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3 MULHERES CHEFES DE FAMÍLIA E AS REDES ARTICULADAS

3.1 EXPLORANDO O CONCEITO DE CHEFIA FAMILIAR FEMININA

A compreensão do que pode ser denominado de chefia familiar feminina não é consenso na bibliografia produzida sobre a temática, existindo debates que levam em conta para a conceituação a manutenção econômica, as relações de poder e a ausência de uma figura masculina adulta no lar. Como forma de estruturar teoricamente o conceito, Sylvia Chant (1997)

buscou classificar as formações familiares nas quais a chefia feminina se encontra, sendo elas: lares onde as mães são solteiras, compreendendo mulheres advindas de diversos estados conjugais; lares extensos, que também abarcam variações conjugais, mas costumam ser constituídos por mulheres de idades mais avançadas; lares unipessoais; lares compostos apenas por mulheres, consanguíneas ou não, com ou sem filhas; lares com predominância feminina, onde há mais mulheres adultas, podendo haver homens em posição de dependentes destas; e lares chefiados por avós, formado por estas e seus netos.

A classificação de Chant (1997) contribui para uma compreensão da chefia familiar feminina para além da monoparentalidade, em uma concepção ampliada, abarcando outras possibilidades de lares nos quais há ausência da figura masculina adulta. No entanto, embora abrangente, tal classificação não representa por completo o fenômeno e autoras como Maria Gabriela Hita (2014) e Mary Mendes (2005) problematizam o critério da ausência masculina, considerando que não necessariamente a presença de um homem adulto o torna referência de chefia para a aquela família. As autoras, inclusive, depararam-se, em seus estudos, com formas de chefia femininas que teriam sido ignoradas se considerassem a ausência masculina uma premissa.

Hita (2014) define como critérios na definição da chefia: a propriedade da casa, a autoridade familiar em relação aos membros e a responsabilidade última pela família ou filhos. A autora opta por analisar as matriarcas, mulheres mães e avós, comumente idosas, em um tipo específico de chefia que, além destes critérios, possuem, ainda, um poder reconhecido sobre a família extensa e a comunidade em que se inserem. As situações conjugais das matriarcas pesquisadas por Hita (2014) não se constituíam imperativas para o enquadre das mulheres em tal categoria, mas, sim, as relações de poder estabelecidas e suas posições de lócus de descendência em suas famílias.

Além disso, a propriedade da casa é um critério importante para a autora, que constrói uma dupla simbologia para o termo, tanto se referindo à família ou aos arranjos domésticos, quanto como espaço físico onde as relações, os jogos de poder e as dinâmicas de trabalho e afeto se estabelecem. Hita (2014) parte do pressuposto de que a casa, materialmente falando, expressa os processos de ocupação da família, sendo construída, adaptada, expandida, herdada ou destruída em função das necessidades e que, no caso da chefia familiar feminina, o domínio deste espaço pela mulher se fundamenta enquanto parte de sua posição de poder.

Mendes (2005), por outro lado, opta por trabalhar com a definição de chefia familiar feminina exposta por Luíza Carvalho (1998) onde é possível encontrar três critérios de enquadre: a chefia familiar de jure, que ocorre quando o parceiro está ausente, podendo a

mulher ser ou não a responsável financeira; a chefia de facto, quando a mulher é a responsável financeira pela família, mesmo na presença de um cônjuge; e a chefia que abarca a um só tempo a ausência masculina e a mulher enquanto provedora. Assim, Carvalho (1998) e Mendes (2005) consideram a possibilidade da presença masculina, mas ancoram boa parte da definição de chefia na responsabilidade econômica.

Embora Carvalho (1988) problematize o uso do critério financeiro isoladamente, entendendo que este contribui para a depreciação da colaboração econômica oferecida pela mulher à família, é comum que estudos e censos demográficos utilizem justamente como critério, o sexo do provedor principal da residência. Também para Hita (2014) trata-se de um parâmetro impreciso, visto que, em muitos lares, o orçamento é composto de forma colaborativa por vários membros e, a depender da metodologia utilizada para a coleta dos dados, pode-se atribuir tendenciosamente o papel de provedor ao homem.

Na tentativa de evitar a projeção do papel de responsável econômico pela família, o censo brasileiro adotou desde 2000 a terminologia “responsável por domicílio”, em lugar da palavra chefia, utilizando o critério de auto identificação, de modo que as próprias entrevistadas definem alguém para a posição. Além de transferir para a população a responsabilidade pela definição prática do que compreendem pela responsabilidade, se alteram qualitativamente as informações coletadas no censo, visto que um domicílio é capaz de abrigar uma ou mais famílias conviventes, com chefias possivelmente diferentes, que ficam subnotificadas na nova nomenclatura.

Apesar da complexidade da definição conceitual, as mulheres e mães enquanto ênfases do sistema de parentesco formam um princípio de organização da rede familiar muito comum e enraizado no imaginário popular. Ruth Landes, antropóloga estadunidense, no clássico A Cidade das Mulheres, lançado em 1947 e Klass Wootmann, também antropólogo, em A Família das Mulheres, de 1987, já retravam a frequente matrifocalidade nos lares brasileiros, especificamente no estado da Bahia.

Parry Scott (1990), todavia, observa que a chefia feminina e a matrifocalidade não são equivalentes, sendo esta última uma ênfase nas relações do lado feminino da família mesmo na presença masculina, se traduzindo em relações mãe-filhos mais próximas, maior teia de relações do lado feminino, além de acompanhar mais representações simbólicas e culturais de personificação feminina na comunidade onde vivem. Trata-se de um princípio ideológico amplo que não se restringe a uma estrutura familiar em específico, e, por vezes, abarca, a um só tempo, uma chefia masculina e a identificação de familiares e parentes com uma figura feminina.

No entanto, a identificação matrifocal se torna bastante representativa nos lares de chefia feminina, servindo esta, inclusive, de indícios para a matrifocalidade de uma cultura. No Brasil, especificamente, a vulnerabilidade econômica e a desigualdade de gênero são correlacionados com o caráter matrifocal das famílias, uma vez que as mulheres continuam mais responsabilizadas pelo desenvolvimento afetivo das crianças, construindo relações mais qualitativas com elas, favorecendo identificações, ao mesmo tempo em que são, cada vez mais, responsáveis e corresponsáveis financeiras por seus filhos, tomando decisões sobre eles.

Embora refiram-se a conceitos diferentes, a posição de chefia feminina também implica matrifocalidade e não se restringe a estruturas familiares rigidamente estabelecidas, se referindo muito mais ao contexto e a uma junção de fatores que compreendem autoridade, renda e reconhecimento dos membros da família. Admite-se, conforme Scott (2011), a problematização da própria ideia de “chefia”, no entanto, concretamente, muitas mulheres assumem integralmente a responsabilidade sobre um grupo doméstico convivente, nomeado como ‘família’, sendo designadas chefes desta, ainda que se configure uma chefia que abarca, a um só tempo, reciprocidade entre os membros e a manutenção de hierarquias.

O próprio uso da palavra chefia, embora esteja carregado de um simbolismo que hierarquiza e reifica diferenças de poder, implica que a família pode ser, concomitantemente, um grupo solidário, de aliança e de reciprocidade entre seus membros, e uma malha de poder estabelecida em prol da construção da vida social cotidiana (SCOTT, 2011). Desse modo, são as dinâmicas de poder que predominam sobre a análise conceitual da chefia familiar, ainda que, concretamente, a manutenção financeira, a propriedade sobre a casa – ou sobre a terra, em localidades rurais -, a autoridade sobre os filhos e até a frequência ou qualidade da presença masculina no lar, se constituam fatores que interferem nas dinâmicas de poder, tensionando relações e posicionando os membros da família simbolicamente.