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4.1 O Trajeto de Identificação da Hantavirose em Santa Catarina

4.1.8 A família no contexto da emergência

As medidas de controle e prevenção feitas no local através de ações diretas sobre a infraestrutura e higiene, e de esclarecimento à população local, foram feitas pelos profissionais pesquisadores da assistência médica local e regional que executaram as etapas do estudo de investigação. A partir deste foco, todas as orientações foram repassadas para os responsáveis das Vigilâncias Epidemiológicas Regionais para serem, então, destinadas à população principalmente na região Oeste do Estado, onde outros casos começaram a ser notificados e diagnosticados.

Pode-se perceber que todos os trâmites para investigação foram realizados, sob o aspecto da ação de controle e prevenção na contenção do surto, e o sucesso, em Seara, foi ‘coroado’ pelo fato de não ter ocorrido nenhum óbito na família afetada. E sobre ela, um dos profissionais relata como a viu, na ocasião:

Foi uma coisa muito triste, para a família. Pessoas do interior, simples, humildes, agricultores [...] Não tem vivência externa que não seja aquela da área deles. De um dia pro outro acontece uma doença grave que coloca os cinco da família num hospital [...] Uma discriminação terrível de todos os vizinhos que acharam que era uma doença contagiosa (CC).

A família afetada é muito simples e a sua vida e seu lar foram virados “de cabeça para baixo”. Foi uma sucessão de fatos aceita de forma resignada, como se percebe na fala do casal:

É, veio aquele, o ministro da saúde, acho que o José Serra naquela época [...] Sei que tinha muita gente [...] Aqui na frente de casa [...] Parecia uma festa de tanta gente que tinha [...] (JB).

Eles (equipe de pesquisa do IAL) vieram lá na redondeza pegar os ratos, e a gente sempre acompanhava, porque eles vinham direto lá em casa. Eles colocavam todas as gaiolinhas. Era uma turma [...] A gente até tinha vergonha, porque nunca tinha acontecido, e depois enche (de gente) de vereda. Saía um entrava outro e assim. Mas deu para levar (MS).

Estas duas últimas falas pertencem aos atores principais desta história que articula o laboratório referenciado pela pesquisadora. Um espaço onde as descobertas são obrigatórias, para identificar e associar causas, porém onde não existem cobaias representadas por animais de laboratório, mas sim seres humanos. Estes últimos representam a população de risco e que precisa de orientações corretas e adequadas. A produção de informações ou dados de nada serve, se não alcança seu objetivo maior na saúde pública: a saúde coletiva.

Um questionamento comum ao ser humano é direcionar-se a busca da(s) causa(s) ou do(s) responsável (is), neste caso, pela Hantavirose. Uma forma simplificada de justificar o processo emergente é a responsabilização do indivíduo – a vítima direta da Zoonose, o que é colocado de forma freqüente na maioria das entrevistas:

Acho que a coisa é mais ou menos por aí, e acontece com tudo [...] Se conscientizar [...] Por que as pessoas não fazem contracepção [...] Filho [...] Sabem dos problemas lá no futuro [...] Não é falta de informação é a questão da atitude das pessoas [...] (KL).

Como citado anteriormente, no que se deve insistir é na qualidade da informação e sua transmissão de forma adequada, a fim de que seja realmente incorporada à prática cotidiana e ao planejamento de políticas públicas, no que se refere à saúde.

Num convite à reflexão crítica sobre os limites e possibilidades impostas pelo sistema capitalista, que considera a formação de políticas de saúde

orientadas para as demandas e propostas não contrárias ao curso econômico vigente, talvez se deva realmente pensar com mais profundidade sobre a ação de vigilância da saúde para a promoção de saúde, no Brasil. Uma nova forma de organização dos processos de trabalho em saúde, com supervisão como rotina, e de forma indireta (FREITAS, 2003 p.152) torna-se necessária (grifo nosso).

Pode-se perceber que o controle sobre as condições de vida se direciona, por um lado, sob uma visão científica, para a vigilância do Estado, e se volta às pesquisas dos roedores, por um outro lado, gera situações que possibilitam a defesa dos direitos dos sujeitos envolvidos, por meio de informações e auxílios para condições dignas de sobrevivência. Porém, na prática real, há dificuldade em mudar contextos socioeconômicos, culturais, educacionais e de saúde, sem a consciência do indivíduo como componente do coletivo. Trata- se da condição de consciência da sua própria existência, e de sua responsabilidade, inserido neste contexto, como ator que reage e se organiza na busca de melhores condições de vida.

Quando se fala da democratização do acesso aos benefícios das descobertas - os desenvolvimentos científico e tecnológico – para todos de forma indistinta, e considerando a espécie humana como o único e real sentido e meta para este progresso, convém refletir sobre isso. Além das informações, há necessidade de políticas de ação adequadas para o trabalho, educação e também a saúde, respeitando características regionais, demográficas, culturais, entre outras.

Os direitos dos indivíduos, e os rumos a serem seguidos pela sociedade, precisam ser acessíveis e materializáveis, como condição para alcançar a tão famosa cidadania. Mas para isso o corpo social que abrange todos os níveis, a comunidade, os profissionais, os acadêmicos, os políticos, todos precisam ser adequadamente informados e conscientizados. Portanto, não cabe somente aos mais humildes o peso da responsabilização pelas condições precárias em que vivem, como segue no seguinte relato:

Eles (a família) não têm estrutura; não tem a educação talvez, e são pessoas humildes. Só falavam deles, e eles ficaram até meio sem jeito porque aconteceu com eles. Sorte que foi detectado já no início, e foi feito todo um trabalho pra reverter o caso e controlar (BO).

A responsabilidade, neste caso, é tratada por Berlingüer (1996:85) com dois significados. Um deles como sinônimo de consciência, e outro, que prevalece no campo da saúde, o de culpabilidade. Esta última foi tendência dominante e muito forte, no passado, e atualmente disputa espaço com a solidariedade e tolerância, não menos arriscada, visto a eminente conivência com as “livres escolhas” para o bem estar coletivo, ou seja, a consideração das diversidades como fatos naturais, simplesmente, e não como condições que são tratadas, de forma justa ou não, pelas instituições. Estas últimas, as instituições, é que podem ampliar condições mais vantajosas ou reduzir os danos das condições mais desfavoráveis (grifo nosso).

O prejuízo da vida e da saúde fica à mercê de uma “arbitrariedade moral” (op cit., p.86) que escapa às escolhas individuais e decisões coletivas, e a diversidade humana forma uma base de iniqüidades que dependem de doenças de quaisquer origens, de condições ambientais do meio de convívio, de classe social onde o indivíduo se desenvolve. A autocompreensão que o indivíduo tem de si é princípio fundamental para saber-se como aquele que tem direito à dignidade e dever da responsabilidade, e assim estabelecer a condição necessária para o enfrentamento de outros problemas que influenciam nas oportunidades de vida de cada um. Estes problemas de iniqüidades, ainda para lembrar, devem ser, no mínimo, reduzidos por intermédio de medidas político- sociais preventivas e terapêuticas, por iniciativa de instituições básicas de uma sociedade democrática, sendo imprescindível o cuidado em valorizar a plena participação do indivíduo ao conhecimento, à terapia, à prevenção.