• Nenhum resultado encontrado

3 INVESTIGANDO O QUARTO: RECORTES HISTORIOGRÁFICO E

3.1 O OLHAR DE LUCIANA STEGAGNO-PICCHIO

Fazendo uma retrospectiva histórico-literária em seu livro História da

literatura brasileira, publicado em 1997, na Itália, e em 2004, no Brasil, Luciana

Stegagno-Picchio aponta, no primeiro capítulo, intitulado “Caracteres da literatura brasileira”, como o negro é retratado, nos primórdios da literatura brasileira, afirmando que ele aparece muito discretamente, apenas como “um toque de colorido” (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 34). Posteriormente, de acordo com a historiadora, o negro aparece na literatura, sob a forma de personagens estereotipadas, como moleques serviçais, que cresciam junto aos meninos das casas-grandes, mucamas luxuriosas, irmãos de leite de cor e mães- pretas cantoras e contadoras de canções e de lendas, por exemplo. Além dessas figuras cristalizadas, que permearam a nossa literatura, Stegagno-Picchio (2004) também cita a importância dos elementos religiosos africanos, amalgamados ao

65

catolicismo – o que acabou por promover o sincretismo religioso brasileiro –, tiveram para as letras nacionais.

Para além desses fatores que transitam pela nossa literatura, a intelectual italiana também traz à baila a condição humana degradante, em virtude da exploração da mão-de-obra do negro, no sertão do Nordeste do Brasil, durante os ciclos da cana-de-açúcar, do cacau e do café. Stegagno-Picchio estende-se até a literatura da Amazônia, reiterando a situação de miserabilidade humana, realizada pelo homem, contra o próprio homem. Dessas histórias, reais e/ou fabuladas, surge o cabedal folclórico brasileiro, também tutor de uma parte da cultura do nosso país.

A historiadora ainda afirma que “O folclore do Brasil é compósito, como compósita é toda a cultura do país” (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p.35), na medida em que abriga outras fontes literárias populares, também de tradição oral, como a indígena, a portuguesa, a negra, dentre outros textos literários, oriundos de culturas distintas, como os contos e os provérbios, pertencentes aos imigrantes que aqui vieram tentar a vida.

Stegagno-Picchio (2004), além de fazer uma incursão pelo regionalismo brasileiro, a fim de cartografar a presença do negro na cultura do nosso país, também se insere nos grandes centros urbanos, para mostrar a intersecção cultural dessa etnia em outros recantos do país:

Mas o Brasil não pode ser visto apenas em termos de sertão e folclore. Junto às casas-grandes de plantadores de café surgem os arranhas- céus de São Paulo, do Rio, de Porto Alegre. Nas cidades, negros e mulatos são símbolos de música e carnaval: mas também de favela, onde a fome confina, em lazaretos de miséria e vício, de zombaria e álibi carnavalesco, gente de cor. (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p.36)

Nesse sistema heterogêneo, formador da cultura popular do Brasil, ainda que tenha consciência da relevância da cultura negra para a consolidação da cultura nacional, influenciando-a diretamente, o negro é sempre representado pela palavra de outrem. Fica evidenciada a natureza simbólica do negro no universo cultural brasileiro. Entretanto, apenas enquanto objeto simbolizado, não como sujeito de seu próprio discurso.

66

Além de trazer um breve panorama sobre como as distintas culturas permearam nosso universo literário, o livro de Stegagno-Picchio (2004) também destina o capítulo décimo quinto, cujo título é “As letras brasileiras de 1945 a 1964”, para tratar do cenário social e cultural desse período. Conforme vai tecendo o painel histórico e cultural do país daquela época, Stegnagno-Picchio salienta os aspectos em torno da criticidade, no tocante à sociedade, também em termos políticos, empreendidos por sujeitos que se dedicaram à atividades de produção intelectual brasileira, independente do setor de atuação. O que a historiadora evidencia é uma mentalidade de pendor denunciativa, a partir de 1945 – com a “Geração de 45” –, que retrata o estado das coisas, fruto da ideologia do desenvolvimento, e do subdesenvolvimento.

Sobre a ficção brasileira dos anos de 1960, destaca a inovação da produção literária, ao ponto de a enaltecer frente à produção de seus vizinhos hispano-americanos, uma vez que os escritores brasílicos já faziam parte de um sistema cultural de massa. Cita os nomes mais representativos daquela época, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, mencionando que outros autores também seguiram pelo caminho dos dois escritores apontados por ela, embora não faça menção a eles. A historiadora encerra o capítulo abordando a importância dos movimentos concretista e neoconcretista para as letras brasileiras.

No décimo sexto capítulo do livro, denominado “1964 – 2003: dos anos do golpe ao início do século XX”, Stegagno-Picchio faz um recorte histórico-social e cultural do Brasil daquele período. Após a segunda metade do século, ela enfatiza como o golpe militar interferiu na produção artística e intelectual do país. O que aqui foi gerado, em termos de produção intelectual e artística, seguiu na linha de denúncia do estado das coisas, alcançando abrangência internacional. No contrafluxo, em solo brasileiro, a produção nacional passava pelo crivo da censura.

Com as reflexões histórico-políticas do país, Stegagno-Picchio aponta que, em meio a um turbilhão de acontecimentos no campo social, a literatura exerce um papel importante, no sentido de exprimir, conscientemente, a problemática vivida pelo país:

Mas as quatro décadas que se completam foram também anos que a literatura, longe de se refugiar na torre de marfim do álibi estético,

67 contribuiu como nunca para a tomada de consciência de um país que, com seus quase duzentos milhões de habitantes, suas riquezas e suas misérias, se propõe como um dos protagonistas do próximo século. O conhecimento do contexto histórico, antropológico e político pode, neste caso, ajudar como nunca na decifração do fenômeno literário. (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p.633)

Em sua obra, não desassocia a literatura de fatores extra-literários. Pelo contrário, trabalha com a ideia de complementação das distintas áreas de conhecimento, como a história, a antropologia e a política, por exemplo, em busca da ampliação do olhar sobre as circunstâncias sociais vividas no Brasil.

Após tecer um inventário minucioso de autores e obras que compuseram o circuito literário até o início dos anos 2000, Stegagno-Picchio dedica uma seção do livro, intitulada “A escrita das mulheres”, a fim de tratar sobre a literatura de autoria feminina. Algumas características da produção literária das escritoras são assinaladas, como o fato de os textos conterem o tom memorialístico em suas narrativas. Dentre os nomes femininos consagrados nas letras brasileiras, temos os de Rachel de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai e Ana Maria Machado. No decorrer de sua história da literatura, seguem mencionadas outras autoras, bem como breves explicações das obras, e respectivas datas de publicação.