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5. O EMPREGO DO PODER NACIONAL: ATUALIDADE E POSSIBILIDADE

5.1 EXPRESSÃO POLÍTICA

Destacam-se como funções desempenhadas pelo Estado, enquanto “máxima instituição da expressão política de um dado poder nacional” (ESG, 2018, p.50) a normativa, a administrativa e a jurisdicional. Para tanto, órgãos autônomos exercem, em um sistema de repartição de poderes, as operações fundamentais estatais, cada qual atuando na sua esfera de atribuição. A partir desta concepção, o enfrentamento eficaz aos grupos criminosos organizados pressupõe a estruturação consistente dos órgãos envolvidos na prevenção e repressão a essas práticas. Com esse propósito, foi promulgada a Lei nº 13.675, de 11 de junho de 2018 (BRASIL, 2018a), que cria a Política nacional de Segurança Pública e Defesa Social e institui o

Sistema único de Segurança Pública, tornando realidade, em última análise, os anseios doutrinários:

Devem ser estabelecidas metas de prevenção através de medidas legislativas de âmbito penal e administrativo; e de combate por meio de medidas penais, processuais penais e administrativas, com termos de urgência, para curto prazo, por exemplo com criação de forças-tarefas, e de médio e longo prazo, através da criação de estruturas mais sólidas e eficientes para os órgãos que necessariamente devem ser envolvidos em responsabilidade de tal nível – incluindo-se pelo menos Ministérios Públicos, Polícias e Secretarias da Fazenda e dos Estados. (MENDRONI, 2016, p. 35)

O aparelhamento e treinamento para maior eficiência das instituições investidas do poder-dever de combate à criminalidade organizada devem estar focados nos órgãos de inteligência, tendo em vista que o elevado número de prisões decorrentes de situação de flagrância delitiva, muito embora repercutam na segurança pública, geram baixo impacto na grande criminalidade. Assim, a produtividade, sem olvidar das prisões em flagrante, deve estar centrada nas ações de inteligência, viabilizando a obtenção de organogramas consistentes, com suficiente identificação dos membros da organização criminosa, de sua estrutura hierárquica e das ligações existentes no grupo. Ressalte-se que a investigação eficaz pelos órgãos de persecução criminal gera efeitos não só no sucesso das ações penais que venham a ser deflagradas pelos Ministérios Públicos com atribuição, como principalmente no desmantelamento desses grupos. A qualidade da prova em um processo penal tem o condão de legitimar os órgãos persecutórios, bem como tutelar os direitos humanos, inclusive os das crianças e adolescentes.

Como se verificou dos capítulos antecedentes, a comunidade internacional aderiu aos tratados de proteção das crianças e adolescentes, sendo também uma preocupação mundial a tomada de decisões conjuntas de combate ao crime sistêmico, podendo-se elencar como exemplo a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. Cuida-se, pois, de uma oportunidade para a Nação Brasileira que, alinhada às tendências mundiais, poderá engendrar esforços para aprimorar os sistemas gerenciáveis internos voltados para este fim.

Para tanto, as cooperações jurídicas e policiais internacionais, além das ações de inteligência para prevenir e investigar os crimes de tráfico de drogas transfronteiriços, devem ser fomentadas pelo decisor político ao traçar as linhas estratégicas. Neste sentido, uma orientação emergencial é que seja divulgado o Centro de Cooperação Policial Internacional (CCPI), instalado na Superintendência da Polícia Federal no Estado do Rio de Janeiro, de forma que seja cada vez mais naturalizada a atuação conjunta de policiais brasileiros e estrangeiros. Implantado durante os jogos olímpicos no ano de 2016 e resultado da parceria entre o governo brasileiro e a Interpol, o CCPI se tornou permanente, sendo uma ferramenta eficaz para o combate ao crime organizado.

Os Estados devem se amoldar às novas realidades do mundo globalizado, que demandam dinamismo e eficácia da prestação da tutela jurisdicional estatal e das ações policiais, integrando-se de forma abrangente e rompendo os limites fronteiriços, tal como os próprios delitos transnacionais. Não se pode mais fiar-se em auto-suficiência estatal, sendo imperativo que o aparato judicial/administrativo interno seja complementado, através da assinatura de tratados, convenções e protocolos, direcionados para o auxílio mútuo. Neste sentido está a diretriz da Constituição Federal: “o Brasil rege-se, nas relações internacionais, pelo princípio da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade” (BRASIL, 1988, art. 4º, inciso XI), o que se coaduna com o Direito Internacional Cooperativo.

Sob o enfoque normativo, merece atenção a Lei de Armas (Lei 10826/03), sendo fato notório que os grupos voltados para a prática do tráfico ilícito de entorpecentes, aqui abrangendo crianças e adolescentes, ostentam e exibem armas de fogo, muitas vezes longas e de grosso calibre, como meio de intimidação coletiva e de confronto com facções rivais e agentes policiais. Modificação salutar por força do Congresso Nacional na Lei do Desarmamento completou esse ano uma década, com a previsão de que as armas de fogo apreendidas, após a confecção do laudo pericial e devida instrução do processo, poderão ser destinadas aos órgãos de segurança pública ou às Forças Armadas (BRASIL, 2003, art. 25). A alteração ganha maiores ares de pertinência se pensarmos que as quadrilhas organizadas, como regra, mantêm armamento pesado e moderno, razão pela qual a sua

destinação, após apreensão, aos órgãos incumbidos da persecução criminal, viabiliza a sua utilização no desmantelamento desses grupos.

Ocorre que outras alterações na Lei de Armas devem ser operadas. Isto porque, muito embora o tráfico internacional de armas, acessórios ou munições de uso proibido ou restrito atraia a incidência dos artigos 18 c/c art. 19, ambos da lei 10826/03, alcançando o preceito secundário abstrato de 6 (seis) a 12 (doze) anos, observa-se uma brandura de penas no que tange ao crime de porte de armas de fogo de uso restrito, com restrição à escala de 3 a 6 anos de reclusão. Emergencial, desta feita, que se majore a pena em abstrato desse tipo penal, diferenciando-se o agente primário que não integra organização criminosa daquele que participa ativamente desta, através de gradações de penas conforme a gravidade da infração, de modo a atender ao Princípio da individualização da pena.

Ressalte-se, ainda, que a Lei de Drogas (Lei 11343/06) prevê, como causa de aumento de pena para os tipos previstos nos artigo 33 a 37 daquele diploma legal, ter sido o crime praticado com emprego de arma de fogo ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva (lei 11343/06, art. 40, IV), o que leva a um incremento na pena base fixada. Mas não basta. Com efeito, há muito o lucro auferido pelos grupos criminosos voltados ao tráfico de drogas não se exaure na comercialização das drogas, estendendo-se para a prática de outros crimes, que violam bens jurídicos diversos. Desse modo, o porte ou guarda de arma de fogo de uso restrito para fins de emprego em roubos de carga, crimes de homicídio, extorsões, não devem ser encaradas como mero meio de defesa da atividade do tráfico, tão somente por terem sido apreendidas no mesmo contexto fático da apreensão de drogas, mas sim como um delito autônomo e, na hipótese de também serem utilizadas na segurança do tráfico, igualmente como causa de aumento da Lei de Drogas, cumulando-se o tipo penal correspondente da Lei de Armas com a causa de aumento de pena da Lei de Drogas.

Na esteira desse raciocínio, o mesmo dispositivo da Lei 11343/06 (art. 40), prevê, como causa de aumento de pena dos tipos penais da Lei de Drogas, o envolvimento de crianças e adolescentes em sua prática. Andou bem o legislador porque, à luz dos preceitos protetivos dos nossos infantes, traduziu na norma a gravidade da circunstância. Esse exemplo normativo pode ser transposto para todos

os demais crimes perpetrados pelas facções de drogas que envolvam crianças e adolescentes. E explico: na prática, nos dias atuais, os crimes cujo pólo ativo envolva adolescente e que não estejam compreendidos entre os tipos previstos nos artigo 33 a 37 da Lei 11343/06, atraem a incidência do artigo 244-B do estatuto da criança e adolescente (BRASIL, 1990b). Além de o dispositivo prever uma pena branda, este gera acirradas discussões e decisões díspares nas varas criminais, ora se entendendo necessária a comprovação da efetiva corrupção do menor pelo agente maior de idade (imputável), ora bastando a prova do envolvimento de menor de 18 anos no crime. Sobre este aspecto, ressalte-se que a segunda opção, além de não exigir uma prova diabólica12, é mais consentânea com o verbete 500 da súmula de jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, o qual prevê que o crime de corrupção de adolescentes é formal, independendo a sua configuração da prova da efetiva corrupção do menor. A propositura seria, desse modo, estender aos tipos penais usualmente perpetrados pelas organizações de narcotraficantes – extorsão, lesão corporal, tortura, homicídio, ocultação de cadáver, roubos de carga, corrupção, lavagem de dinheiro, dentre outros – uma causa de aumento (e não somente agravante genérica) na hipótese de envolvimento de crianças e adolescentes.

Outra medida importante concerne à especialização das varas criminais estaduais para processo e julgamento dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, perpetrados pelas organizações criminosas, devendo-se asseverar que ambos os tipos penais contribuem decisivamente para a perpetuação e para o refinanciamento do crime organizado, o que demanda, portanto, uma estratégia de combate que os priorize. Os Ministérios Públicos Estaduais atuam contra as organizações criminosas e atividades ilícitas especializadas através dos Grupos de Combate ao Crime Organizado (GAECO) (MPRJ, 2010), o que permite investigações mais aprofundadas e produtivas. Contra o crime organizado não basta o conhecimento parcelado, sendo premente buscar a integração das áreas de fiscalização, inteligência, investigação e persecução criminal. De fato, em razão da complexidade da apuração de delitos dessa natureza, o trabalho, muito embora descentralizado, deve ser integrado, com amplo compartilhamento de informações,

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de modo a atingir as organizações criminosas e recuperar dinheiro, bens e valores de proveniência ilícita. Acerca ainda dos crimes de corrupção perpetrados no âmbito do crime organizado, devem ser fortalecidos os órgãos de controle interno e externo, voltados à apuração de desvios de conduta por parte de agentes públicos.

Confirmando o sucesso da criação das varas especializadas no âmbito federal, que visam o julgamento de crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores e aqueles praticados por organizações criminosas, cabe conferir o trecho a seguir descrito:

A criação dessas varas especializadas resultou em um bom indicador utilizado pelo Brasil nas periódicas avaliações de organismos internacionais de prevenção ao crime, como o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi). De outra parte, partindo do exemplo de sucesso que foi a Comissão formada no CJF para estudar medidas de aperfeiçoamento à aplicabilidade da Lei de “lavagem” de dinheiro, o Poder Executivo concebeu a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à “Lavagem” de Dinheiro (ENCCLA). Na mesma linha, as metas da ENCCLA propõem a convergência de diferentes órgãos para o estabelecimento de uma política de Estado – e não em meros programas governamentais – com maciço investimento em capacitação, estímulo à transparência e ênfase na cooperação jurídica internacional. Avanços como esses não podem ser freados. (DIPP, 2016, p. 25)

Necessária, outrossim, a implementação de políticas públicas visando o aparelhamento e fortalecimento dos órgãos incumbidos da segurança, bem como a previsão legal de reversão do valor do bem apreendido com o crime organizado para o aniquilamento do mesmo, além do direcionamento de valores advindos de medidas de transação penal no bojo dos Juizados Especiais Criminais para os referidos órgãos. Exemplo exitoso foi observado na Comarca de Angra dos Reis – RJ, em que valores advindos das transações penais celebradas no processamento das infrações de menor potencial ofensivo viabilizaram a continuidade do funcionamento do Instituto Médico Legal da região, órgão responsável pelas necropsias e, portanto, essencial para a instrução dos processos de julgamento de crimes dolosos contra a vida. Devem-se estruturar, de igual modo, os estabelecimentos prisionais e as entidades de cumprimento de medidas socioeducativas para que atendam à função ressocializadora das penas/medidas.

A formação dos Grupos de Força-Tarefa para atuação por prazo determinado, em situação de crise, aparece igualmente como uma orientação relevante ao decisor estratégico já que o combate real aos grupos organizados pressupõe a união das forças do Estado, com objetivo definido e concentrado. A este respeito, confira-se:

Os grupos denominados task-force (força-tarefa) são considerados pelos agentes norte-americanos o melhor sistema para o efetivo combate às organizações criminosas. Concebidos sob a ideologia da mútua cooperação entre os diversos órgãos de persecução detentores de atribuições variadas para atuação na área penal, reúnem-se e passam a trabalhar em conjunto, com unidade de atuação e de esforços, com o direcionamento para a investigação, análise e iniciativa de medidas coercitivas voltadas para o desmantelamento das estruturas criminosas, utilizando-se dos mais variados instrumentos de investigação e mecanismos legais (MENDRONI, 2016, p. 116).

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