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FABULAR É CRIAR CAMINHOS E SEGUI-LOS COTIDIANAMENTE

3 COTIDIANOS, RIZOMAS E EXPERIMENTAÇÕES: ENTRELAÇAMENTOS DAS

5.1 FABULAR É CRIAR CAMINHOS E SEGUI-LOS COTIDIANAMENTE

Figura 33 – Fabular é criar caminhos... Fonte: imagem produzida pela escola.

Em conversa com as crianças da escola em pesquisa, fui indagada sobre o que fazia ali com elas e se seria, também, uma professora. Ah, você veio para ajudar a

nossa professora! Na verdade, disse estar ali para fazer uma pesquisa em currículo

com as crianças daquela sala e das outras salas de aula também. Engraçado que eles gostaram da palavra currículo e precisei repeti-la por várias vezes. Pelo jeito a palavra chamou atenção... tanto que um grupinho, com um sorriso meio abafado, cochichava entre si. Dirigiri o olhar para eles e fiz um gesto com os ombros e com as mãos como se não soube o motivo de tanta graça. E de fato não sabia. Percebi que eles estavam rindo da primeira sílaba da palavra currículo: Ih, você falou um

palavrão... E quem disse que a palavra currículo é um palavrão, heim? Currículo pode ser o que vocês fazem todos os dias na escola, e também, o que vocês não fazem... Bom, fui tentando fazer com que eles se aproximassem de uma certa ideia

de currículo. No entanto, isso não estava planejado, pois não tinha pensado em indagar com elas os possíveis sentidos da palavra currículo. Como elas demonstraram interesse, acabei entrando no jogo.

Figura 34 – O devir-mestre do aluno.

Fonte: imagem produzida pela pesquisadora.

- Tem gente aqui que só faz bagunça. A tia manda sentar, não senta; a tia manda fechar a boca, não fecha; a tia manda fazer o dever, não faz... (Julia - informação verbal)

- É, e conversa o tempo todo! (Milena - informação verbal)

- E o Jonatan? “Se acha”, ele pensa que é um professor!

- Eu gosto de falar muito mesmo... É porque eu gosto de fazer mil coisas ao mesmo tempo. Ah, eu sou assim... Fico andando para lá e para cá e não paro nunca! Eu misturo capoeira com luta. Não dá para separar! Será que pode misturar? Eu misturo tudo! (Jonatan - informação verbal)

- Eu gosto de vir para escola, de fazer dever de casa; eu queria fazer prova, mas a professora não deixa (Evelin - informação verbal)

- Ah, eu gosto muito daqui... Das minhas colegas... A gente brinca, mas também faz muita atividade. Tem vez que a professora enche o quadro de dever! (Tamires - informação verbal)

Será que o Jonatan quer ser um professor? Achei que não era nada disso. Ele quer inventar um currículo errante, viajante, que se conecte com seus amigos super- heróis, trazendo mais alegria e humor para dentro da sala de aula! Ele introduz acontecimentos no currículo já formado, no qual a alegria nem sempre é bem vinda, risos demais atrapalham a aprendizagem, conversas então, nem se fala! Para

conseguir isso, ele cria um devir-mestre quando a professora dá uma saidinha da sala; aí ele aproveita e coloca todo mundo sentado na roda para ouvir suas mil e uma histórias inventadas, pedindo silêncio, organizando as falas. Explorando seu devir-mestre, Jonatan foi dizendo aos amigos, como ele se referia, que foi a Belo Horizonte, que pegou o avião e foi voando assim rodopiando pelo céu; viu montanhas e cachoeiras... Ele mesmo pilotava segurando o controle do avião para lá e para cá – mas ele não pilotava sozinho, um coro de zumbidos de motores o acompanhava. Disse que visitou seus amigos que eram todos super-heróis, muito embora tinha um com a perna quebrada – motivo de algazarra total.

Na ocasião do conselho de classe, foi sugerido à sua mãe que não o deixasse mais assistir televisão ou a filmes porque é um perigo! Ele quer ser os personagens dos filmes, inventa lugares, ora ele quer ser um animal, ora ele quer ser um super- homem; dando a entender que “temos que aceitar o que somos!” Mas, em se tratando de assuntos relacionados ao seu desenvolvimento e sua aprendizagem ele é muito bom, dá conta de todo o dever, faz tudo, é muito interessado, o único problema é que ele quer ser sempre o que ele não é.

Ao pensarmos em questões relativas ao campo curricular, nos deparamos com determinações (não sei se tradicionalistas ou construtivistas, mas isso não importa saber) de certos e errados na forma de enquadramentos e classificações que, no caso do Jonatan, visam alertar sobre os perigos da experimentação. Na vida, temos que aceitar o que somos? A potência da vida está exatamente na transformação, naquilo que podemos nos tornar, atualizando outras maneiras de fazer. Nada do que

Figura 35 – “Eu sou assim”: Meu tempo é hoje! Fonte: imagem montada por uma criança.

Em um currículo inventado, Jonatan, com apenas seis anos, quer arriscar por caminhos não andados, por um caminho que se faz ao caminhar, estabelecendo outras relações com a aprendizagem e com a escola. Assim, deixando para trás “as verdades” ditas sobre o que pode e o que não pode fazer, Jonatan, ao fabular sobre si e o mundo, opõe-se às verdades constituídas. Todo currículo instituído carrega algumas concepções de sujeito e subjetivação. Mesmo que ele esteja focado na transmissão de conhecimentos e na questão da cognição, o currículo não se esquece do sujeito que ele quer formar, colocar na forma, projetar, preparar. De fato, não faz sentido para Jonatan habitar a escola sem conversar e se movimentar o tempo todo, ele conversa ao mesmo tempo em que faz todas as atividades: eu não

consigo parar, eu misturo tudo! Será que pode misturar? O que achamos estranho?

Figura 36 – Uma boca ardente, sem dente... Fonte: Imagem produzida por uma criança.

A criança toma posse da escola para acontecer com ela. Acontecer com a escola vem junto com o desejo de transformá-la e trata-se, neste caso, de um exercício de pensamento outro que provoca um embaralhamento nos caminhos traçados a priori, nos lugares pré-determinados. Jonatan não se limita diante das tentativas de disciplinamento fazendo usos de um pensamento que só se encontra nas margens, inacabado, sem ser hegemônico. Sua vocação não é ficar isolado, mas, ao contrário, fazer redes, estabelecer conexões. Um pensamento assim enredado não quer que pensem em seu lugar ou que falem em seu nome, porque não consegue manter-se neutro ou indiferente ao que lhe acontece. Um pensamento enredado quer implicar- se, afinal, ninguém consegue sair ileso de um encontro com o currículo e com a escola, principalmente diante de relações tão assimétricas de poder que não valorizam o que as crianças têm a dizer. Quantas narrativas curriculares sobre as crianças? Quantas narrativas curriculares com as crianças?

Pensando na possibilidade de criação curricular com as crianças, que se difere muito de uma proposta curricular para as crianças, a relação entre imagens e narrativas pode abrir caminhos para a fabulação e a ficção como forma de inventar outros sentidos sobre a escola e as práticas curriculares tal como evidenciado na fala da Ana: “Aqui, Ariele, eu achei uma foto que tem você. Aí você chega em casa e

fala: olha aqui mamãe, eu e minhas amigas na escola...”. Ou seja, o que fica de mais

gostoso na escola, além das aprendizagens, são as amizades, aquelas amigas de que não esquecemos mesmo quando crescemos!

- Tia, eu posso levar essa foto? (Ariele - informação verbal)

- Ah, mas por quê? (Angela - informação verbal)

- Para botar no meu computador; para mamãe ver e achar bonito; para ficar pendurada... (Ariele - informação verbal)

- Mas não tem nem você nessa foto, Ariele, como é que você vai levar? (Ana - informação verbal)

- Aqui, Ariele, eu achei uma que tem você. Aí você chega em casa e fala: olha aqui mamãe, eu e minhas amigas na escola... (Ana - informação verbal)

- Eu vou levar e guardar bem guardada, porque quando eu “querer” eu olho. (Ariele - informação verbal)

- Eu posso levar as dos bichinhos também, tia? (Ariele - informação verbal)

- Pode, mas só depois que acabar a oficina com as fotografias. (Angela - informação verbal)

- Mas você não vai deixar ninguém pegar, senão vão misturar tudo, aí eu não vou achar mais... (Ariele - informação verbal)

Não tenho a intenção de usar as imagensnarrativas como documentos de verdade que atestem isto ou aquilo. Até porque não se fabula com uma verdade universal e nem com uma realidade dada e constituída, exatamente porque a fabulação é aquilo que, em vez de reproduzir o vivido, inventa pensamentos ainda não pensados. A fabulação é criadora, porque não se dirige ao que já está suposto pelos sistemas hegemônicos. Em compensação a fabulação se movimenta nas margens, naquilo que se mantém em estado de minoria. E se o currículo pode ser menor, não é porque ele é feito com as crianças, mas porque ele apresenta outra versão que, a partir da leitura de Gilles Deleuze, Silvio Galo (2002) chama de uma sub-versão, ou seja, versões menores inscritas na versão institucional, maior, hegemônica.

Figura 37 – Oficinas de fotografia com as crianças. Fonte: imagem produzida pela pesquisadora.

As minorias e as maiorias não se distinguem pelo número. Uma minoria pode ser mais numerosa que uma maioria. O que define a maioria é um modelo ao qual é preciso estar conforme: por exemplo, o europeu médio adulto macho habitante das cidades... Ao passo que uma minoria não tem modelo, é um devir, um processo. Pode-se dizer que a maioria não é ninguém. Todo mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 209).

Para Deleuze e Guattari (1992, p. 222) “a fabulação nada tem a ver com uma

lembrança mesmo amplificada [...]. Com efeito, o artista, entre ele o romancista, excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. É um vidente. Alguém que se torna [...]”. Como pode-se perceber, a fabulação excede o vivido,

coloca-se para além da narrativa da experiência, pois não há obrigação de se “apropriar” da “realidade” como um objeto inerte, sem vida, mas criar outras realidades, sempre em movimento, em transformação, por meio de outros olhares, vindos de outros lugares, não lugares. Ao invés disso, as fabulações das crianças que são uma minoria fazem desta uma memória. A memória de um aprendiz, que

feito um egiptólogo, decifra os signos (DELEUZE; GUATTARI, 1992) emitidos pelos objetos e pelas relações estabelecidas com a escola, com o currículo, com as pessoas, para, assim, tentar decifrar o que acontece ao redor.

Talvez esta seja a importância política da fabulação que consiste em produzir novas percepções e sensações que desafiem o pensamento instituído, fazendo abrir à vida novas possibilidades para além da reprodução. Nessa perspectiva, a fabulação se torna um ato de fala que possibilita a ficção de si e do mundo.

Figura 38 – Fazer e fazer e fazer até ficar diferente! Fonte: imagem produzida pela pesquisadora.

“Se a criança não pára de dizer o que faz e o que tenta fazer” [...], tal como escreve

Deleuze (1997, p. 73), talvez possamos considerar que a irrupção de uma memória consista em aproveitar a ocasião para fazer desta um meio de transformar os lugares em que se encontram. Para Certeau (1994, p. 163), por exemplo, esta é uma questão essencial na qual o tempo se articula num espaço organizado,

instalando uma memória num lugar que não lhe é próprio. Para este autor, “longe de

ser o relicário ou a lata de lixo do passado, a memória vive de crer nos possíveis, e de esperá-los, vigilantes, à espreita”. A partir disso, podemos afirmar, então, que as

diversas maneiras de “fazer” representam a vitória de uma memória, por meio das quais os praticantes do cotidiano inventam a si e ao mundo, instituindo uma nova ordem social, formando uma rede antidisciplinar, tal como descrita por Certeau (1994), interrogando a suposta hipótese de que todos nós estaríamos entregues à passividade e à disciplina.

Se é verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que “maneiras de fazer” formam a contrapartida, do lado dos consumidores (“ou dominados”?), dos processos mudos que organizam a ordenação sócio- política (CERTEAU, 1994, p. 41).

De acordo com a perspectiva de minha abordagem teórico-metodológica, torna-se necessário problematizar a ideia de currículo como prescrição (FERRAÇO, 2005) por meio da qual se veicula uma imagem platônica (KOHAN, 2003) de infância que se caracteriza pela inferioridade e negativização da criança, pois, nessa imagem, a criança é marcada pela falta ou pela insuficiência, seja na inteligência, seja no controle de si mesma e também pelo excessivo apego às paixões. Essa imagem parece que ainda é a nossa, presente fortemente no pensamento pedagógico. Ela é viga mestra de uma política curricular moldada por meio dessas características. Percebemos também que toda essa construção sobre a criança está fortemente marcada por relações de poder/saber. É a partir do conhecimento de um objeto ou sujeito que se exerce poder sobre ele – quem mais sabe sobre uma coisa ou pessoa tem o poder de dizer como ela é, do que precisa, enfim, de falar por ela, identificá-la, representá-la.

Para o pensador Michel Foucault (2004), o poder disciplinador consiste na utilização de métodos que permitem um controle minucioso sobre o corpo através dos exercícios de utilização do tempo, espaço, movimento, gestos e atitudes, com a única finalidade de produzir submissão. A escola é o espaço onde o poder produz saber: na escola, a criança é observada, adaptada, explicada, contada

detalhadamente. Tudo isso permite construir conhecimentos sobre a criança como se já soubéssemos quem são elas (de acordo com a faixa etária e níveis de desenvolvimento), o que necessitam (como, quando e onde) e desejam.

Mesmo desmascarando os efeitos do poder disciplinador, ainda há o que falar da escola? É impressionante a força que a escola pública exerce sobre nós; ela faz parte da nossa vida! Mesmo depois de tantos anos de trabalho, continuamos acreditando nela e no seu poder de pensamento. Talvez seja por isso que me coloquei a pesquisar suas relações criadoras com o currículo na tentativa de enfraquecer os poderes da homogeneização que a desqualifica, fazendo-a se sentir desimportante. A imagem que segue abaixo nos ajuda a pensar sobre isso. Pelo que pude perceber, só foi uma menina levantar para jogar um papel amassado dentro da lixeira que os demais desviaram o olhar da televisão dando total atenção ao que ela esboçou falar para os colegas.

Figura 39 – Os vazios da imagem clichê. Fonte: imagem produzida pela pesquisadora.

Como diz Larrosa (2004a, p. 185), “[...] a alteridade da infância é algo muito mais

radical [do que as forças da disciplinarização]: nada mais, nada menos que sua absoluta heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo, sua absoluta

diferença”. A infância é a presença de algo que coloca em questão os lugares que

construímos para ela, que suspende o que podemos, que escapa ao que sabemos, nos tirando da zona de conforto sobre tudo que aprendemos. Segundo Larrosa (2004a), a verdade da infância não está no que dizemos dela, mas no que ela nos diz no encontro e no acontecimento de sua aparição entre nós, como algo de novo que interrompe as relações de manutenção em currículo.

Embora esteja a problematizar a ideia de currículo como prescrição de um único caminho a ser seguido, não negligencio a necessidade do planejamento, não é isso que coloco em questão. O que destaco no processo de criação curricular é uma abertura que se apresenta como uma duração a ser experimentada, capaz de introduzir uma transformação; um modo de fazer com, que pressupõe a participação das crianças.

Isso fatalmente implicará mudança do rumo e da direção do que foi planejado inicialmente, como, de fato, geralmente acontece, mesmo a contragosto daqueles que queiram garantir a reprodução de um determinado modo de fazer, tido como o mais correto e o mais verdadeiro, escolhido por aqueles que têm força hegemônica. Quer queiramos ou não, nunca temos o controle sobre os usos (CERTEAU, 1994) que são feitos pelas crianças daquilo que ensinamosaprendemos na escola. Nesse sentido, não há um currículo, mas múltiplos currículos em construção, a partir dos quais, segundo Ferraço (2005), somos levados a considerar as diversidades de

possibilidades que se colocam no cotidiano da escola para o conhecimento e, por efeito, para o currículo [...].