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3 INVESTIGANDO O QUARTO: RECORTES HISTORIOGRÁFICO E

3.3 A FALA DE EDUARDO DE ASSIS DUARTE

A primeiras frase do capítulo de abertura, intitulado “Entre Orfeu e Exu, a afrodescendência toma a palavra”, do livro Literatura e afrodescendência no

Brasil: antologia crítica, publicado em 2011, já arrebata: “Pode o negro falar?”

(DUARTE, 2011, p.14).

De acordo com o que traz a nota preliminar do livro, os negros sempre falaram. Entretanto, em meio à possibilidade de se expressar, Duarte (2011)

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pontua os elementos que constituíram uma trajetória, normalmente marcada pelo processo de superação, primeiramente das condições desumanas de vida, e, posteriormente, em razão de ter que dominar, paulatinamente, um código linguístico estrangeiro, tutelado pelo dominador, a fim de manifestar sua cultura. Sobre os elementos sobreviventes da cultura, o crítico destaca a importância da tradição milenar dos griots, para a perpetuação cultural africana.

Duarte traça um percurso da literatura afrodescendente no decorrer do século passado, enquanto movimento de consolidação cultural dessa etnia. Salienta a relevância da Primeira Conferência Hemisférica dos Povos Negros da Diáspora, ocorrida em 1987, em Miami, cuja reflexão recaiu sobre o destino do negro no mundo moderno. A partir dessa conferência, há uma tomada de consciência da condição da realidade do sujeito negro, com vistas ao combate contra a opressão e a desigualdade. Após esboçar um panorama mundial sobre o movimento negro no mundo, Duarte (2011) afirma que, ainda que intuitivamente, há um diálogo ideológico entre tal movimento com a produção dos escritores afro-brasileiros.

No que diz respeito à literatura afrodescendente, menciona a sua quase ausência nos manuais de literatura brasileira, contribuindo para a sua não institucionalização no cânone. Quando são mencionados alguns nomes de escritores afro-brasileiros, esses são condicionados por fatores que deturpam o seu contexto de produção, o que os coloca numa condição de alienação frente à situação de sujeitos oriundos de uma circunstância escravagista.

A produção literária afro-brasileira normalmente é reduzida a um texto de menor qualidade, o qual está vinculado à questões da oralidade, ou é depreciada em seu valor estético, por não estar de acordo com um padrão canônico:

[...] a literatura proveniente desse segmento da população passa quase sempre por algo restrito à oralidade, por artisticamente inexpressivo e até por inexistente. Tal situação se prolonga por décadas seguidas e requisita trabalhos com vistas a, no mínimo, relativizar tais interpretações e julgamentos. (DUARTE, 2011, p.19-20)

Enquanto tece comentários sobre a política da miscigenação como redentora do país, ou sobre o discurso da tolerância, propagado por intelectuais da década de 1930, como Gilberto Freyre, no intuito do apagamento das

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diferenças étnicas, ou até mesmo com finalidade de obliteração do genocídio do negro brasileiro, assim como também na afirmação da convivência harmoniosa entre etnias coexistentes, Duarte vai construindo um discurso calcado sob o signo da exclusão. O lugar de fala do negro brasileiro é determinado, desse modo, por um conjunto circunstancial enraizado na tradição eurocêntrica, ainda atuante, disfarçado de política da democracia racial. O racismo enrustido preestabelecia o lugar de fala de uma classe étnica sempre relegada ao ostracismo.

Com a tomada de consciência dos sujeitos, cuja etnia é africana, o professor anuncia: “Mas o mundo gira” (DUARTE, 2011, p.25) e alguns paradigmas sociais e culturais são repensados. Dentro de um contexto de reformulação conceitual, entre as décadas de 1960 e 1970, que solicitava a democratização das vozes antes silenciadas, a literatura se faz presente enquanto instrumento de denúncia e enquanto arma de resistência de uma parcela da população, antes apartada de um sistema sócio-cultural. Também pelo ponto de vista artístico, os movimentos negros tomam a frente de seu discurso, e lutam em defesa de suas causas, seja no âmbito internacional, ou nacional: a condição subalterna ganha força na voz coletiva, e ultrapassa fronteiras espaciais e temporais.

Sobre a literatura afrodescendente, Duarte afirma que os primeiros estudos mais consistentes foram oriundos dos pesquisadores estrangeiros e datam da década de 1940. Paulatinamente, outros estudiosos se debruçaram sobre a tônica afro-brasileira, mas ainda, em sua grande maioria, analisando o negro como tema, em detrimento de sua voz autoral. Antes da virada do século 2000, há um redimensionamento da importância da escrita afro-brasileira, respaldada pelo fortalecimento do Movimento Negro49, em virtude de novas necessidades críticas das ciências humanas, que também reverberou nos estudos literários.

A consolidação dos estudos críticos literários sobre a escritura afrodescendente vai sendo apontada por Duarte, cuja preocupação também

49 Duarte (2011) menciona, sobretudo, a relevância de Cadernos Negros para a consolidação do

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recai em demonstrar a relevância das obras teóricas para essa abordagem epistemológica. Entretanto, salienta que, embora tais estudos estejam em franco desenvolvimento, eles ainda não dão conta de abarcar toda a diversidade e a complexidade que marcam a produção de origem africana, ou seja, ainda esse percurso crítico encontra-se em processo de constituição. Há uma evidente necessidade de ampliação conceitual dessa produção, em termos de pesquisa, assim como em termos de divulgação.

Dentro do contexto apresentado, a proposta dos estudos de Duarte é resgatar e revisar a historiografia literária, a fim de revelar outros nomes até então pouco, ou nada, difundidos. Duarte deixa claro que, por se tratar de uma antologia, há limitações, no tocante à seleção dos escritores, entre homens e mulheres, afro-brasileiros, ainda que a pesquisa tenha contado com a articulação de diversos centros de pesquisa do Brasil. Foram mapeados um total de 250 escritores afrodescendentes, cujas publicações foram esparsas ou limitadas à obras coletivas, que mantiveram vínculos com sua cultura materna, sendo que a maioria deles produziu no século XX.

Para o primeiro volume da antologia, intitulado “Precursores”, foram eleitos um total de 100 nomes, em razão, também, do volume do empreendimento, caracterizando uma expressiva amostragem dessa produção. Há uma opção por textos impressos, em detrimento da literatura oral, bem como a seleção de textos de ficção e de poesia, excluindo, assim, a produção ensaística, por exemplo. O primeiro volume é organizado em ensaios, que discorrem sobre a vida e a obra de cada escritor, bem como apresenta a relação de publicações, o estudo crítico e as referências bibliográficas. O ensaio destinado à vida e à obra de Carolina Maria de Jesus é assinado por Marisa Lajolo.