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Abuso Sexual Corrupção de

CAPÍTULO 3 A FAMÍLIA E A CONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA

3.3 Família e violência

A prática da violência no interior da família não é fato recente. (Áries, 1981, Badinter, 1995, Azevedo & Guerra, 1995, Faleiros & Faleiros, 2001, 2004, 2005, dentre outros) Os estudos históricos que envolvem a compreensão da infância e adolescência têm demonstrado e confirmado tal fato. Contudo, para apreendermos melhor esse fenômeno é importante compreender o complexo contexto familiar. Assim, devemos nos remeter não só à estrutura, dinâmicas familiares e aos aspectos relacionais, mas também aos diversos processos de mudança que têm afetado a família e trazido uma multiplicidade de formas de vida familiar.

“Do ponto de vista histórico, nosso testemunho é o de que a violência está profundamente entrelaçada na própria história do nosso continente e já reside em nosso subconsciente coletivo. Escravos trazidos da África e aqueles nascidos no novo continente nos deixaram um legado de heroísmo e resistência, calcado pela violência infringido pelos colonizadores. Estamos unidos em nossa memória histórica por uma teia de violência, cuja estratégia era conquistar dominar e manter o seu poder”. (p. 34/35).

A maioria dos estudos que abordam a violência doméstica enfoca a violência sob um ponto de vista linear, onde a vítima é vista como portadora de traumas e conseqüência psicológica e o agressor como um doente mental ou criminoso. Essa visão, de certa fora reducionista, precisa ser ampliada pois, como nos diz Ribeiro & Borges (2004): “...é muito mais complexa e precisa

ser estudada de forma mais abrangente, levando em consideração não só aspectos individuais, mas familiares e sociais, pois a violência afeta não só o individuo ou as vitimas diretas, mas a família como um todo”( p. 05)

Como nos lembra Bucher (2004):

“O conceito de violência apresenta uma dimensão essencialmente negativa, na medida em que nega os valores instituídos e normatizadores pela cultura, quando atenta contra a vida e seus valores. Além disso, surge com uma ameaça latente de negação da existência física e ou, simbólica do sujeito, do grupo e da comunidade, tendo como conseqüência a punição”(p. 158).

Para essa autora existem dois tipos de contextos em que se desenvolvem as diversas modalidades de violência, seria o meio social e o familiar. Contudo, esses dois contextos se interrelacionam e se entrelaçam. Dessa forma, a violência que se manifesta de forma interpessoal no indivíduo tem raízes tanto no micro quanto no macro social. Essa afirmação encontra ressonância em outros autores que também percebe essa inter-relação. (Ribeiro & Borges, 2004, Rizzini, 2001, dentre outros).

Como nos aponta Faleiros (2005), apesar de em todas as culturas a família apresentar as funções sociais em que envolve a reprodução, a socialização, a internalização de valores, a educação e o desenvolvimento de seus membros; essas dimensões, contudo, diferem ao longo da história e nessas mesmas diferentes culturas. A violência inscrita nas famílias demonstra o tanto que as relações familiares são revestidas de contradição e conflitos, imbricadas em relações de poder. “Assim, a família não é, em princípio, um lugar tranqüilo, embora seja

também um espaço de harmonização, de ajuda, de confraternização, de afeto, de festa, de celebração e de apoio”( Faleiros, 2005, p. 109)

A família contemporânea tem encontrado inúmeras dificuldades para cumprir suas funções psicossociais. Vivemos um momento de intensas e rápidas mudanças sociais – o trabalho de ambos os pais, alto índice de divórcios e re-casamentos, perda do sentido de tradição, valores culturais pouco claros, mudança dos papéis dentro da família, etc. São fatores que interferem

nos padrões de relacionamento entre os membros da família e requerem, dessa instituição, uma capacidade de adaptação e reestruturação muito rápida para continuar cumprindo as novas exigências e solicitações que lhe são apresentadas (Ribeiro & Borges, 2004).

Nos últimos anos, o tema da violência em geral e da violência intrafamiliar tem sido discutido em várias instâncias, e isso, somado aos números que são publicados pela imprensa, nos levam a pensar que a violência tem aumentado em todas as partes do mundo. Diante deste fato cabe levantar a seguinte questão: até que ponto estes dados refletem não só o aumento da violência em si, mas uma maior consciência sobre o abuso e uma mudança na percepção popular do que é abuso? (Ribeiro & Borges, 2004). É evidente que num Estado de Direito e com a mobilização maior de toda a sociedade civil e política, tem sido visto um aumento na consciência sobre o fenômeno, tanto por parte de acadêmicos e estudiosos no assunto, quanto da própria população, que busca a garantia de direitos.

Diversos estudiosos do assunto (Azevedo & Guerra, 1995; Faleiros, 2001, 2005; Costa & Almeida, 2005, dentre outros) afirmam que o fenômeno da violência é altamente complexo e multifacetado e uma das tarefas mais desafiadoras é desagregar formas diferentes de violência e compreender suas características e conseqüências. Como já foi citada neste trabalho, a questão conceitual é um dos desafios a ser enfrentado por pesquisadores, pois a violência pode ser classificada segundo diferentes variáveis: indivíduos que sofrem a violência (mulheres, crianças, idosos e incapacitados, dentre outros); motivo (político, racial, instrumental, emocional); e relacionamento entre a vítima e seu perpetrador (parente, amigo, conhecido ou estranho). É nesse sentido que se destaca a violência intrafamilar, denominada por diversos autores e no presente estudo como violência doméstica, ou seja, aquela que ocorre entre pessoas relacionadas por sangue, casamento ou direito consuetudinário (indivíduos que antes pertenceram à mesma família – ex-cônjuges e ex-companheiros).

Os diferentes tipos de violência não se produzem de forma isolada dentro da família, mas formam parte de um contínuo. Cabe mencionar uma outra forma de violência intrafamiliar que é a violência patrimonial ou econômica, revelada em todas as medidas tomadas pelo agressor, tais como nas omissões que afetam a sobrevivência da mulher e seus filhos; no despojo ou destruição de bens pessoais ou da sociedade conjugal, incluindo a negação do pagamento de ajuda alimentícia ou gastos básicos para a sobrevivência do núcleo familiar. (Ribeiro & Borges, 2004).

Em se tratando de violência sexual não podemos perder de vista a questão da transgeracionalidade, pois, sob o aspecto da proteção da criança e do adolescente essa compreensão é fundamental. Em um artigo em que analisa esse aspecto (Costa, L. F., Gramkow, G., Santana, P. & Ferro, V. S., 2005) retomam a importância da transgeracionalidade ao proceder um estudo com famílias em que ocorre uma situação de violência sexual, usando como

instrumento o genograma. As autoras veêm que a presença de situações de violência na família extensa cria um estado de vulnerabilidade para que a violência sexual aconteça no presente.

Neste mesmo aspecto, Rangel (2001) salienta que embora a violência sexual esteja intimamente relacionada com a violência de gênero, a questão do abuso sexual intergeracional apresenta especificidades que somente serão percebidas se atentarmos para as características e o contexto que permeiam tanto a infância quanto a família. Essa mesma autora ao enfatizar a perspectiva intergeracional salienta o quanto essa questão dá um vislumbre de toda uma dinâmica das relações explícitas e implícitas dentro da família.

Faleiros (2005) argumenta que o abuso sexual de crianças nos remete a uma trama sob a qual estão imbricadas as diversas relações do abusador e da criança vitimizada e onde estão incluídas não só a família, mas também os profissionais das diversas áreas, as redes de exploração, assim como toda uma comunidade e a sociedade. É um drama para as pessoas que estão diretamente envolvidas e tem desencadeado um trauma para as crianças vitimizadas que

“... se faz e se guarda como sofrimento, como perda de si, como exclusão de possibilidades, e pode se mostrar em raiva ou em feridas psicossomáticas muito diversas de pessoa a pessoa” (p. 112). Ademais, esse mesmo autor acrescenta: “A saída dessa relação de violência é muito

complexa, passa pela sua revelação no interior da família, para desfazer-se a trama, explicitar o drama e curar o trauma.” (p.117).

E dando continuidade ao pensamento de Faleiros (2005) delineado acima achamos que seria fundamental nos atermos nesse momento às dinâmicas e relações familiares. Porque é no exercício das subjetividades é que poderemos tentar desvelar “a trama, o drama e o trauma” vivenciada pelas famílias cuja situação de violência sexual doméstica são acometidas. Alguns autores as denominam de “famílias abusivas” (Azevedo & Guerra, 1984, 1989, 1997; Furniss, 1993) no sentido de que abusam do poder e infligem dor e violência. Mas achamos conveniente pensarmos em famílias em cujas relações são construídas formas de relações violentas e abusivas, pois elas não são per si abusivas. Não podemos esquecer que na construção da violência diversos elementos e fatores a predispõem e as tornam visíveis ou as sutilezas dessas relações são por demais evidentes para serem vistas e notificadas.