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Fala Plena

No documento Lacan e o estruturalismo (páginas 85-90)

2.4 Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise

2.4.2 Fala Plena

Já sabemos que o analista tem uma posição na dinâmica do trabalho analítico, a de “escutador” da fala de um sujeito. Não de uma fala vazia onde o sujeito parece falar em vão de alguém que, apesar de lhe ser muito semelhante,

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Lacan, Jacques. Op. cit., p.253

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parece-lhe muito distante, mas de uma fala que o leve à assunção de seu próprio desejo.

Vamos comentar o trabalho do primeiro “escutador”. O método instaurado por Breuer e Freud com as histéricas, levou-os à descoberta de um evento traumático, que era considerado como “causa” do sintoma. A paciente, ao rememorar sua história, “verbalizava” este evento e em conseqüência se dava a eliminação do sintoma.

O esquema seguia esta ordem: um acontecimento patogênico gerava um trauma e com a verbalização do acontecimento teríamos a eliminação do sintoma.

Qual seria, então, a função desse verbalizar?

Mesmo no blá-blá-blá da histérica é possível que se apresente a sua verdade, é possível fazê-la falar. A revelação histérica do passado apresenta o nascimento da verdade na fala, “a verdade dessa revelação é a fala presente, que a atesta na realidade atual e que funda essa verdade em nome dessa realidade. Ora, nessa realidade, somente a fala testemunha a parcela dos poderes do passado que foi afastada a cada encruzilhada em que o acontecimento fez uma escolha.”107 Não estamos falando de realidade, se os fatos aconteceram ou não, mas de verdade, pois é na fala plena que as contingências passadas são reordenadas, “dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual os sujeitos as fazem presentes.”108

O trauma já é uma nova leitura de um evento que há muito estava lá, ele simplesmente dá sentido a algo que é da ordem do indizível. A partir da cena primária, ao longo da vida o sujeito se reestrutura a cada “novo” acontecimento

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Lacan, Jacques. Op. cit., p.257

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que traz novamente a marca do acontecimento traumático. Ele simplesmente atualiza uma cena que já estava lá, não importa se vivida ou pensada.

Esse é o método criado por Freud em 1885, uma fala endereçada ao outro, que permite que o sujeito reviva, fale e faça a assunção da sua história. Buscar apoio em outros métodos seria desviar-se da própria experiência analítica, que se refere à linguagem e ao inconsciente.

Lacan nos explica que Freud, a partir de certo momento, se proibiu de usar qualquer outro método que não fosse a escuta. Por que deveríamos, agora, recorrer a eles para explicar o sintoma ou curá-lo? Ele insiste nessa questão ao afirmar: “a experiência analítica tem como meios os da fala, à medida que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade no real.”109

Disso resultam para Lacan, duas conseqüências: a primeira refere-se à posição da interlocução aceita pelo sujeito, essa posição o constitui como intersubjetividade, pois toda alocação é constituída por um locutor e um alocatário110. Mesmo que sua fala não se dirija aos presentes, ela se dirige ao Outro. A segunda, trata-se dos efeitos da interlocução psicanalítica, à medida que ela inclui a resposta do interlocutor, é nessa “que se resgata para nós o sentido do que Freud exige como restabelecimento da continuidade nas motivações do sujeito.

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Lacan, Jacques. op. cit., p.259

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Como consta na nota de rodapé do texto, esses termos foram retirados de Édouard Pichon. Os escritos. p.259

Concluindo, na situação analítica o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida, dando-lhe um sentido, “o sentido que faz desse ato um ato de sua história e que lhe dá sua verdade.”111

Lacan nos mostra que a descoberta freudiana do inconsciente, só se esclarece em seu verdadeiro fundamento ao relacionar-se com a linguagem. É para um inconsciente estruturado como uma linguagem, que aponta sua definição.

“O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado. Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Qual seja:

- nos monumentos: e esse é meu corpo, isto é, o núcleo histérico da neurose em que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem e se decifra como uma inscrição que, uma vez recolhida, pode ser destruída sem perda grave;

- nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência;

- na evolução semântica: e isso corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter;

- nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história;

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- nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram e cujo sentido minha exegese restabelecerá.”112

Devemos lembrar que o objetivo de Lacan era realizar um retorno a Freud e isso só foi possível com a leitura minuciosa de seus textos, para ele é no campo da metáfora que Freud trabalha, mesmo quando fala do sintoma.

Freud atuou no campo do deslocamento simbólico e não no imaginário como pensam aqueles que querem trabalhar os estádios orgânicos do desenvolvimento individual, a partir dos acontecimentos peculiares da história de um sujeito. Para estes, a psicanálise trabalharia com fatos acidentais, factícios e com os traumas.

Lacan quer mostrar, baseado nos textos de Freud, que os fatos acidentais são usados para dar aparência a uma situação há muito existente, são figurantes num roteiro já determinado, “a história já se faz no palco em que será encenada depois de escrita, no foro íntimo e no foro externo.”113

Esses fatos, antes de acontecerem, já estão predeterminados a ocupar um lugar específico no drama do sujeito. Lacan demonstra seu pensamento, ao recordar a célebre frase de La Rochefoucault “há pessoas que nunca se haveriam apaixonado, se nunca tivessem ouvido falar de amor.”114 Tudo isso serve para nos mostrar que os estádios instintuais já estão, ao serem vividos, organizados como

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Lacan, Jacques. Op. cit., p. 260-261

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Id. ibid., p.262

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subjetividade. A psicanálise lida com o sujeito e “o sujeito vai muito além do que o indivíduo experimenta subjetivamente”115

Nosso trabalho consiste em fazer o sujeito reconhecer como inconsciente sua história, nós o ajudamos a perfazer a historicização atual dos fatos que já determinaram em sua existência um número de “reviravoltas” históricas. Como fatos históricos podem ser reconhecidos num certo sentido ou censurados numa certa ordem.

Com essas colocações, Lacan demonstra que a experiência analítica é só dual na aparência, qualquer colocação de sua estrutura nesses termos é inadequada na teoria e destrutiva na sua técnica. Nessa experiência há de se levar em conta o terceiro termo constituído pelo discurso do Outro.

No documento Lacan e o estruturalismo (páginas 85-90)