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3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

3.1 Experiências de campo

[...] como vc deve saber, nas igrejas neopentecostais as segundas-feiras são reservadas para o culto da “prosperidade” e, no caso da Renascer, para o culto dos empresários. Há uma igreja Renascer mais ou menos próxima à minha casa e, então, resolvi ir hoje à noite para ter a minha primeira impressão. Cheguei às 20h00 e para a minha surpresa havia, além de mim, mais quatro pessoas. Havia outras, mas era o pessoal de apoio, com a camiseta da Igreja Renascer. Fui me sentar num cantinho, para não chamar a atenção. As outras quatro pessoas estavam de pé, com as mãos levantadas, fazendo suas orações em voz alta, enquanto o pastor “metralhava” a pequena platéia com suas palavras. O pastor era muito jovem, vestido de jeans e camiseta, e suas frases, para mim, não tinham sentido nem lógica, mas cheguei a entender algumas frases soltas, como “Jesus vai abençoar...”, “agora é o nosso tempo...”. Não apelava para a razão – como a homilia (ou sermão) de padre –, mas para a emoção. Era uma “gerência de emoções”, em que ele era o pastor-gestor. Em seguida, após esses cinco minutos de fala, começaram a cantar as músicas próprias da igreja. Era como um karaokê, com música mecânica e duas mulheres cantando. E eu lá, no meu canto, prestando atenção em tudo. Assim que terminaram de cantar, o pastor convidou as quatro pessoas a se sentarem juntas e, direcionando o seu olhar pra mim, também me convidou. Eu fiz um gesto dizendo que preferiria ficar ali. Ele me respeitou, e começou novamente com a sua “metralhadora”. As quatro pessoas levantaram as mãos novamente e iniciaram suas orações em voz alta, e num certo momento se deram as mãos. O pastor pediu a benção a todos os bispos, bispas e ao apóstolo da Igreja Renascer e, ao final de sua fala, pediu que todos batessem palmas para a “glória do Senhor”, e em seguida que todos se abraçassem. Nesse momento ele se virou pra mim e disse: “Brother, eu te amo!”. Uma mulher, do outro lado da sala (porque eu estava num cantinho), disse também que me amava.

Eu, que não queria chamar a atenção, acabei sendo o centro das atenções, pelo menos por alguns instantes (se isso não fosse sério, eu poderia brincar que foi o meu momento de fama na Igreja Renascer!). Então, fiquei um pouco constrangido por ter chamado tanto a atenção e esperei a próxima música, que não tardou. Eram 20h45, e acabei saindo à francesa. A minha primeira ida a campo foi frustrante, mas consegui rir um pouco de mim mesmo.

O relato acima é de uma mensagem que enviei por e-mail à minha orientadora, logo após minha primeira ida a campo. Não a modifiquei para deixar transparecer bem o meu estado de espírito ao iniciar a pesquisa. Foi o meu primeiro contato com uma igreja evangélica, e minha linguagem mostra certo receio ou estranhamento por estar participando de um culto neopentecostal, o que aconteceu realmente. Meus preconceitos vieram à tona, e eu não cessava de fazer comparações com as missas da Igreja Católica, da qual faço parte. Havia o agravante de minha história de vida incluir uma educação religiosa marcada pelo catolicismo tradicional, passando pela Teologia da Libertação na fase universitária e culminando no envolvimento de cinco anos com o Movimento dos Focolares, um dos objetos

de minha pesquisa, e com o qual ainda mantenho contato. Esse caldo – de envolvimento com um dos objetos de estudo e preconceito inicial pelo outro – fez-me tomar um cuidado especial na pesquisa de campo.

O meu maior desafio na coleta de dados foi o esforço para me surpreender com aquilo que me era familiar (o MF) e tornar mais familiar aquilo que me era estranho (a IRC).52 Como já mencionado, a igreja neopentecostal era uma realidade desconhecida para mim, e, apesar do esforço consciente de aceitar a alteridade, a minha educação católica e o modo como eu a assimilei criaram alguns estereótipos em relação aos pentecostais. E nada como a observação direta, como a participação nos cultos, e o contato com as pessoas, como nas entrevistas, para que os preconceitos sejam amenizados e se comece a enxergar e interpretar com o mínimo de juízo de valor possível. Foi um grande exercício. No primeiro culto completo de que participei procurei considerar cada gesto, frase, choro, música, oração em voz alta e doação em dinheiro como “dados de pesquisa”, como costuma dizer um amigo pesquisador. O que pode parecer banal para quem faz ciência exige um esforço psicológico enorme quando a dimensão que se está investigando – a religião, no meu caso – faz parte do mosaico que constitui sua identidade.

Senti-me como afirma Lévi-Strauss (2003, p. 25): “[...] numa ciência em que o observador é da mesma natureza que seu objeto, o observador é ele próprio uma parte de sua observação”. Enquanto observava, eu era observado por mim mesmo, para que meu prejulgamento não encerrasse minha visão para a riqueza da realidade, e para saber o quanto eu já tinha superado minhas ressalvas, que poderiam atrapalhar ou enviesar demasiadamente minha análise. Enfim, observava-me para ter respeito pelo meu objeto de estudo.

Minha perplexidade, provocada pelo encontro com a alteridade, estimulou-me a sensação de “estranhamento”, como Laplantine (2006, p. 21) o descreve, levando-me a uma modificação do olhar que eu tinha sobre mim. Se eu estranho, é porque há algo que me perturba ou que questiona o meu mundo, e isso deve ser considerado como fonte de conhecimento. Ainda segundo o autor, se estamos presos a uma cultura (e aqui acrescento uma cultura religiosa), não conseguimos enxergar a dos outros, e ainda somos míopes à nossa. E completa: “A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual, familiar cotidiano, e que consideramos ‘evidente’”. E foi essa experiência que tentei fazer.

Não intencionei atingir a objetividade nem a neutralidade em relação aos meus objetos de estudo. Impossível dissociar pesquisador e pesquisado – e deveria? – porque são sujeitos em relação. Quis apenas minimizar o que considerava um desequilíbrio entre o que conhecia (MF) e o que desconhecia (IRC). E de modo imprevisto, o meu olhar para a IRC me fez modificar meu olhar para o MF. O “evidente” na minha convivência com o MF foi se tornando algo que merecia mais atenção, ajudado pelo meu afastamento auto-imposto, inclusive emocional, de aspectos do MF nos quais acreditava.53 E como um movimento circular, aos poucos notei que conseguia interpretar e compreender melhor os significados que os fiéis da IRC atribuem a seus comportamentos do que quando havia iniciada a pesquisa. E, por sua vez, consegui ver com olhos novos – ou, pelo menos, modificados pela experiência com a IRC – o MF. Em outras palavras, a IRC me ensinou muito sobre o MF.

O meu primeiro contato para marcar entrevistas na IRC foi por um e-mail encaminhado ao responsável pelo site da Arepe. Marcamos um encontro no bairro de Alphaville, em Barueri, na Grande São Paulo, e o clima foi bastante amistoso. (Aliás, um traço marcante nas entrevistas – tanto da IRC quanto do MF – foi a generosidade e a atenção despendida pelos entrevistados, o que facilitou muito o meu trabalho.) Aproveitei para observar o culto que se iniciou logo em seguida ao término da entrevista. Apenas na segunda entrevista, com um bispo na Sede Internacional da igreja, eu soube que os membros acreditavam que estavam sofrendo uma perseguição religiosa. Ele mencionou o fato ao justificar a negativa ao meu pedido de entrevista com Estevam Hernandes. Isso me alertou porque poderia significar dificuldades em obter informações. Investiguei na imprensa algumas notícias a respeito de problemas da IRC com a justiça, mas nada que eu considerasse grave no sentido de impedir a continuação da pesquisa. Realizei mais algumas entrevistas e senti que havia alguma desconfiança acerca do meu trabalho, mas a interpretei como uma forma de precaução. Todos foram muito atenciosos. Um traço marcante dessas entrevistas foi o esforço dos entrevistados em mostrar que eram pessoas conscientes de suas escolhas, que a igreja tem um papel fundamental na vida deles – principalmente por tê-los recebido em um momento difícil da vida – e que o dízimo e as ofertas, elementos sagrados para os fiéis, eram mal interpretados pela sociedade, principalmente pela mídia.

53 Esse ponto parece ser importante. Em um curso sobre sociologia da religião no encontro da Anpocs de 2007, o

professor Antônio Flávio Pierucci comentou que os pesquisadores ateus têm a vantagem de não estar emocionalmente comprometidos com o seu objeto de estudo. Parece-me que isso é verdadeiro. Para ilustrar, Weber dizia que tinha um ouvido desafinado para a religião, no sentido de que ela não era importante para a sua vida, apenas como objeto de estudo.

Os problemas com a justiça brasileira, em dezembro de 2006, e a prisão do casal nos Estados Unidos, em janeiro de 2007, fizeram que os contatos se tornassem mais difíceis, principalmente os e-mails, cuja maioria não era respondida. Cheguei a pensar em desistir de da IRC como um dos objetos de pesquisa, não apenas por prever a dificuldade de obter mais dados, mas também por prejulgar a idoneidade da organização. As conversas com a minha orientadora me esclareceram que eu deveria tentar evitar fazer julgamento moral dos Hernandes, muito menos da organização religiosa a qual pertencem, e que em uma pesquisa científica as questões morais desse tipo não devem ser adotados como critério para a escolha ou rejeição do objeto de estudo. Na verdade, a escolha desse objeto deve ter como critério sua capacidade de ser uma fonte de conhecimento, de poder fornecer informações para uma determinada problemática, enfim, de conseguir reunir material suficiente para responder à minha questão de pesquisa. E isso a IRC continuou a ser. Apesar de eles ficarem mais cautelosos e desconfiados com “os de fora”, continuei a contar com o apoio do bispo primaz e coordenador da Arepe da Sede Internacional, que prosseguiu atendendo ao meu pedido de marcar entrevistas com empresários. Nessa época, aconteceu um fato inusitado: um dos entrevistados estava desconfiado de que eu fosse do Ministério Público. A situação foi contornada com a apresentação de meu cartão de visitas, que me identificava como aluno de pós-graduação. Entretanto, foi um momento tenso para mim, pois vivenciei de modo um pouco dramático o significado da perturbação do pesquisador àquilo que ele observa e que perturba a si próprio, e pode servir como fonte de conhecimento, segundo Laplantine (2006).

Para finalizar, quero dizer que não saí ileso de campo. Minhas concepções acerca das duas organizações religiosas foram reescritas, até mesmo o papel da religião na minha vida. E a prática da pesquisa em campo foi uma experiência que comportou em parte a aventura pessoal de explorar outros mundos, além do meu próprio.