• Nenhum resultado encontrado

Expressões de solicitude e de ser-com na relação gestante/feto: aspectos implícitos na prevenção do câncer do colo do útero

A solicitude em Heidegger (1981) é divisada como um estado de ser da presença que, de acordo com suas diferentes possibilidades, está ligada com o seu ser em relação ao mundo de seu cuidado, e, da mesma maneira, com seu ser em relação a si mesmo. O ser-com-os-outros está fundado e, com frequência exclusiva, naquilo que é matéria de cuidado habitual em cada ser.

A solicitude é orientada pela consideração e pela paciência. “O cuidar solícito é compreendido ao nível daquilo que estamos cuidando-com e juntamente com nossa compreensão dele”. Assim, o outro é, de imediato, desvelado na solicitude cuidadosa, como nos afirma Heidegger (1981, p. 44).

Nos depoimentos a seguir, surgiu o modo de ser-com da gestante com o feto na prevenção do câncer do colo do útero, relação em que o papanicolaou deixa de ser compreendido como uma forma de rastreamento ao câncer, passando a ser um fator de proteção ao feto. Então, em sua cotidianidade, a mulher demonstrou não adotar para si o cuidar da sua própria saúde, como uma decisão de autocuidado nessa prevenção, mas, de cuidado com- o- outro, seu bebê.

[...] Para poder não passar para o bebê! Para impedir que o bebê seja contaminado né? Com alguma bactéria ou algum

problema que venha dar, dar no resultado né? Lírio

Acho assim, prá criança num nascer com problemas, e também prá mãe ter uma gestação saudável.

Jasmim

Eu acho que... Não passar nenhuma doença para o nenê? Girassol

Porém, há de se considerar o processo de desconhecimento e de desinformação que permeiam tais discursos, pois neles, ficou evidenciado que a gestante desconhece que o câncer não é uma doença contagiosa e, por conseguinte, não tem como atingir o feto, a não ser em

condições extremas que dificultem o processo parturitivo, mas, mesmo assim, não há contaminação na perspectiva visualizada pela gestante.

A solicitude que imbrica as características básicas de ter consideração para com o outro e ter paciência com o outro está explícita na fala:

[...] Aí eu conheço muitas pessoas que tem muitos problemas na gravidez, passou para a criança e a criança... Não quero isso para o meu filho![...] Violeta

Para Heidegger (1981), ter consideração e paciência com os outros não são princípios morais, mas, maneiras de como se vive com os outros, através das experiências e expectativas. Esse depoimento desvela a relação que se estabelece com o que é experienciado nos contatos com outras pessoas, despertando, na gestante, o zelo pela criança que está chegando a esse mundo, e este mundo vivido preexiste a qualquer análise que se possa fazer dele. Está aí para ser conhecido como é, sem a necessidade de maiores explicações ou justificativas (GOMES, 1997). É nele que a gestante irá vivenciar a solicitude.

Na fala de Margarida, encontramos a expressão da solicitude quando ela se refere que fez o preventivo quando estava gestante, nunca o havia realizado em momentos anteriores. Compreendi então que, por zelo e cuidado com a vida que estava gerando, ela realizou o papanicolaou, mesmo com o receio de que o diagnóstico pudesse oferecer algum resultado negativo. Passa essa impressão quando diz: [...] graças a Deus não deu nada [...]. Mesmo com o temor, expressou a solicitude de ser-com a criança que está em seu ventre. Notei então, que o cuidar da saúde ginecológica foi pontual e se deu porque ela se sentiu responsável pela saúde do bebê:

Porque eu mesma não vou mentir [...] Eu nunca tinha feito preventivo na minha vida, mas graças a Deus não deu

nada (dando ênfase ao trecho “graças a Deus”). Margarida

Em Ferreira (2011, p. 146-148), encontramos a descrição de que a estrutura ser-no- mundo é constituída pela unidade dos existenciais do “ser-em, ser-junto-a e ser-com”. Esses existenciais são primários, originários e inseparáveis do ser-no-mundo. Enquanto ser-em, a presença é e está lançada no mundo, ser-junto-a, ela toca e é tocada pelo mundo, e ser-com é a abertura para o outro, é encontrar-se em uma relação de solicitude com outra presença. Portanto, a solicitude é o modo como onticamente conhecemos o ser-com. Dessa maneira,

pode-se dizer que o termo “com” responde pelo caráter de abertura da presença para a compreensão do ser do outro e de sua coexistência.

Da parte de Jasmim, percebi solicitude, quando ela diz:

Acho assim, prá criança num nascer com problemas, e também prá mãe ter uma gestação saudável. Jasmim Esse depoimento conduziu-me à compreensão do modo de abertura e disposição da gestante para o cuidado com o seu estado gestacional e com a integridade da vida da sua criança. A disposição é que possibilita um dirigir-se para. Essa gestante entra numa relação de abertura com uma presença e outra, e, portanto, a solicitude se torna imprescindível para a constituição ontológico-existencial do amor. Ela demonstrou assim o sentimento de amor pela criança. Para Ferreira (2011a), o afeto do amor é impensável sem a abertura de uma presença para o outra.

Compreendi, portanto, que ser-com é o constitutivo de nós. Eis o motivo por que o cuidado em saúde, nesta tese, vislumbra a gestante que cuida da sua criança ainda no ventre, apontando que o cuidado não é possível sem a presença do outro; a mãe é cuidada por profissionais de saúde, e ela cuida a partir, também, dos cuidados profissionais. Então, o ser- com se dá sempre num mundo compartilhado.

Porém, como nos diz Gadamer (2011), vivemos cada vez mais em um ambiente transformado pela ciência, um meio que quase já não ousamos mais chamar de natureza, ao mesmo tempo em que temos de viver em uma sociedade modelada pela cultura científica da era da modernidade. Sociedade regida por milhares de normas e regulamentos que acabam por assinalar uma crescente burocratização da vida.

Assim sendo, mesmo num mundo compartilhado, há a interferência da burocracia que estabelece uma distância no encontro entre profissional/cliente, e, portanto, há a necessidade de se resgatar a singularidade que não se localiza na doença, mas, no milagre da saúde (GADAMER, 2011).