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3 FAMÍLIA COMO A CÉLULA MATER DO PROJETO RENOVADO

3.2 Família Matrimonial Cristã: a definição de papéis

Dentro do conceito de família que é vivenciado na IPRA e, até aqui, apresentado, pode se perceber algumas coisas: o fundamento são os escritos sagrados do cristianismo – A

28 Evento promovido pela IPRA, com a presença de aproximadamente 1200 jovens, onde a tônica do evento foi a

Bíblia – e é na vida em comunidade que se estabelece uma cultura específica, que vou chamar de cultura familiar.

Até aqui ficou claro que, mesmo as comunidades evangélicas tendo os mais variados arranjos familiares, o discurso é de constituição e manutenção da família matrimonial, pois este arranjo que tem respaldo nas Escrituras, segundo estas comunidades. É o modelo monogâmico, heterossexual, de parceria entre homem e mulher no que se refere às atividades com a manutenção da casa e criação de filhos, mas com papéis bem definidos na execução destas tarefas partilhadas. Desenvolvendo uma estrutura própria. De arranjo familiar, a família matrimonial cristã se estabelece como modelo. E na IPRA este modelo tem uma representação simbólica concreta: a família pastoral.

Vou abordar a questão dos papéis sociais a partir da questão do sujeito-indivíduo, pois entendo ser este resultado de processos sociais e que, o itinerário que leva o indivíduo a tornar-se sujeito, passa necessariamente pelo chamado por Berger e Berger (1977) de socialização29. Os papéis sociais são definidos e, consequentemente, assimilados pelo indivíduo nesta interação com a sociedade. A tomada de consciência destes papéis e a sua consequente mudança são ações do sujeito. Berger (1985, p. 31) afirma:

[...] uma vez formado o indivíduo como pessoa, com uma identidade objetiva e subjetivamente reconhecível, ele deve continuar a participar da conversação que o sustenta como pessoa na sua biografia em marcha. Isto é, o indivíduo continua a ser

co-produtor do mundo social, e assim de si mesmo.

A sociedade define os papéis dos homens e das mulheres de forma muito transparente. E falar da constituição destes é se referir ao estabelecimento de direitos e

29“O processo por meio do qual o indivíduo prende a ser membro da sociedade é designado pelo nome de

socialização [...] A socialização é a imposição de padrões sociais à conduta individual” (BERGER; BERGER, 1977, p. 204). É o aprendizado de regras básicas do universo social, tomando para si o modo de vida de uma determinada sociedade.

deveres. “Os papéis masculino e feminino configurariam tipificações do que seria pertinente ao homem e à mulher num dado contexto.” (NEGREIROS; FÉRES-CARNEIRO, 2004, p. 34). No processo de socialização, os papéis são definidos. Os meninos são fortes, agressivos, independentes, dominantes e as meninas dependentes, organizadas, sensíveis. (NEGREIROS; FÉRES-CARNEIRO, 2004). Este modelo de socialização está presente não só na população pobre, mas também nas camadas médias. As propagandas para crianças ou que mostram crianças, em rede de televisão fechada e aberta, demonstram que a estrutura familiar e o modelo comportamental que se deseja definir são os dos papéis acima descritos.

Numa perspectiva funcionalista, a família é um dos agentes socializadores, pois aparece como intermediária entre o sujeito-indivíduo e a coletividade. “A família é um veículo de modelos sociais, um instrumento de ‘socialização’ pelo qual os indivíduos se inserem no meio que os rodeia.” (LIMA DOS SANTOS, 1969, p. 67-68). Na execução da função socializadora da família, mulher e homem assumem papéis distintos, como acima indicados.

As mulheres sempre estiveram, nas sociedades patriarcais, “silenciosas e silenciadas no exercício de seus papéis [...] reconhecidas apenas como mães, esposas, filhas e trabalhadoras” (GOUVEIA, 1999, p. 118). O caráter dual de papéis sociais e sexuais direciona a sociedade até os dias atuais. A luta desenvolvida por movimentos de emancipação da mulher e a dinâmica da sociedade que exigiu a presença maciça desta no mercado produtivo e consumidor, têm levado a uma “(re) descoberta de novos códigos e identidades posicionais.” (TAVARES, 2010, p. 122).

Na leitura de Tavares (2010), o padrão de conduta que estabelece relações igualitárias entre os sexos se faz presente nas camadas médias da população, onde

“apreenderam mais fortemente o viés psicologizante das ideologias individualistas.” (TAVARES, 2010, p. 123).

É no campo do funcionalismo que o estabelecimento dos papéis sociais se fundamenta, buscando legitimar a subordinação da mulher, limitando-a ao espaço privado. Ou, ainda analisando o desempenho de seus afazeres não domésticos pelo viés do naturalismo (sua condição de mulher), mesmo em uma sociedade marcada pelo individualismo liberal, encontra-se eco para tais práticas e interpretações não só nas populações pobres.

A família nuclear burguesa, nascente na Revolução Industrial e consolidada pelo estilo de vida americano dos meados do Século XX, construiu o imaginário de mulher presa aos afazeres domésticos, cuidadora da casa, do esposo e dos filhos e sacralizada pelo cristianismo ocidental. Esta condição de mulher se contrapunha à população pobre, em que ela precisara desde cedo deixar a casa para produzir seu próprio sustento. Mesmo em profissões ligadas ao serviço doméstico e marcadamente feminino.

Em pesquisa realizada com mulheres das camadas populares “na faixa etária de 20 a 52 anos, mães de crianças e adolescentes inseridos no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil — PETI, residentes no bairro Santos Dumont, localizado na periferia de Aracaju (SE), que participavam de um curso de culinária regional, promovido pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania” (TAVARES, 2010, p. 125), é demonstrado que a sociedade de consumo manteve as mulheres pobres nos serviços domésticos, mas também despertou nelas o desejo do consumo; só que sem nenhum poder decisório. Na dependência moral e econômica dos homens, estas mulheres esperam exercer domínio sobre suas vidas e seus corpos. (TAVARES, 2010).

Retomando o conceito de antropologia dual de Bello (2007b), se é confrontado com a ideia de um elemento característico em todas as mulheres, mesmo entendendo a questão da singularidade de cada ser humano; a condição de mulher é destaque na abordagem de família apresentada por Bello (2007b). Traz a discussão da percepção de vida a partir da relação corpo/alma/psique e afirma que a mulher tem uma percepção mais harmônica de suas potencialidades, enquanto o homem um desempenho mais presente, mais forte.

Coloca assim a mulher no campo do intuitivo, da sensibilidade, da dedicação ao outro, na busca do serviço. O que justifica a presença da mulher nas profissões domésticas e do cuidado. Já o homem “possui o impulso do conhecer, do apossar-se do objeto conhecido para poder gozar dele e para plasmá-lo segundo seus desejos”. (BELLO, 2007b, p. 93). O processo de educação (tomada de consciência) leva a um reconhecimento, segundo Bello, (2007b) desta condição, e coloca homem e mulher numa relação de reciprocidade. Mas sempre com suas características bem definidas.

Na conversa com os entrevistados, nota-se a presença desta matriz funcionalista e naturalista, bem como no próprio discurso dos pastores da igreja. Ana afirmou: “elas [as mulheres] precisam cumprir mais seus papeis domésticos, de mãe [...]”. A concepção de uma dualidade é bem presente nas falas. Maria, que entrevistei em sua residência, num dia em que se preparava para ir à reunião, frequenta o renovo de vida as quartas, pois ali se “aprende a ser mulher”. Aí a identificação com a pastora é muito clara. Querer ser semelhante a ela, tê-la como exemplo a seguir. Numa das chamadas30 para o encontro das quartas, a pastora diz que o objetivo do renovo é para a “mulher buscar sabedoria em Deus para edificar sua casa”; e mais, “o Renovo de Vida tem o propósito de fazer sua vida mais bela”. Este foi um dos pontos

que me chamou à atenção. A presença de pessoas inseridas em uma sociedade plural em que esta concepção já foi superada aceita não só o discurso, mas a prática de uma diferenciação não só de papeis sociais, mas acima de tudo de natureza e de funções predeterminadas.

A família matrimonial é o modelo a se implantar no projeto ético-político renovado. Mas ela por si só não subsiste, precisa de outros elementos para se fortalecer. Daí a necessidade de se pensar uma Família mais extensa.