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Família e poder familiar no século XXI

CAPÍTULO I – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PODER FAMILIAR

1.3 Família e poder familiar no século XXI

Segundo Orlando Gomes, o conceito de família no que tange à sua estrutura, não se modificou na lei. Para o legislador do Código Civil, como para qualquer legislador moderno, a família é grupo constituído pelos cônjuges e pela prole, posto que a família disciplinada na lei civil é a família conjugal, aquela sociedade natural a que se referiam alguns legisladores. 64

Vê-se daí, que esse ainda é um conceito atrasado, posto que hoje, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988 que reconheceu o pluralismo familiar, ampliaram-se as formas de constituição da família, não se podendo ignorar que a relação entre homem e mulher encontra-se em um patamar mais amplo.

Com efeito, a evolução da sociedade e a mudança de paradigmas fizeram com que a formação de lares pelo simples elo da convivência apontasse para um novo modelo de família. Tão comuns tornaram-se as uniões livres, que a sociedade as aceita e quase não as diferencia do casamento, e, como ensina Aida

63 João Baptista Villela, Desbiologização da paternidade, Revista Forense, Rio de Janeiro, jul./set.

1980, nº 71, p. 49.

Maria Loredo Moreira de Souza, o amor tornou-se mais importante do que a legalidade.65

A sociedade não se preocupa mais com a forma ou legalidade do ato com que está fundada a relação entre homem e mulher, pois como as uniões livres crescem a cada dia, teve a legislação que se adaptar ao cotidiano, sob pena de tornar-se obsoleta diante das aspirações humanas. Desta forma, o novo Código Civil apresenta-se em vários aspectos em consonância com a realidade atual das uniões livres.

A família moderna ganhou contornos e caracteres diversos daqueles inspirados no direito germânico66: substituiu-se a organização autocrática pela

orientação democrático-efetiva. O centro de sua constituição deslocou-se do princípio da autoridade para o da compreensão e do amor, e nessa seara, como enfatiza Caio Mário da Silva Pereira, as relações de parentesco permutaram o fundamento político do agnatio pela vinculação biológica da consangüinidade (cognatio), e os pais exercem pátrio poder, identificado no novo Código Civil como “Poder Familiar”, no interesse da prole menos como direito do que como complexo de deveres (poder-dever, em lugar de poder-direito).67

Verificava-se, outrora, que o poder marital já se considerava um eufemismo vazio do antigo conteúdo, desde que o texto constitucional de 1988

65 Aida Maria Loredo Moreira de Souza, Aspectos polêmicos da união estável, Rio de Janeiro: Lúmen

Júris. 2000, p. 01.

66 Como dito anteriormente, a família, na sua evolução pós -romana, revestiu-se da espiritualidade

cristã, por influência do direito germânico, assumindo cunho sacramental.

equiparou os direitos e deveres dos cônjuges nas relações matrimoniais (art. 226, § 5º), o que foi recentemente reforçado pelo Código Civil (art. 1.511).

Não há controvérsia de que a família seja a célula básica de toda e qualquer sociedade, e esta tem despertado interesse de todos os povos, em todos os tempos, posto que entendê-la é preservar a continuidade da sociedade e do Estado.

A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem em seu art. XVI, 3, estabeleceu que: “a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”.

Da mesma forma, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos assinada na Costa Rica, ratificado no Brasil pelo Decreto n° 678, datado de 6 de novembro de 1992, que em seu art. 17, 1, assevera:

“Art. 17

1. a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado”.

Modernamente, o grupo familiar se reduz numericamente, as necessidades econômicas ou a simples conveniência leva a mulher a exercer atividades fora do lar, o que enfraquece o dirigismo no seu interior. Problemas habitacionais e de espaço, e atrações freqüentes exercem nos filhos maior fascínio

do que as reuniões e os jogos domésticos do passado, segundo Caio Mário da Silva Pereira, e assim conclui que :

“Identificada pela Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança – ONU/89 (Decreto nº 99.710/90) como núcleo fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros e, em particular, as crianças, predomina, hoje, o seu conceito como unidade social. A perda gradativa de seus membros e a expulsão de agregados e serviçais e pelas menores possibilidades de contato com o resto da família levaram Bernardo Jablonski a identificá-la como “fam-ilha”, equiparando-a a uma ilha por seu isolamento, sobretudo, nos grandes centros urbanos”.68

A família atual está calcada na relação de afeição, solidariedade e da dignidade dos seus membros e de acordo com o art. 226 da Constituição Federal a família necessita de maior proteção do Estado, na medida que mais adiantado é um país, quanto mais eficiente sua proteção à família. Esta proteção se traduz em um direito subjetivo oponível erga omnes e num princípio universalmente aceito.69

68 Bernardo Jablonski, Até que a vida nos separe – a crise do casamento contemporâneo. Apud. Caio

Mário da Silva Pereira, Instituições, cit., p. 28.

69 Paulo Luiz Netto Lobo, A repersonalização das famílias, Revista Brasileira de Direito de Família,

Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, ano VI, nº 24, jun/jul 2004, p. 138. Lembra o autor que “A Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada pela ONU em 10 de dezembro de 1948, assegura Às pessoas humanas o ‘direito de fundar uma família.”, Caio Mario da Silva Perria, Instituições de direito civil,Rio de Janeiro: Forense vol V, 1987, p.23

O espaço alcançado pelo Estado Social é tão evidente que alguns autores, como Caio Mario, 70 afirmam que a autoridade patriarcal foi substituída pela

estatal. Tal posição é considerada exagerada para Paulo Luiz Netto Lobo para quem “O sentido de intervenção que o Estado assumiu foi antes de proteção do espaço familiar, de sua garantia, mais do que sua substituição. Até porque a afetividade não é subsumível à impessoalidade da res publica.”71

Nos Tribunais e no âmbito político-administrativo, a proteção da família é centrada especialmente nos filhos menores, e orientada, a cada dia, pelo princípio do melhor interesse da criança como um novo paradigma, valorizando a convivência familiar dentro ou fora do casamento.

Houve, pois, sensível mudança nos conceitos básicos. A família transformou-se profundamente e ainda está se transformando sob os nossos olhos, de modo que, não se podem definir as suas linhas precisas de contorno. Não se deve, porém falar em desagregação, nem proclamar verdadeiramente uma crise. Como organismo natural, a família não acaba.

Conforme Rodrigo da Cunha Pereira, a Constituição de 1988 tem como grande marca revolucionária o capítulo sobre a família, que modifica profundamente a estrutura do Código Civil brasileiro em relação ao direito de família.

70 Caio Mario da Silva Perria, Instituições, cit., p.23.

Evidente que esses dispositivos não surgiram de uma hora para a outra; são conseqüência e tradução de um contexto histórico, onde a desigualdade de direitos, especialmente entre homens e mulheres, não poderia ter mais lugar.72

Uma nova concepção de família se constrói em nossos dias, mesmo diante das chamadas crises da família. Nessa seara, desaparece a organização patriarcal, a qual vigorou no Brasil por todo o Século XX, não apenas no direito, mas, sobretudo nos costumes. O pai, como um pater romano,73 exercia autoridade plena sobre os filhos que, como já destacado, nada faziam sem a sua permissão. Escolhia- lhes a profissão, elegia o noivo da filha, e estava sempre presente em toda a vida de uns e de outros, a cada momento. Hoje, a idéia de família se abriu, ampliando em direção a um conceito mais verdadeiro e real, impulsionado pela própria realidade.

Por conseqüência, o instituto do pátrio poder também muito se modificou, acompanhando a trajetória histórica da própria família, inclusive no tocante a sua terminologia, poder familiar, mais adequada à igualdade jurídica dos cônjuges.

Com efeito, o rigor do pátrio poder pouco a pouco foi cedendo lugar à nova família74 formada a partir do afeto e pautada nos princípios da afeição, da

72 Rodrigo da Cunha Pereira, Concubinato, cit., p. 21.

73 A respeito do tema: José Carlos Moreira Alves, Direito..., cit., p. 313-314, Tomas Marky, Curso...,

cit., p.155; José Cretella Júnior, Curso..., cit., p. 112

74 Maria Helena Diniz, Curso..., cit., p. 17-24; Silvio de Salvo Venosa, Direito..., cit. p. 24-26; Caio

Mario da Silva Pereria, cit., 6-10; Carlos Roberto Gonçalves, Direito..., cit., p. 5-12; Patrícia Pimentel de Oliveira Chambers Ramos, O poder familiar e a guarda compartilhada sob o enfoque dos novos paradigmas do direito de família, Rio de Janeiro: Lúmen Juirs, 2005, p. 16, denomina o conjunto de princípio que norteiam o direito de família de “eudemonismo”; Paulo Luiz Neto Lobo, Paternidade

dignidade, da solidariedade, da liberdade, da igualdade jurídica dos cônjuges ou companheiros e de todos os filhos, do poder familiar, do respeito e consideração mútuos, na realização pessoal de seus membros, ou seja, instrumento de felicidade.

Nesse contexto, ganha espaço o diálogo e uma considerável melhoria na relação afetiva entre pais e filhos. Segundo José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreria Muniz: “Acentuam-se as relações de sentimento entre os membros do grupo: valorizam-se as funções afetivas da família que se torna o refúgio privilegiado das pessoas contra a agitação da vida nas grandes cidades e das pressões econômicas e sociais”.75

O afeto no qual se reúne a nova família não deve ser entendido como aquele presente no modelo de família romano76. Ao contrário, hoje se traduz como valor sócio-afetivo que funda uma sociedade conjugal, matrimonializada ou não, pois como observa Paulo Luiz Netto Lobo 77 “a afetividade, sob o ponto de vista

jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico ou anímico, este de ocorrência real necessária. (...) A afetividade é o princípio jurídico que peculiariza, no âmbito da família, o princípio da solidariedade.”

sociafetiva e o retrocesso da Súmula 301 do STJ, Revista Jurídica, Porto Alegre, n. 338, janeiro, 2005, p. 47.

75 Direito de família: direito matrimonial, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1990, p. 11.

76 No direito patriarcal romano, a affectio era presumida e condicionada aa existência de um situação

jurídica chamada casamento, que trazia em seu bojo a affectio maritalis, que justificava a perpetuidade da relação, enquanto que, hoje, o afeto compreende a vontade de estar e permanecer junto a alguém. Sobre o assunto vide José Carlos Moreira Alves, Direito..., cit. p. 287.

77 Paternidade sociafetiva e o retrocesso da Súmula 301 do STJ, Revista Jurídica, Porto Alegre, n.

CAPÍTULO II - CONCEITUAÇÃO ATUAL DO INSTITUTO: PÁTRIO PODER,