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CAPÍTULO 2 – ARTICULAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: DIFERENTES

2.2.1 O discurso e a representação em questão na educação de surdos

A representação resulta de um processo de produção de significados a partir da linguagem. Nesse sentido, podemos dizer que a representação pode ser entendida como tradução, uma vez que tenta, através da linguagem, tornar o outro “decifrável”. Conforme diz Lopes (200 2, p.159-160):

Toda representação é uma tradução que tem a pretensão de esgotar nos significados “todos” os sentidos possíveis de um significante. Na ânsia moderna do enquadramento e na nossa responsabilidade de “dar conta” de conhecer o outro para poder dizer dele, não conseguimos suportar que não se encerrem nos sintomas visíveis os sentidos que nos permitiriam encerrar o outro em um significado (grifos no original).

Como já mencionado, no campo dos Estudos Culturais, a identidade e a diferença estão estreitamente associadas a sistemas de representação. A representação, tal como um sistema lingüístico e cultural, é uma forma de atribuição de sentido, de produção de significados. Os mecanismos de fixação e manutenção das formas dominantes de representação da identidade e da diferença estão intimamente ligados a relações de poder: "Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade" (SILVA, 2000, p. 91).

Em nossas atividades cotidianas, estamos constantemente nos defrontando com pessoas, com acontecimentos que nos são estranhos (no sentido de não conhecidos). Com o objetivo de interpretá-los, de decifrá-los, produzimos representações a seu respeito, construindo-os através dos discursos. Conforme Foucault (1995, p. 56), devemos

[...] não mais tratar os discursos como conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam.

No caso dos surdos, quem detém a autoridade de representá-los tem sido o discurso clínico, que os inscreve sobre a materialidade do déficit auditivo, descrevendo-os como corpos doentes e anormais, que não ouvem e por isso não se comunicam. O termo “deficiente auditivo” é largamente utilizado na literatura médica e, incorporados pela educação especial, é revelador desse modo de narrar os surdos, que se reproduz na família, na escola e nas relações sociais em geral.

Essas representações construídas discursivamente vão narrar esses sujeitos de tal ou qual forma, de acordo com uma relação de poder considerada por muitos incontestável: trata- se de um discurso impresso em um artefato cultural que detém o conhecimento. Essas representações, portanto, adquirem estatuto de realidade e dificilmente serão questionadas, como nos alerta Costa (2005, p.42):

[...] quem tem o poder de narrar o outro, dizendo como está constituído, como funciona; que atributos possui, é quem dá as cartas da representação, ou seja, é quem estabelece o que tem ou não tem estatuto de “realidade” (grifos no original).

Assim, podemos perceber que, na maioria das vezes, essas representações construídas discursivamente vão circular em nossa sociedade como “verdades”. Acredita-se que o que se diz do outro mostra como ele “realmente é”. E no momento em que esse outro se vê “retratado”, representado de tal forma, passa a se constituir dessa maneira. Passa a construir uma identidade que esteja de acordo com essa representação produzida sobre ele a partir do olhar do outro. Por esse motivo, dizemos que qualquer artefato cultural: o livro, o texto, a fotografia, o teatro, o desenho, o currículo etc, através da linguagem, seja ela verbal ou não, produz os sujeitos por ele interpelados. E aí reside a motivação que me levou a realizar esta pesquisa: enquanto olharmos para os surdos como inocentes “anormais” e “deficientes”, estaremos colaborando para a construção de identidades a partir de representações que os discriminam e excluem da escola. Tomando novamente emprestadas as palavras de Lopes (2002, p.158):

Os sistemas de representações, ao construírem os lugares onde os indivíduos e/ou grupos se posicionam ou são posicionados, articulam respostas para questões acerca de “quem sou eu?”, “o que eu posso falar ou ser?”, “o que eu preciso para ser aquilo que dizem que devo ser?” ou, ainda, “que espaços, instituições posso/devo ocupar?”. As práticas articuladas na significação e os processos simbólicos são construídos em meio às relações de poder que nomeiam, que descrevem, que classificam, que identificam e que

diferenciam. O acesso a qualquer identidade é sempre mediado pelo discurso e pela linguagem (grifos no original).

O discurso que categoriza os surdos como corpos anormais e sujeitos sem linguagem (já que nas formas dominantes de representação a língua de sinais não é considerada língua) não Ihes deu outro caminho senão um lugar de subordinação na sociedade, já de início marcado pelo insucesso escolar historicamente vivido pelos surdos.

Essa produção discursiva e social da surdez tem como um de seus efeitos o permanente fracasso escolar dos surdos, cujas causas, de acordo com Skliar (1997b, p.12-13; 1998, p.50), podem ser configuradas nos seguintes aspectos: baixas expectativas pedagógicas dos educadores de surdos, que acabam sendo incorporadas pelos próprios surdos; as várias "formas de colonização do currículo", na medida em que, nos projetos e programas de cursos, não se contemplam as especificidades lingüístico-culturais da comunidade surda; a supremacia do clínico sobre o pedagógico; o desconhecimento (ou não reconhecimento) das estratégias de ensinar e aprender dos surdos; a não participação dos surdos e suas comunidades nas discussões e decisões pedagógicas nas diferentes instâncias de poder (governamental e institucional).

Segundo a análise cultural, na noção de representação concebe-se a realidade como construída discursivamente; logo, são as práticas discursivas o centro da análise. Nessa concepção, os discursos, além de designar as coisas do mundo, modelam os objetos de que falam, criam sentidos que, por parecerem reais, têm efeito de verdade. As práticas discursivas dominantes, construídas nas representações dominantes do outro, se sustentam, pois são naturalizadas, legitimadas como um regime de verdade. Assim, os discursos nomeiam os sujeitos como normais ou desviantes do padrão. A análise das representações materializadas na e pela linguagem, portanto, implica a discussão dos vínculos entre discurso e poder. Nas palavras de Silva (1999: 44): "Os discursos estão localizados entre, de um lado, relações de poder que definem o que eles dizem e como dizem e, de outro, efeitos de poder que eles põem em movimento."

Vive-se hoje a possibilidade da representação que intenta assumir aspectos políticos da diferença surda nas proposições de educação bilíngüe. Uma tensão se coloca então entre a representação da surdez como diferença surda e a fortíssima política da escola inclusiva, que

reduz essa proposição a um oferecimento do profissional intérprete para garantia do direito lingüístico do aluno surdo.

A descolonização ou desouvintização do currículo para surdos não será alcançada com medidas aparentes, como a inclusão da língua de sinais na escola ou a contratação de surdos como meros auxiliares da "transmissão" de conteúdos e textos selecionados pela ótica dominante, que continua subestimando o sujeito surdo e sua educação. Os projetos de educação bilíngüe só produzirão o descentramento no projeto educativo da questão das línguas se atuarem sobre a necessária transformação das representações dominantes na educação de surdos.

Para Souza (1998), a utilização da LIBRAS, se convertida a um mero instrumento para se ter acesso às informações escritas, pode levar a um monolingüismo em língua portuguesa. Portanto, seria uma ilusão acreditar que o simples ingresso da língua de sinais nas atividades escolares bastaria para deslocar a educação de surdos de seu velho paradigma oralista.

A tendência de mudança em voga tem seguido um caminho linear que não contribui de fato para esse deslocamento. O que se observa nas instituições escolares é a proposta de "reverter a típica seqüência língua oral-língua escrita, pela seqüência língua de sinais -língua oral - língua escrita e/ou pela seqüência língua de sinais - língua escrita - língua oral" (SKLIAR, 1997a, p.38). E todo o currículo segue refém dessa lógica, permanecendo preso aos objetivos de seqüências lingüísticas. Isto é, os mecanismos colonizadores exercidos pela ideologia subjacente ao projeto oralista permanecem, já que a questão da aquisição da língua nacional ainda está no centro do debate e continua como grande finalidade da educação.

Um projeto de educação bilíngüe pode promover a desestabilização da assimetria de poderes e saberes em jogo entre surdos e ouvintes. Um começo para lidar com as representações da educação especial, que produzem efeitos de verdade sobre a necessidade de um trabalho voltado para a normalização da ou na diferença. Como bem elucidam Skliar e Souza (2000, p. 267):

A educação especial conserva para si um olhar iluminista sobre a identidade de seus sujeitos, isto é, se vale das posições de normalidade/anormalidade, de raciona1idade/irracionalidade e de completude/incompletude, como elementos centrais na produção de discursos e práticas pedagógicas. Os sujeitos são homogeneizados, infantilizados e, ao mesmo, tempo, naturalizados, valendo-se de representações sobre aquilo que está faltando em seus corpos, em suas mentes e em sua linguagem.

Como nunca estamos começando, busco para o debate proposições e produções de alguns autores surdos e ouvintes que são referências na educação bilíngüe para surdos: Sánches,1990; Behares, 1993; Lacerda, 1989; Góes, 1999; Quadros, 1997, 2003; Souza, 1998; Skliar, 1998, 1999, 2001; Perlin, 2000, 2004; Botelho, 1998, 2002; Lodi, 2004; Karnopp, 2004; Fernandes, 2006; Lopes, 2007; Stumpf, 2007. No rastro das idéias desses autores, entre outros, passo a apresentar noções sobre a educação bilíngüe e o bilingüismo em articulação com algumas questões que mobilizaram o meu pensar ao longo deste processo de investigação (e certamente continuarão mobilizando...).