• Nenhum resultado encontrado

Expressão e linguagem

No documento O conceito de natureza em MerleauPonty (páginas 63-65)

3. Natureza como corporeidade própria

3.3 Expressão e linguagem

A distinção entre o conteúdo expressivo da motricidade humana e não humana também se encontra nas análises de Merleau-Ponty acerca das afasias. Para discorrer sobre o assunto, iremos nos apoiar em algumas exposições feitas pelo autor em sua caracterização da linguagem. Essas reflexões guardam importantes vestígios sobre o tipo de Natureza relacionada ao gesto expressivo implicado na análise do comportamento linguístico.

A primeira delas é o postulado sob o qual o filósofo francês caracterizou as psicopatologias, tal como havíamos mostrado no tópico anterior: tudo aquilo que possui uma estreita ligação com o Ser Natural apresenta, assim como este, seja uma patologia seja um comportamento pouco vivaz, uma pobreza expressiva85 que o afasta da maneira eficaz com que o corpo próprio normal habita as situações, uma vez que a vida humana solicita criação para que dela o sujeito motor tenha experiência86.

85

Ver por exemplo a distinção entre o grito e a linguagem articulada. A fala se distingue do grito porque este “utiliza nosso corpo tal como a natureza o deu a nós, quer dizer, pobre em meios de expressão, enquanto o poema utiliza a linguagem, e mesmo uma linguagem particular, de forma que a modulação existencial em lugar de dissipar-se no instante mesmo em que se exprime, encontra no aparato poético o meio de eternizar-se” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 209; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 176).

86

A frase é uma provocação que inverte o sentido de uma citação de Merleau-Ponty que Chaui (2002, p. 151) indica em seu artigo Obra de arte e a filosofia. O tom da instigação consiste no fato de que a Fenomenologia da

Percepção defende exatamente o que a retomada crítica de O visível e o invisível, lugar de onde a filósofa

brasileira retira a citação, tentou corrigir: o prejuízo humanista. Naquela obra, “vista do interior, a percepção não deve nada àquilo que nós sabemos de outro modo sobre o mundo, sobre os estímulos tais como a física os descreve e sobre os órgãos dos sentidos tais como a biologia os descreve. Em primeiro lugar, ela não se apresenta como um acontecimento no mundo ao qual se possa aplicar, por exemplo, a categoria da causalidade, mas a cada momento como uma re-criação ou uma re-constituição do mundo.” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 279; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 240, primeiro grifo do autor, segundo grifo nosso). A citação indicada por Chaui (2002) indica uma mudança radical de perspectiva, uma vez que é o Ser e não a percepção que exige de nós a criação para que dele tenhamos uma experiência.

As estereotipias do doente só podem iniciar uma conversa se a iniciativa parte do interlocutor; porém, se ele consegue esboçar um sentido linguístico, as questões nunca apresentam a riqueza das figuras de linguagem, pois, nas afasias, elas são relacionadas sempre a uma situação efetiva e nunca possível. A metáfora, a hipérbole e a metonímia são do ponto de vista lógico inverossímeis com a experiência que o afásico possui do mundo (MERLEAU- PONTY, 2006b, p. 265; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 228). No caso Schneider, embora a articulação da palavra conserve a integridade da inteligência geral, afirma Merleau-Ponty, nunca suscitam nele uma questão.

A segunda exposição, em decorrência da primeira, leva Merleau-Ponty a indicar dois tipos de expressão linguística: a fala falante e a fala falada. “A primeira é aquela em que a intenção significativa se encontra em estado nascente” e que não pode ser definida “por nenhum objeto natural”, pois é “para além do ser que ela procura alcançar-se” (MERLEAU- PONTY, 2006b, p.266-267; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 229). Ela pode ser identificada como uma expressão autêntica (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 636; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 207), a qual formula, pela primeira vez, uma semântica que lhe é própria e que se identifica com o pensamento.

Merleau-Ponty a entende ainda como uma fala originária, “aquela da criança que pronuncia a primeira palavra, do apaixonado que revela seu sentimento, a do ‘primeiro homem que tenha falado’ ou aquela do escritor ou filósofo que despertam a experiência primordial para além das tradições” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p.636; MERLEAU- PONTY, 1976, p.208). Entretanto, a palavra quando expressa uma significação nascente também carrega consigo sentidos já sedimentados, aqueles da fala falada, compostos por uma sintaxe e pelos signos linguísticos de que são feitas as novidades expressivas, pois “o ato de expressão constitui um mundo linguístico e um mundo cultural” somente na medida em que o faz “ser naquilo que tendia para além” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 267; MERLEAU- PONTY, 1976, p. 229).

É exatamente essa circularidade87, o vai e vem entre sedimentação e criação, que caracteriza a fala, ou seja, “o excesso de nossa existência sobre o ser natural” (MERLEAU- PONTY, 2006b, p. 267; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 229). Em outras palavras, “uma abertura recriada na plenitude do ser” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 267; MERLEAU- PONTY, 1976, p. 229, grifo nosso). Destarte, o corpo próprio está sempre enraizado na

87

“Em suma, uma vez apagadas as distinções entre o a priori e o empírico, entre a forma e o conteúdo, os espaços sensoriais tornaram-se momentos concretos de uma configuração global que o espaço único, e o poder de ir a ele não se separa do poder de retirar-se dele na separação de um sentido” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 299; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 256).

Natureza e ao mesmo tempo transformado pela cultura; diferente daquela, ele nunca se fecha sobre si mesmo.

Isso justifica, de modo efetivo, para Merleau-Ponty, nosso acesso tardio ao Ser Natural, tese muito familiar àquela defendida em A estrutura do comportamento, dado que o aspecto intersubjetivo na motricidade humana é originário. A criança identifica-se de antemão como membro de uma comunidade falante antes mesmo de poder reconhecer seu pertencimento à escala evolutiva das espécies naturais88, porque os gestos não humanos são entendidos como coisas e sua compreensão existencial é limitada do ponto de vista da significação. “Eu não ‘compreendo’ a mímica sexual do cão, menos ainda a do besouro ou do louva-a-deus. Não compreendo nem mesmo a expressão das emoções nos primitivos ou em meios muito diferentes do meu” (MERLEAU-PONTY, 2006b, 251; MERLEAU-PONTY, 1976, p. 215).

No documento O conceito de natureza em MerleauPonty (páginas 63-65)