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3.2 – Organização e funcionamento do Conselho Distrital de Saúde Yanomami e Ye’kuana

O Conselho Distrital de Saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Ye’kuana é composto por 32 conselheiros. A metade deste número é formada por repreentantes indígenas (apenas um deles é Ye’kuana) procedentes de diversas regiões dos estados de Roraima e Amazonas que são escolhidos pelo conjunto de comunidades das regiões que representam, sendo que muitos deles são líderes de grupos locais (pata thë) e outros, com participação mais recente, são escolhidos por falarem um pouco de português (onde se incluem professores, agentes de saúde e estudantes). A outra metade é composta por representantes de órgãos governamentais (Fundação Nacional de Saúde, Fundação Nacional do Índio, Secretarias Estadual e Municipal de Saúde e Exército Brasileiro) organização da sociedade civil que prestam serviços relacionados à saúde (Serviço de Cooperação com o Povo Yanomami, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Sanitário, Fundação Universitária de Brasília. Comissão Pró-Yanomami) missões religiosas (Diocese de Roraima, Missão Novas Tribos do Brasil, Missão Evangélica da Amazônia) e representantes dos trabalhadores de saúde conforme diretrizes da Política Nacional

de Saúde e da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Ministério da Saúde, 2000).58

Ainda que constituído oficialmente em 2000, pode-se dizer que a origem da configuração de participantes indígenas no conselho teve início durante a 2ª. Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas em 1993, uma das primeiras oportunidades de reuniões entre Yanomami e brancos, precedida apenas pela Assembléia Yanomami realizada no Demini nos últimos anos da década de 1980. Tive oportunidade de participar de várias reuniões do conselho desde suas primeiras ocorrências como representante dos profissionais de saúde, da Fundação Nacional de Saúde, sendo em muitas ocasiões um de seus principais promotores, ou como observador.

A constituição do conselho distrital de saúde foi um processo bastante complicado em primeiro lugar no que dizia respeito à escolha dos conselheiros: como, entre centenas de comunidades eleger pouco mais de uma dezena de representantes que tivessem o poder de tomar decisões que afetariam outras comunidades além da sua própria? Além das questões colocadas pela própria forma de organização social dos Yanomami, que tem como ideal da autonomia de cada grupo local, a influência das organizações prestadoras de serviços era bastante sentida, procurando cada uma delas ter o maior número de conselheiros eleitos a partir da região em que atuavam. A discussão entre os não-índios sobre a composição do conselho muitas vezes irritava os representantes yanomami que por vezes se manifestavam sobre este fato de forma contundente: “vocês parecem um bando de cachorros latindo para acuar a caça, mas não estamos vendo caça alguma”. A proposta inicial de constituição do conselho contava com a representação de mais de quarenta membros indígenas e não foi formalizada pelo presidente da Funasa até ser reduzida, anos depois, para os 16 conselheiros atuais.

Ainda permanecem obscuros os critérios e as negociações intercomunitárias que levaram à escolha dos conselheiros atuais. As razões apresentadas nas reuniões (saber falar um pouco de português, não ter medo de falar, falar a verdade, ser membro da comunidade mais numerosa da região, ser uma pessoa que não gosta de brigar à toa) muitas vezes não correspondiam ao perfil do conselheiro escolhido.

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As primeiras reuniões foram marcadas por tensão por parte de alguns Yanomami, preocupados com a possibilidade de encontrarem prováveis inimigos: cuidados em não deixar rastros, restos de tabaco ou sobra de comida que pudessem vir a ser utilizados em feitiçaria eram tomados ao lado de certas restrições alimentares para evitar envenenamentos. A ausência das prováveis agressões, a periodicidade e o aumento da freqüência destes tipos de encontro permitiram que a tensão inicial fosse superada (ainda que restaurada em situações com numerosa participação indígena, como foi o caso da Conferência Distrital de Saúde Indígena em março de 2006) e proporcionou um melhor entrosamento entre grupos que não se visitariam sem a utilização de transporte aéreo, que hoje é reivindicado para realização de reuniões locais onde são convidadas pessoas de outras regiões distantes.

As reuniões ocorrem em caráter ordinário, conforme definição do regimento do Conselho, a cada seis meses, e extraordinariamente por convocação da maioria simples dos conselheiros ou pelo presidente do conselho, papel que foi inicialmente desempenhado pelo Coordenador Regional da Funasa e desde março de 2004 está a cargo de um jovem conselheiro da região do Paapiú. São realizadas normalmente na cidade de Boa Vista em local que permita tanto a acomodação dos conselheiros para a reunião propriamente dita quanto o alojamento dos conselheiros indígenas, sendo que maioria delas se deu em um espaço alugado da igreja católica que atende estes pré-requisitos. Algumas delas ocorreram em hotéis e auditórios da Universidade Federal de Roraima e da própria Funasa e foram alvos das críticas dos conselheiros tanto por se sentirem discriminados (no caso dos hotéis) como por julgarem inconvenientes os espaços restritos e fechados dos auditórios.

Fora do tempo regulamentar das reuniões com os brancos, principalmente nas manhãs enquanto estes não chegam, os Yanomami aproveitam para conversar entre si comentando o que foi falado ou o que pretendem dizer. Estive algumas vezes presente nestas ocasiões e ouvia as recomendações sobre a pertinência dos assuntos e os modos de falar apropriados: não se deveria falar sorrindo e tampouco usar palavras muito agressivas. Estas recomendações eram feitas pelos que já estavam “acostumados” a conversar com os brancos.

Nas reuniões são faladas as quatro línguas da família lingüística yanomami (com distintos graus de inteligibilidade mútua) e o português, sendo a grande maioria

dos participantes monolíngües. Cada discurso dos Yanomami é seguido por uma “tradução”, que às vezes parece resumir um longo pronunciamento, o que é justificado pelo estilo “repetitivo” do discurso indígena. Os discursos dos brancos, por sua vez, freqüentemente exigem longas explicações de termos técnicos, conceitos e definições que muitas vezes permanecem incompreendidos e continuam sendo discutidos e comentados. Essas traduções são feitas tanto por alguns Yanomami como também por missionários, alguns funcionários da Funai, trabalhadores de saúde e antropólogos. Muitas vezes, os intérpretes colaboram entre si, destacando alguns pontos e esclarecendo dúvidas. Alguns dos Yanomami fazem seus discursos em português e em uma das línguas da família yanomami.

Na maioria das vezes os intérpretes são missionários evangélicos, que dentre os não índios são os que costumam ter maior fluência nas diversas línguas. Somente nos últimos anos, um técnico da área de saúde que aprendeu a falar yanomami foi contratado para a função específica de intérprete e eventualmente há a participação de um antropólogo com fluência no dialeto yanomami ocidental. Antes disso, os intérpretes yanomami, principalmente Peri Xirixana, eram requisitados com mais freqüência e muitas vezes, principalmente quando não havia missionários presentes, tinham sob sua responsabilidade a tradução de todas as falas. Alguns oradores dividem sua intervenção em pequenos trechos que são traduzidos na seqüência, mas muitos fazem o discurso completo que o tradutor deve verter confiando em sua memória ou anotações sobre os principais temas.

Logo nas primeiras reuniões os Yanomami reclamaram da verbosidade dos brancos, que muitas vezes falavam entre eles mesmos, e controlavam o tempo que cada conselheiro indígena tinha para apresentar seus problemas. As reuniões passaram a ser organizadas com os conselheiros indígenas falando em primeiro lugar, sem serem lembrados de que tinham um limite de tempo. Em algumas delas alguns conselheiros não tiveram tempo para falar publicamente e passaram eles próprios a controlar o tempo, não cronometricamente, mas aparentemente por critérios relacionados à relevância que atribuíam ao assunto que estava sendo tratado, qualidade estética do discurso e prestígio do conselheiro. Muitas vezes saiam sem respostas para as questões e demandas que apresentavam.

Os Yanomami, na maioria das vezes, apresentam casos particulares de doenças ou queixas relatando a indisposição ou atitude pouco amigável de alguns

funcionários que não atendem as demandas por medicamentos, fornecimento de alimentos e mercadorias ou que não se deslocam até as comunidades mais distantes para prestar atendimento quando requisitados. Por vezes apresentam relatos que tratam de assédio sexual por parte de funcionários, seu envolvimento com a comercialização de ouro ou favorecimento de algum grupo de garimpeiros cuja presença é constantemente denunciada, além da invasão de caçadores e fazendeiros nas áreas mais periféricas de seu território. Nos últimos anos também são freqüentes as demandas por instalação de escolas e presença de professores entre os profissionais de saúde.

Os prestadores de serviços normalmente justificam as falhas de seus funcionários, ou prometem dispensá-los; mostram os bons resultados de sua atuação, muitas vezes apresentando gráficos ininteligíveis; raramente apresentam planilhas de prestação de contas dos recursos recebidos da Funasa e freqüentemente reclamam de sua relação com a Funasa e do atraso de liberação de recursos financeiros.

Os funcionários costumam reclamar das péssimas condições de trabalho sem infra-estrutura, suprimentos e apoio logístico adequados e a Funasa geralmente manifesta seu empenho em que o serviço funcione de maneira adequada, apresenta a planilha de recursos financeiros empregados, promete aumentar seus investimentos no provimento de insumos, e remete a maioria dos problemas apresentados aos gerentes das organizações conveniadas ou aos “chefes de Brasília”.

Os mal entendidos não são raros. Há situações onde representantes de instituições governamentais pronunciam discursos completamente ininteligíveis aos intérpretes yanomami (e por vezes também aos brancos), mas os intérpretes apresentam sua versão do que imaginam que foi dito. Numa reunião, quando os Yanomami apresentavam suas queixas sobre as péssimas condições das acomodações, alimentação e serviços oferecidos pela Casa do Índio59 de Boa Vista, o representante da Funasa respondeu com um discurso evasivo falando das novas

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A Casa de Saúde Indígena é uma unidade de saúde localizada na periferia de Boa Vista onde permanecem pacientes e acompanhantes que foram removidos para Boa Vista enquanto aguardam a realização de exames laboratoriais e consultas especializadas ou retorno à terra indígena após internações hospitalares. Uma média de 150 pacientes e acompanhantes yanomami ocupa

normas operacionais, procedimentos, fluxos administrativos e financeiros, atribuições, responsabilidades e numerosas siglas que só têm sentido para os experientes burocratas da instituição. O intérprete yanomami disse aos seus parentes que o representante da Funasa tinha dito que a Casa do Índio estava ruim mesmo, que chovia nos alojamentos, que o sistema de esgoto estava estragado, que os pacientes demoravam muito quando estavam internados esperando exames ou consultas nos hospitais de Boa Vista, mas que ia melhorar. Ainda que não tenha entendido o que foi dito, ou que tenha entendido e considerado o discurso intraduzível, o intérprete apresentou a resposta que seria esperada para o tipo de situação apresentada. Os Yanomami parecem identificar um discurso padrão feito pelos brancos: “eles sempre falam assim”.

Um outro exemplo significativo desse discurso repetitivo dos brancos, e da predição do que deve ou pode ser dito ocorreu numa assembléia yanomami realizada no Catrimani em 1997 quando os Yanomami cobravam da Funai a retirada dos garimpeiros que permaneciam em algumas regiões do seu território. O representante da Funai fez um longo discurso sobre o papel da instituição e seu empenho em que a operação de retirada dos garimpeiros fosse desencadeada e sobre os inúmeros entraves burocráticos, legais e financeiros para tal. Solicitou, então, a um funcionário yanomami que traduzisse “para os seus parentes”. Após a tradução o representante da Funai retomou sua fala, prosseguindo sua prolixa explanação sobre a questão e solicitou novamente os serviços do tradutor, sendo surpreendido por um “-Não é preciso. Sabe, essa parte eu já adiantei.”

Estes exemplos ilustram os temas comuns e a situação complicada dos intérpretes no seu ofício de apresentar uma tradução atendendo as expectativas sobre sua competência em comunicar-se tanto com os brancos quanto com os Yanomami. Esta experiência entre concepções sobre o uso da linguagem, objetivos e práticas retóricas na maioria das vezes conflitantes talvez tenha contribuído para a emergência de uma nova consciência relacionada a estes temas e a criação de novos estilos e estratégias discursivas.