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CAPÍTULO 3 ENTRE RUAS, UMA PONTE: o campo e seu habitus

3.2. Explorando o campo: delineamentos metodológicos da pesquisa

Ao se entender a importância de conhecer a experiência subjetiva das práticas de consumo dos sujeitos da pesquisa, assim como explorar as características do consumo de classes populares, especificamente analisando um grupo de mulheres moradoras do bairro São José, optou-se pelo método qualitativo para abordar essa temática, no intuito de obter uma visão mais ampla do objeto da pesquisa:

No estudo do consumo, o propósito da pesquisa qualitativa é descobrir o que o segmento pesquisado tem em mente. É realizada para que se possa ter uma idéia de suas perspectivas, subjetividades e motivações, ajudando o cientista a compreender o escopo e a complexidade das atividades e, ainda, as preocupações dos consumidores. (SEIXAS, 2009, p. 16)

Inicialmente, a escolha pela metodologia qualitativa é justificada por possibilitar a análise de microprocessos a partir da realidade das ações sociais, tanto individuais, quanto no âmbito coletivo. Para Martins (2004, p. 292), "a preocupação básica do cientista social, neste caso, é a estreita aproximação dos dados, de se falar da forma mais completa possível, permitindo o conhecimento da realidade social, para melhor apreendê-la e compreendê-la, abrindo-se um campo diverso de possibilidades de investigação".

84 Dessa forma, estudar o consumo de maneira qualitativa possibilita uma análise exploratória dos significados que informam as práticas de consumo de moda dos sujeitos da pesquisa, os aspectos da experiência de consumo destes, assim como a forma como se constituem suas relações sociais mediadas pelo ato do consumo, informações estas que não podem ser obtidas de outra maneira senão adentrando o próprio campo para conhecer sua realidade e as práticas de consumo dos seus indivíduos, tendo em vista que estas, embora reflitam o habitus de classe, são estabelecidas de maneira particular.

Para Flick (2009), é através da pesquisa qualitativa que se faz possível analisar as experiências de indivíduos ou grupos relacionadas à estórias ou práticas, e podem ser tratadas a partir da análise dos relatos e estórias do dia a dia. Além de possibilitar se examinar interações e comunicações desenvolvidas com base na observação e no registro destas práticas.

Buscou-se, portanto, um enfoque metodológico capaz de abordar e compreender as experiências das mulheres do bairro São José a respeito da sua própria realidade, situando-as dentro do seu contexto cultural, ou melhor, das suas práticas cotidianas de produção de sentidos. Logo, o método qualitativo direciona a pesquisa à uma compreensão mais ampla a respeito dos estudos do consumo para além da visão economicista, com vista a conhecer as interações mediadas pelo fenômeno do consumo.

O objetivo é, então, entender e interpretar o fenômeno do consumo pelo viés da moda em suas diversas relações como um jogo de interações, compartilhamentos e disputas, enfatizando a multiplicidade de discursos, assim como os sentidos e experiências produzidas através das práticas relativas ao consumo de moda. Para Flick (2009), a subjetividade do pesquisador e daqueles que estão sendo estudados se tornam parte do processo da pesquisa, e suas reflexões, atitudes e impressões se tornam dados, fazendo parte da interpretação do estudo.

Assim, a pesquisa foi realizada através de um roteiro de entrevistas semiestruturadas que está mais próximo de um diálogo à uma entrevista formal, pois, segundo Flick (2009), permitem uma maior flexibilidade para fazer uso das perguntas no momento mais apropriado de acordo com as respostas das entrevistadas, pois não seguem uma ordem pré estabelecida, podendo ser ajustadas tanto às entrevistadas quanto às circunstâncias ao longo da conversa,

85 além de proporcionar perspectivas para que elas alcancem a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo, com isso, a investigação já que se sentirão mais a vontade para expressarem suas opiniões e pontos de vista.

Portanto, tendo em vista que para se compreender o comportamento dos indivíduos e de grupos "é necessário observá-los por um longo período de tempo e não um único momento", como afirma William Foote Whyte (2005, p. 320), assim como as informações que o pesquisador obtém dependem do seu comportamento e das relações desenvolvidas com o grupo estudado. A técnica da observação participante é importante por possibilitar a identificação de elementos relevantes do cotidiano do grupo de mulheres escolhido como foco desta pesquisa, já que esta, por sua vez, exigiu um contato mais estreito com esses sujeitos e com o campo analisado para a compreensão do cotidiano destes diante do consumo, especificamente de moda.

Dessa maneira, nesta pesquisa tentamos seguir a perspectiva de Foote Whyte com o método empregado em sua pesquisa e apresentada na obra “Sociedade de Esquina”, na qual o autor adentrou um bairro pobre em Boston - a que deu o nome de Cornerville - com a preocupação em compreender sobre o impacto social causado pelos avanços da urbanização nos grandes centros. A proposta do autor consiste em adentrar em um ambiente desconhecido e buscar descobrir todo o jogo de interação entre os frequentadores/membros desse respectivo espaço. Através da sua obra, Whyte revela passos importantes para o desenvolvimento da pesquisa qualitativa a partir da observação participante:

As atitudes de um homem não podem ser observadas, mas devem, em vez disso, ser inferidas a partir de seu comportamento. Como as ações estão diretamente sujeitas à observação e podem ser registradas como outros dados científicos, parece válido tentar entender o homem por meio do estudo de suas ações. Essa abordagem não apenas fornece dados sobre a natureza das relações informais de grupos, como também provê um quadro de referência para se compreender o ajustamento dos indivíduos à sua sociedade (WHYTE, 2005, p. 274-275)

Logo, a observação participante proporciona um olhar de descoberta do desenvolvimento do comportamento dos indivíduos ao longo da pesquisa, oferecendo ao pesquisador a apreensão de informações mais detalhadas a respeito do cotidiano deles. Por

86 isso, adentrar o campo fez-se necessário para este trabalho já que não seria possível captar a realidade do grupo de mulheres escolhidas como sujeitos da pesquisa, sem conhecer seu cotidiano em campo, sua relação com o consumo de moda dentro e fora da comunidade, assim como suas percepções a respeito da temática. As peculiaridades e descobertas que a observação participante apresenta não poderiam ser conhecidas apenas com um olhar externo e superficial acerca do bairro São José. O olhar de fora, em geral, está dotado de conceitos pré estabelecidos e suposições, enquanto o olhar próximo e de dentro do campo proporciona tanto a quebra de barreiras de preconceitos, como também, e em alguns casos, a confirmação de pressupostos.

Para Whyte (2005, p. 12), a observação participante é valorizada por ser, para ele, a expressão de uma posição ético-científica voltada para uma rica e detalhada compreensão dos fenômenos sociais, baseada no respeito aos indivíduos e/ ou grupos investigados. Dessa maneira, a vivência e convivência proporcionada pela interação com o campo representava uma análise mais profunda da sociedade para além do senso comum, preconceitos e estereótipos ao expressar ricos conjuntos de significados através de um sistema de relações entre grupos, redes sociais e interações individuais.

A partir da experiência de Whyte (2005), o autor mostra que por não saber onde está "aterrizando", o pesquisador desconhece muita vezes as teias de relações que marcam a hierarquia de poder e a estrutura social local e, por isso, equivoca-se por pressupor que detém o controle da situação. Segundo ele, a presença do pesquisador deve ser justificada, tendo em vista que o mesmo não se tornará "nativo" por mais que pense como um "inserido". Por isso, o pesquisador deve estabelecer um "distanciamento" afirmando e reafirmando seu papel de indivíduo "de fora", para não enganar os outros nem a si próprio em um ato de respeito e ética. Para Whyte (2005, p. 303), a observação participante implica em ouvir, ver e fazer uso de todos os sentidos; o pesquisador precisa aprender o momento para perguntar e quando não perguntar; assim como, quais perguntas fazer na hora certa, respeitando o tempo dos sujeitos da pesquisa, pois com o tempo, os dados poderão vir ao pesquisador sem que ele faça esforço para obtê-los.

Assim, tendo em vista que o olhar externo a respeito do consumo das mulheres de classes populares estabelece mistificações em torno desse objeto por se acreditar muitas vezes

87 que a moda (classificada como algo pertencente apenas a classes mais abastadas) não faz parte do cotidiano dessas mulheres seja pelo fator econômico ou cultural, assim como que elas vestem moda apenas no sentido de imitação a fim de se inserir no contexto social das classes dominantes, faz-se de suma importância uma aproximação com o bairro São José e seus sujeitos, respeitando sua realidade e o tempo para conhecer o universo de significados destes de forma a desmistificar as pressuposições em torno dessa temática.

Dessa maneira, foram desenvolvidos roteiros de entrevista com o intuito de aproximação com as moradoras, iniciando a partir de uma conversa que possibilitasse entender sua relação e formas de interação com o consumo de moda. Num primeiro momento, as entrevistas serviram para criar uma aproximação e maior familiaridade com as entrevistadas, deixando-as mais a vontade com a pesquisa e com a presença da pesquisadora, sempre como um diálogo, uma conversa informal, na tentativa de deixá-las a vontade para conversarem, ao mesmo tempo em que permitia conhecer a respeito dos seus interesses pela moda e sua relação com o consumo desta. Mais adiante, um roteiro de perguntas mais específicas foi realizado com o objetivo de aprofundar as questões e, especialmente, confirmar as análises e insights que vinham sendo desenvolvidos inicialmente.

Um roteiro de entrevista específico foi desenvolvido para ser aplicado aos comerciantes de moda do bairro, a fim de conhecer a realidade do comércio do mesmo. Esse passo foi importante para entender o circuito de compras e de informações sobre moda e consumo que se desenvolve no local e suas possíveis interconexões com outras esferas de consumo. A partir de conversas informais com as comerciantes de lojas de vestuário do bairro São José, foi possível uma maior compreensão a respeito das práticas de consumo de suas moradoras; permitindo um maior conhecimento sobre as diferenças estabelecidas entre a moda dentro e fora do bairro; a relação e emoções que envolvem e motivam as moradoras do São José a consumirem, além dos aspectos importantes do consumo de moda, especialmente no âmbito do popular.

No primeiro momento, os dados obtidos a partir da observação participante foram registrados através de um "diário de campo" que acompanhou todo o percurso da pesquisa. Quanto às entrevistas, o seu registro ocorreu através de um gravador de áudio (com a permissão de todas as entrevistadas) e, algumas vezes, também de maneira escrita no

88 momento da realização das mesmas, buscando acrescentar as observações pertinentes ao discurso, mantendo a fidelidade na transcrição das entrevistas, capturando os discursos criteriosamente na íntegra.

Embora alguns pesquisadores optem pela não utilização do gravador de áudio como ferramenta para aplicação das entrevistas, esta pesquisa faz uso desta para conseguir apreender o registro integralmente, facilitando o processo com relação ao ganho de tempo durante as entrevistas. Obtendo um resultado satisfatório quanto ao registro digitalizado dos discursos para o aproveitamento dos mesmos no processo de construção teórico- argumentativo, obtendo não apenas respostas, mas a noção total do momento da entrevista, o que permitiu uma análise para além do conteúdo, mas compreendendo o contexto no qual se apresentam as falas.