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A FAMÍLIA DA CLASSE TRABALHADORA COMO CAMPO DE EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADE.

3 A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE E DA FAMÍLIA NA SOCIABILIDADE DO CAPITAL

3.3. A FAMÍLIA DA CLASSE TRABALHADORA COMO CAMPO DE EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADE.

determinada funcionalidade na reprodução da sociabilidade capitalista e que se concretiza de forma contraditória, compreendemos a família como campo de expressão dessa subjetividade.

No presente projeto nos referimos à família da classe trabalhadora como pedra de toque fundamental na análise das inflexões do modo de reprodução do capitalismo contemporâneo na subjetividade por se configurar um núcleo social profundamente afetado pelas violações de direitos sociais e humanos em face do desemprego estrutural e da flexibilização das relações de trabalho - condições objetivas que a família se apropria para reproduzir, de forma precária, suas condições de vida e de trabalho.

Estando submetida a uma crescente socialização, a família se organiza mediante as condições objetivas dadas, reelaborando sua reprodução e da própria subjetividade, afirmando ou negando valores da sociabilidade vigente, devendo ser considerada, segundo Mioto (1997) um "fato cultural, social, econômico e historicamente condicionado".

A característica biológica da família é considerada como elemento irracional frente à racionalidade de uma sociedade industrial altamente desenvolvida, conforme declara Adorno e Horkheimer (idem) e pode ser tratada como uma tensa relação entre componente natural e social, historicamente identificado nas formações humanas e sociais pretéritas e que contém o elemento cultural de formação dos indivíduos, mas que estabelece íntima relação com as determinações da formação econômica em que está inserida.

A família é entendida por Marx e Engels (2006) como uma relação secundária à complexificação das necessidades geradas pelo processo de trabalho é ao mesmo tempo, relação natural e social. Natural por estar circunscrita à divisão sexual do trabalho, à procriação, às capacidades físicas do homem e da mulher. Social pela autonomia do homem e da mulher em relação à natureza e pelo sentido de agregamento para produzir bens capazes de satisfazer as necessidades humanas mediante o aumento populacional, dentro de determinado modo de produção:

A produção da vida, seja da própria vida pelo trabalho, seja a de outros pela procriação, nos aparece a partir de agora como dupla relação: de um lado, como relação natural, de outro, como relação social – social no sentido em que se compreende por isso a cooperação de vários indivíduos, em quaisquer condições, modo e finalidade. De onde se segue que um modo de produção ou uma determinada fase industrial estão sempre ligados a

uma determinada forma de cooperação e a uma fase social determinada, e que essa forma de cooperação é, em si própria, uma força produtiva; decorre disso que o conjunto das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona o estado social e que, assim, a história dos homens deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e do intercâmbio. (idem, p. 56).

Na linha de raciocínio de Engels (1991) consideramos que às formas históricas de relações de produção e de complexificação das forças produtivas equivale uma forma de família. A referência teórica desse autor, mesmo criticada por autores que apontam em sua análise um caráter evolucionista, nos interessa pela explicação materialista da emersão da família na história humana.

Esta premissa nos leva a considerar que a sociabilidade capitalista calca nos indivíduos, inseridos num núcleo familiar, formas determinadas de afetividade, expressas a partir das capacidades individuais e sociais que a subjetividade apropriada pelo modo de produção vigente valoriza.

A fase de intensa acumulação experenciada pelo capitalismo contemporâneo se expressa nas políticas neoliberais, na deterioração do Estado na condução das políticas e serviços sociais, no aprofundamento das desigualdades sociais, no crescente endividamento das economias dependentes e no endividamento privado (principalmente da classe trabalhadora), na reestruturação produtiva, na desregulamentação das leis trabalhistas, no crescente exército de reserva e nas ocupações informais, na crescente socialização promovida pelos meios publicitários e pelas ferramentas tecnológicas disponíveis, etc.

A configuração da sociabilidade vigente, em que impera a complexificação da forças produtivas e a intensa socialização dos indivíduos, determina mudanças na subjetividade e na família. Esses complexos sociais são levados a reproduzir tal sociabilidade a partir de formas específicas, concretas e contraditórias. Concretas por serem formas de reprodução objetivadas pelos sujeitos sociais em que é transformada a realidade social a partir das condições históricas dadas, num movimento através do qual também são transformadas (ampliadas e/ou atrofiadas) as capacidades psíquicas, afetivas, valorativas e volitivas desse sujeito. Contraditória por ser um processo que se desenvolve na trama da reprodução social, através da qual se concretizam diferentes projetos societários e possibilidades de ampliação da subjetividade autêntica e de expressão da diversidade humana através de valores e práticas que indicam a possibilidade de emancipação do gênero humano.

No âmbito da satisfação das necessidades e reprodução das famílias das classes subalternas, vivencia-se um cotidiano de negação de bens materiais (trabalho, alimentação, transporte, educação, saúde, etc.) e culturais (lazer, qualificação profissional) indispensáveis à conservação da integridade física, moral e social de seus membros.

A violação de direitos essenciais à auto-conservação dos indivíduos é vivenciada no cotidiano familiar a partir de impedimentos que, por sua vez, impõem a necessidade de resistir às adversidades, o que leva à desorganização e reorganização do modo de viver da família trabalhadora. As formas de convivência familiar têm profunda relação com a forma de produção da sociedade. Mioto (idem) aponta como causas das diferentes configurações de família a liberalização dos costumes e a nova posição da mulher no mercado de trabalho; o desenvolvimento técnico científico que possibilitou um maior acesso a informações relacionadas a planejamento familiar e, finalmente, o modelo de desenvolvimento econômico que vulnerabiliza cada vez mais a família trabalhadora. Como conseqüência, a autora enumera: o número crescente de divórcios; a quebra do papel de provedor representado pelo homem e a substituição pela mulher, obrigada a assumir uma dupla carga horária de trabalho.

É relevante também explicitar que a concepção de família23

construída no decorrer da presente pesquisa nos levou a contemplar a diversidade de composição familiar, conforme explicitado no item anterior, como forma de não particularizar a análise ao âmbito do comportamento, mas, orientada pelo raciocínio dedutivo, em apreender as determinações estruturais na família, independente de sua configuração, posto que estaríamos fragmentando e “congelando” modos de convivência. A partir da revisão de literatura e da vivência profissional, buscamos contemplar a heterogeneidade das composições familiares incluindo em nosso estudo:

1. Família nuclear, incluindo duas gerações; 2. Família adotiva;

3. Família monoparental referenciada por mulher com filhos;

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É importante frisar que consideramos nesse estudo a família com base na unidade domiciliar, ou de convivência, assim contemplando como família a unidade domiciliar que abrange três ou mais gerações (famílias extensas), as famílias adotivas, as unidades unipessoais, os casais sem filhos, as famílias monoparentais, tanto referenciadas por mulheres como por homens e as famílias nucleares.

4. Família monoparental referenciada por homem com filhos; 5. Família referenciada por pessoa homossexual com filhos; 6. Família que tenha idoso em seu núcleo de convivência;

7. Família que tenha pessoa deficiente em seu núcleo de convivência; 8. Família referenciada por casal adolescente e com filhos;

9. Família reconstituída após separação de um dos cônjuges; 10. Família extensa, incluindo três ou mais gerações.

Conforme salientado anteriormente, a discussão da divisão social e sexual do trabalho possibilita a compreensão do componente natural da reprodução da espécie que se materializa na família e os esforços empreendidos pelos homens e mulheres, parte dessa unidade social que, na condição de assalariados, reproduzem sua vida, sua força de trabalho e os valores construídos na esfera da produção que se espraiam à esfera da subjetividade.

Mediante as análises realizadas compreendemos família como instituição social composta por indivíduos de uma ou mais gerações, vinculados através de relações consangüíneas e/ou não-consangüíneas, de dependência econômica, afetiva e social no qual se situam relações de reciprocidade e também de conflito e que convivem num espaço físico circunscrito ao ambiente de moradia, à vizinhança e a outros indivíduos com vínculos de afeto e afinidade que participam da reprodução social desse grupo.

A reprodução da sociedade, estando condicionada a um processo de trabalho coletivo e fragmentador das capacidades humanas individuais, contém o processo de alienação do indivíduo, sendo a família aqui entendida como uma instituição social que também é levada a responder ao estranhamento gestado pela produção capitalista.

Imbuída de funções sociais o complexo social da família responde a esse estranhamento a partir de práticas e valores que negam e/ou criticam a sociabilidade capitalista, devendo ser considerado no presente estudo as práticas solidárias de vizinhança, o engajamento em movimentos sociais, sindicatos e partidos políticos alinhados ao projeto proletário de sociabilidade, a valorização das expressões culturais populares, o aprofundamento do conhecimento da realidade objetiva através do estudo e das práxis política, dentre outras. Nesse aspecto devemos considerar o refluxo dos movimentos sociais e das entidades representativas do projeto proletário em razão da experiência do Leste Europeu e da União Soviética, a

partir do qual são suscitadas críticas e novas significações para o socialismo na atualidade.

Contrariando as definições de família que a situam como base, célula máter da sociedade e que resguarda o progresso e harmonia da vida social como a frase comumente proferida de que a sociedade progride quando a família está unida, concluímos que são considerações profundamente arraigadas no pensamento conservador que formam as instituições responsáveis pela construção da consciência e conservação da ordem vigente, dentre elas as igrejas e as escolas. Nesse caminho, os conservadores invertem valores ao atribuir à crise da família o fato da sociedade ser desigual, violenta e individualista. No tocante a esse aspecto, Adorno e Horkheimer (idem) defendem que a crise da família articula-se a crise da totalidade social, das relações de assalariamento e de produção.

Considerando o objeto de análise permeado pelas relações travadas entre objetividade e subjetividade, julgamos pertinente analisar as tendências assumidas pela família frente às determinações do capitalismo contemporâneo e, por isso, optamos por estudar a família da classe trabalhadora por expressar os efeitos perversos do atual modelo de acumulação.

No presente estudo, partimos da consideração da estrita vinculação da família da classe trabalhadora à sociabilidade vigente, sendo necessário tomar esse objeto em sua concretude e tempo presente de forma a apreender os determinantes que o conformam. Essa reflexão constitui nosso ponto de partida para apreender a família enquanto unidade social imantada pelas determinações da sociedade capitalista, em seus aspectos objetivos e subjetivos.

Algumas formas históricas de reprodução da sociabilidade impostas à família da classe trabalhadora podem então ser apontadas como formas contemporâneas de valores, de afeto e de conflito que permeiam a convivência familiar.

Um desses aspectos se refere ao individualismo em detrimento da valorização da diversidade das capacidades individuais em que se desenvolve o consumismo exacerbado, a competitividade e a concorrência que subjugam os indivíduos a supervalorizar particularidades funcionais ao capital.

Outra inflexão produzida na família e que também diz respeito ao modo de valorar se refere à importação de padrões estéticos próprios de culturas hegemônicas (européia, americana ou asiática) e que também é funcional à reprodução do valor de troca a partir da indústria da beleza, da mídia e da

tecnologia. A mercadoria que o indivíduo pode consumir deve ser capaz de dizer quem ele é impondo assim um estilo de vida e de imagem condizente com os ditames do mercado. O indivíduo resiste ao tentar se diferenciar não pelos atributos de sua personalidade, mas pelas mercadorias que utiliza :

Justamente a sociedade que estimula o consumo de massa, que deixa milhões de pessoas com a mesma aparência, persiste em deduzir quem é o indivíduo em função das mercadorias que ele consome. O mesmo homem que se esforça por enquadrar-se na restrita variedade de manequins, que abre mão de moradia e alimentação decentes para usufruir da roupa, do calçado da moda, visivelmente uniformes, é o que procura nos sinais externos uma marca distintiva para si. (PALANGANA, idem, p. 142)

A necessidade da fantasia equivale à necessidade do estômago na explicação materialista das necessidades humanas. No entanto, a apropriação dos bens relativos a esse aspecto também é mediada pela reprodução do valor de troca em que a indústria de entretenimento, a televisão, o consumo de drogas lícitas (no caso dos sujeitos de pesquisa o álcool é o mais representativo) e ilícitas e a realização mercantilista da sexualidade se expressam como mediações do sujeito com a objetividade ditada pelo capital. Nesse sentido, o lazer é realizado como uma “fuga irrefletida” da opressão do trabalho cotidiano e sem sentido enfrentado pelo trabalhador que é impelido nos finais de semana, principalmente, a consumir álcool ou outras drogas, como a única “diversão” possível. Diversão essa que resvala também para o campo da violência doméstica em que o homem, particularmente, apresenta-se nas estatísticas como o principal agressor da mulher e dos filhos, tendo o álcool (droga legalizada e que tem o uso amplamente difundido nos meios publicitários) como um dos fatores de determinação para os atos violentos.

A flexibilidade do acesso à informação sem dúvida acresce os indivíduos de conhecimento e aquisições culturais, mas sob a lógica do consumismo, esse indivíduo, marcadamente a juventude, tem sido “bombardeado” cotidianamente com dados, datas, palavras e novos símbolos de forma a atender a necessidade de reprodução veloz da linguagem e de novos estilos de vida. Nesse mesmo sentido podemos considerar a descartabilidade das informações que, mediadas pelo acesso às tecnologias portáteis e a internet, se tornam obsoletas depois de vinte e quatro horas. Assim também são reproduzidos estereótipos e ídolos forjados pelos meios de comunicação de massa como forma de apoio à própria identidade (PALANGANA, idem) e que tem na juventude um público potencialmente consumidor devido à

condição de ser em processo de formação.

A descartabilidade das “coisas” é um aspecto transversal ao indivíduo humano e à família na ordem histórica do capital. A indústria lança ao mercado diversos bens que precisam ser consumidos rapidamente sendo que deixa de valer a durabilidade, característica dos bens produzidos sob a égide do fordismo- taylorismo. Tal descartabilidade obedece ao plano da flexibilidade no processo de trabalho e produção que passa a ser transferido ao ser social como um “ethos consumidor” e que ultrapassa o nível da descartabilidade das coisas para alcançar o nível das relações sociais e a construção do afeto:

Com processos de trabalho e produtos muito mais voláteis e efêmeros, a sociedade (...) se caracteriza cada vez mais como sociedade de coisas descartáveis. No círculo dos descartáveis estão desde copos, talheres, guardanapos, embalagens, material de higiene até conceitos, valores, formas de relacionamento, estilos de vida, etc. (PALANGANA, idem, p. 137) Outro aspecto que afeta as famílias da classe trabalhadora diz respeito à desagregação territorial em razão da busca por novas fontes de trabalho. O desemprego, a busca por qualificação profissional assim como a busca por serviços públicos principalmente nas áreas de saúde e educação conduzem as famílias a se fixarem em núcleos mais urbanizados, embora tenham que ocupar áreas periféricas como favelas e terrenos invadidos, sem a infra-estrutura necessária para o atendimento das necessidades da família. Nesse sentido é importante destacar o papel do Estado na estrutura fundiária brasileira ao promover condições para a expulsão de grupos tradicionais e de famílias de agricultores das suas terras, de forma a ocupar para a produção em larga escala de alimentos, assim como para a pecuária.

Em face ao desemprego, a precarização e a flexibilização nas relações de trabalho a família tem sido inflexionada de forma a buscar incessantemente a qualificação profissional e a formação de perfis empreendedores como condições à empregabilidade. Outra característica desse processo se refere à necessária flexibilidade no aprendizado de funções que possam constituir meios de trabalho informal e obtenção de renda no cenário do crescente exército de reserva de forma a envolver vários sujeitos do núcleo familiar na realização de atividades precárias e degradantes para garantia de meios de sobrevivência como o trabalho infanto- juvenil, trabalhos pesados desempenhados por pessoas idosas, prostituição,

exploração sexual infanto-juvenil, dentre outras.

Em face do cenário de deterioração do Estado na condução de políticas públicas realmente efetivadoras de direitos, a família da classe trabalhadora tem sido responsabilizada por atender as necessidades básicas dos indivíduos, onde podemos incluir também a participação das práticas solidárias de vizinhança, de amigos, de outras pessoas que não fazem parte do vínculo consaguíneo. Nesses termos, a família tem sido onerada em custos materiais para cuidar da saúde dos indivíduos, das pessoas idosas, das pessoas com deficiência, das crianças e adolescentes. Soma-se aos custos materiais a expectativa da sociedade em relação à família, qual seja: a de proporcionar um ambiente acolhedor e seguro para os indivíduos. Tal expectativa, formulada num padrão de pensamento moderno, vinculada nas premissas burguesas de preservação do indivíduo e da dignidade humana, precisa ser ampliada para que a família seja incorporada pela sociedade como um grupo social que é inflexionada profundamente pelas determinações econômicas, sociais e culturais, devendo ser entendida como um grupo que tem uma dinâmica e que se relaciona dialeticamente com a sociabilidade reproduzindo afeto e acolhimento, conflito e violência.

Assim, se faz necessário considerar a família como um núcleo de convivência onde se reproduz a força de trabalho, no sentido estrutural e também emocional e que deve ser analisada à luz dos determinantes econômicos, sociais e culturais no sentido de apreender como os mesmos a inflexionam, tendo a subjetividade como foco de análise. Tomando a classe trabalhadora como referência é necessário explicitar que tal categoria é considerada nesse estudo como um complexo social heterogêneo, assim como a família, nos interessando o recorte que tem enfrentado sérios desafios à sua reprodução em face ao cenário de desemprego, baixos rendimentos, deterioração de direitos sociais, conjunção entre trabalho formal e informal, precariedade do trabalho e das condições de vida, exploração sexual infanto-juvenil, responsabilização crescente com idosos e pessoas deficientes, etc. Esses aspectos nos levam a considerar a propriedade intelectual da perspectiva crítico-dialética por contemplar a historicidade e totalidade que caracterizam o objeto de estudo e, mesmo que a análise levante os aspectos de exploração da família, salientamos que não a situamos como vítima, uma instituição social paralisada, posto que estaríamos desconsiderando sua historicidade.

4 MARCOS CONTEMPORÂNEOS DE EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADE NA