poder. Portanto, não podemos perder de vista que é um território simbólico, uma “compilação de nossa vida”. Desse modo, é nossa identidade (SILVA, 2005).