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A importância da fala entre os ameríndios é notada em trabalhos de diversas disciplinas – especialmente na lingüística, musicologia e estudos da literatura oral – e o desenvolvimento destes estudos separadamente não permitiu compreender a riqueza do fenômeno ao enfatizar o texto, a melodia ou a performance (SEEGER, 1986). Sherzer e Urban (1986), na introdução de uma coletânea tratando dos discursos sul-americanos, chamam a atenção para a necessidade de encarar a função estética do discurso indígena como integrada aos aspectos rituais, cerimoniais, políticos, curativos ou mágicos. Muitos autores reconhecem que a centralidade da fala fez com que se desenvolvessem complexas e elaboradas formas de falar ligadas à posição social estabelecida segundo idade, gênero, poder xamânico, cerimonial, liderança, e performance em diferentes contextos de interação como Seeger (1986), Graham (1986), Basso (1985, 1990) e Sherzer (1992).

É grande o número de trabalhos que notaram o papel das habilidades e especializações do falar no estabelecimento de autoridade e legitimação de lideranças onde podem ser destacados os de Bloch (1975), Basso (1985, 1990, 1999), Urban (1986), Sherzer e Urban (1986), Hendricks (1991, 1993, 1996), Lizot, (2000) e Chernela (2001). A grande maioria dos estudos, entretanto, foi dedicada aos contextos nativos de uso da linguagem.

Clastres (1979 [1974]) salientou ou as relações opostas entre falar e poder comparando as “sociedades com Estado” e as “sociedades sem Estado”: em ambas a palavra é prerrogativa dos chefes, mas enquanto nas primeiras a palavra seria o direito do poder, nestas seria o dever do poder. Para ele a palavra do chefe seria um ato ritualizado, dita para não ser escutada, uma celebração repetida das normas tradicionais, um discurso vazio. Na fala do chefe não seria a estética, ainda que ele reconheça o amor que têm os índios pelos belos discursos, e sim a política que estaria em jogo.

O estudo de Franchetto (1986) sobre o falar Kuikúro é especial pelo fato de considerar tanto um conhecimento lingüístico quanto antropológico ao procurar entender o que significa falar Kuikúro, e merece um especial destaque também por se tratar de um estudo pioneiro completamente dedicado ao tema no Brasil e por trazer uma etnografia detalhada que ilustra uma clara distribuição social da palavra38.

Entre os Kuikúro a fala enquanto voz, parte do corpo, desdobramento da pessoa, seria também uma ‘alma/sombra/duplo’, e nota-se uma “relação entre convivência, comensalidade e aprender a falar, como maneiras de absorver o estrangeiro”: a quem estiver interessado em aprender a língua de um estrangeiro recomenda-se, além de escutar muito, comer a comida dele, beber no mesmo lugar da cuia onde ele bebe, pois assim a aprendizagem seria mais rápida e fácil. São recomendações feitas tanto a um cônjuge falante de uma outra língua quanto aos antropólogos. Nas palavras de um informante Kuikúro, “as palavras passam, você pega a língua”. A língua seria considerada um todo físico, real e transmissível. (FRANCHETTO, 1986, p. 31).

Falar Kuikúro seria um diacrítico de identidade no contexto multilingüístico do Alto Xingu; a língua do outro ocorreria no canto e no xamanismo. São notadas as relações entre falar e comer que aparecem junto aos comensais/consangüíneos, entre os quais a fala circula livre e intensamente (e que também compartem restrições alimentares em caso de doenças). Estas relações são notadas também na posição delicada e contida diante dos aliados e na evitação de falar com os sogros ou nomeá-los ao lado do fornecimento prescritivo de alimentos que lhes é devido como parte do contrato matrimonial (Ibid., p 243).

A linguagem seria uma particularidade dos humanos e falar a manifestação da sociabilidade por excelência, produto de uma aprendizagem cumulativa onde saber falar se confunde com o próprio saber (Ibid., p. 245-246). Franchetto nota o

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A tese de Franchetto é bastante extensa e parte de uma análise descritiva da língua e trata inicialmente das relações entre funções gramaticais e estilos cognitivos, a sintaxe e o significado de seus recursos. É analisada a ergatividade bifurcada da língua Kuikúru que apresenta tanto construções orientadas a partir do ator (nominativo) como a partir do objeto (ergativo) e a escolha de um desses dois esquemas sintáticos. Franchetto procura entender o que significa falar Kuikúro, considerando a necessidade de uma teoria que integrasse os significados semântico-referenciais e os significados pragmáticos do processo comunicativo. Ela produziu também uma documentação da língua e da arte verbal e um estudo comparativo dos sistemas linguísticos Karibe e de estilos de manifestações verbais nas culturas de tradição oral.

continuum entre a fala do dia-a-dia e a fala formal, notando um aumento de

restrições formais, da fixidez do texto, da utilização de códigos arcaicos e paralelismos. As conversas nos assentamentos familiares, a fofoca, a fala de raiva, as brincadeiras, as notícias, a oratória, o discurso cerimonial, ou fala do chefe, são eventos e falares ligados entre si e com as situações vividas.

Talvez seja a falta de ter considerado a relação entre os diversos eventos da fala o que fez aparecer a Clastres a vacuidade do discurso do chefe.

Há ainda vários trabalhos que trataram dos diversos gêneros de fala, tais como oratória e narrativa cerimonial, linguagem xamânica, além de apresentarem outras preocupações em relação à arte, ritual e performance (BASSO, 1985; URBAN, 1986; FRANCHETTO, 1993; FARAGE, 1997; LANGDON, 1999), o que levou alguns estudiosos do tema a estabelecer uma análise comparativa e propor uma tipologia do discurso considerando alguns aspectos recorrentes na grande região amazônica.

Beier, Michael e Sherzer (2002) consideram, após extensa revisão bibliográfica, que os povos indígenas das terras baixas da América do Sul conformariam uma “área de discurso” onde são compartilhadas algumas características relacionadas às formas e processos de discurso. Eles destacam o processo de dialogicidade, disseminado em formas que compreendem diálogos cerimoniais, performances dialógicas, ratificações formais, respostas em eco, saudações cerimoniais, choro ritual, evidencialidade, uso de citações diretas para representar a agência e subjetividade humana.

Na análise dos relatos de contato dos Siona com os europeus, Langdon (2007a) nota que os mesmos são compostos de eventos críticos que são “centrados na fala”. São apresentados como diálogos, utilizando a citação direta como uma forma de apresentar interações comunicativas, que revelam pontos de vista, emoções, motivações e mudanças de subjetividade e mostram também as mudanças do processo interativo no encontro colonial: a recusa do diálogo, o diálogo com o missionário que falava bem e o interesse de aprender a língua e a escrita do estrangeiro. Seguindo Beier, Michael e Sherzer (2002), Langdon considera também as observações de Basso (1995, 2001) entre os Kalapalo e

Oakdale (2004) entre os Kayabi para propor que este destaque dos eventos críticos centrados na fala como forma de consciência histórica é uma característica geral entre os povos da região.

Estas pistas serão seguidas neste trabalho que, dentre suas contribuições, traz o registro do que pode ser considerado um desses eventos críticos centrados na fala, cuja análise também deverá levar em conta as relações entre as noções de pessoa, cosmologia e linguagem.