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Famílias Compostas por Pares Homossexuais

CAPÍTULO 2 CONCEPÇÃO DE FAMÍLIA

2.1 Famílias Compostas por Pares Homossexuais

Até pouco tempo seria impossível pensar na inserção da família constituída por pares homossexuais no Direito de Família. Isso porque durante muito tempo e até hoje eles são alvo de discriminação e rejeição social (DIAS, 2004).

No Ocidente, foi a partir da década de 1990 que os homossexuais iniciaram a intervenção no campo político e questionaram a verdade absoluta de que a família e o casamento diriam respeito estritamente às relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres. Levando em consideração que legalmente a família composta por pais/mães homossexuais21 não é reconhecida, analisaremos a mesma a partir das funções familiares que correspondem às expectativas sociais.

Peres (2006) destaca algumas funções da família apontadas por diversos estudos:

20 A Constituição de 1988 reconheceu legalmente novas configurações de família: a monoparental e a união estável. De acordo com a lei, a família monoparental é caracterizada pela presença de apenas um dos pais e seu(s) descendente(s). Já a união estável caracteriza-se pela união entre homem e mulher, que seja contínua e prolongada, de conhecimento público e que tenha como fim formar uma família (PERES, 2006).

21

É necessário ressaltar que alguns autores, em vez de utilizarem a expressão “família composta por pais/mães homossexuais”, utilizam “família homossexual”. Pensamos que conceitualmente esta última expressão seria equivocada, visto que somente os pais ou as mães presentes na família têm a orientação sexual voltada para o mesmo sexo, mas não se sabe a orientação sexual dos filhos e, assim, não se poderia rotular a família como um todo. Por tal motivo, ao longo do trabalho utilizaremos a primeira expressão explicitada.

a) procriar, canalizar e disciplinar a sexualidade, de modo a assegurar a perpetuação da espécie; b) adquirir recursos necessários, a fim de responder às exigências naturais de seus membros, provendo-lhes o máximo de bem-estar físico e psíquico; c) desenvolver a personalidade da criança [...] iniciando-a nos papéis sociais, nas instituições e nos costumes da sociedade, proporcionando uma primeira forma de socialização; d) transmitir a cultura [...] os valores simbólicos, e a memória fundadora, assim como os costumes, ritos e tradições do grupo [...] (PERES, 2006, p. 29).

Prado (1981) também considera que a família tem funções importantes, afirmando que esta é uma instituição cujo papel é fundamental no desenvolvimento da sociabilidade, da afetividade e do bem-estar das pessoas, principalmente no período da infância e da adolescência. Uziel (2002, p. 8) compartilha dessa mesma idéia, afirmando que: “tradicionalmente a família tem como função proporcionar um primeiro contato com as regras sociais, inculcar hábitos, produzir e reproduzir padrões culturais para os indivíduos, enfim, ser um agente socializador”.

Segundo Peres (2006), tendo em vista as funções de família, dentre as possíveis configurações já comentadas, deve-se questionar por que não considerar o casal homossexual como família, visto que ele pode estar apto, como qualquer outro casal, a exercer tais funções, exceto pela obrigação da procriação realizada de forma natural, ou seja, sem a utilização de métodos artificiais.

Ainda assim, é importante considerar que, segundo Maldonado (2001) e Peres (2006), a partir do modelo de família que vivemos atualmente, no qual prevalece a busca constante de satisfação e prazer entre as pessoas que se relacionam, aliado ao desenvolvimento da ciência por meio das técnicas de contracepção, a procriação deixou de ser uma imposição social às relações familiares como um todo, devendo ocorrer de acordo com a escolha livre dos parceiros. Por outro lado, se a impossibilidade de reprodução biológica entre os parceiros fosse o único empecilho para não reconhecer as famílias homossexuais, diríamos que as pessoas que são inférteis também não poderiam constituir uma família.

Para Prado (1981, p. 22), a família composta por pais/mães homossexuais pode ser reconhecida e assim descrita:

A família homossexual, quando duas pessoas do mesmo sexo vivem juntas, com crianças adotivas ou resultantes de uniões anteriores. Ou ainda, no caso de duas mulheres, com filhos por inseminação artificial. Isto vem se tornando possível em países onde tal opção de vida deixou de ser obstáculo legal à convivência com crianças, como nos Estados Unidos.

O reconhecimento das famílias alternativas, principalmente aquelas constituídas por pares homossexuais, tem estreita ligação com as mudanças nos papéis de gênero que têm ocorrido nos últimos 50 anos. Tais mudanças foram influenciadas pela revolução feminista, pela aprovação da Lei do Divórcio em 1977 e pela entrada da mulher no mercado de trabalho, havendo expansão das funções e redistribuição dos papéis de homem/mulher e pai/mãe. Desse modo, não só as tarefas de sustento e de cuidados domésticos foram reavaliadas, mas também a relação dos pais com a educação e o cuidado com os filhos (PERES, 2006; PRADO, 1981).

Mello (2005) explicita bem a questão dos papéis de gênero e sua relação com o reconhecimento da família composta por pais/mães homossexuais:

As lutas pelo reconhecimento social e jurídico da dimensão familiar das uniões homossexuais estão constitutivamente associadas à afirmação/negação do mito da complementaridade dos sexos e dos gêneros, uma vez que a competência moral e social para desempenhar as funções atribuídas à instituição familiar, especialmente do que diz respeito à parentalidade, tem sido restrita ao casal homem-mulher (MELLO, 2005, p. 17).

Além das mudanças nos papéis de gênero, percebe-se que vários fatores têm sido importantes para o entendimento de que as uniões homossexuais estão se caracterizando como uma nova forma de entidade familiar: a autonomia da sexualidade em relação à reprodução e à conjugalidade; a reflexão acerca da dimensão natural de família, sexo e gênero; e a expansão nas formas de se entender os direitos humanos e de cidadania, de maneira que abarquem os direitos referentes à sexualidade e à reprodução (MELLO, 2005).

No entanto, nota-se que, embora estejam ocorrendo essas modificações, muitas vezes, para essas famílias, quando se fala em filhos, sejam eles adotivos ou naturais, essa questão torna-se muito difícil de obter aprovação da sociedade (PERES, 2006).

A problemática levantada pela sociedade de que os homossexuais não teriam condições para criar seus filhos tem estreita ligação com o reconhecimento legal e social da conjugalidade homossexual, como afirma Mello (2005):

O não-reconhecimento social e jurídico das relações amorosas estáveis entre gays e entre lésbicas como família é a principal interdição que atinge os homossexuais no contexto da realidade brasileira, especialmente no tocante à socialização de crianças. Essa interdição está alicerçada na defesa irrestrita da conjugalidade e da parentalidade como possibilidades limitadas ao universo da norma heterocêntrica (MELLO, 2005, p. 17).

Segundo Uziel (2006), a interpretação da lei dá margem para questionamentos sobre o fato de as relações homossexuais se enquadrarem ou não na concepção de família. Essa dúvida ocasiona posturas diferentes por parte de juízes e promotores. Enquanto alguns alegam que a lei não veda a adoção por pessoas homossexuais e que a Constituição prevê a igualdade de direitos a todos, outros dizem que os homossexuais não constituiriam família, não podendo ser considerados uma família substitutiva para uma criança (UZIEL, 2006).

É importante questionar o porquê de tanta polêmica acerca da família composta por pais/mães homossexuais e o porquê de muitas pessoas não reconhecerem como legítima a família organizada nessas situações. Segundo a historiadora e psicanalista Elizabeth Roudinesco (2003), o que incomoda aos conservadores não seria o fato de os casais homossexuais estarem questionando os valores e o modelo tradicional de família, mas sim o fato de estes casais demonstrarem a vontade de se incluírem neles, ou seja, de serem considerados iguais, e detentores do mesmo respeito e direitos.

Poderíamos dizer que o fator que mais contribui para a não aceitação das famílias compostas por pais/mães homossexuais é o preconceito. Mello (2005), ao se referir ao temor da sociedade diante do reconhecimento da família composta por pais/mães homossexuais, diz que se esta fosse legitimada social e juridicamente, haveria grande desestruturação do modelo idealizado de família e a crise na família seria intensificada. Isso abalaria a concepção de família natural e sagrada, defendida pelos mais conservadores que são contra, inclusive, as mudanças que ocorrem dentro das uniões heterossexuais quando estas redefinem valores, hábitos e comportamentos que eram considerados universais e imutáveis.

Dias (2004) lembra que o preconceito se revela no cotidiano, nos diálogos informais ou nos meios de comunicação, por exemplo, sem que haja punição formal prevista em lei de âmbito federal, em relação à discriminação explícita e ao preconceito manifesto. Embora, em geral, o Poder Judiciário brasileiro tenha sido omisso diante dessas questões, em 2001 foi reconhecido, pela primeira vez no território nacional, o relacionamento entre dois pares do mesmo sexo como entidade familiar, garantindo herança de todo patrimônio ao sobrevivente em caso de morte de um dos cônjuges. Esse fato foi significativo para inserir julgamentos sobre esses relacionamentos no contexto do Direito de Família. Até então eles eram julgados no Direito das Obrigações22 (DIAS, 2004).

22 Segundo Menezes (2005), “a obrigação é o direito do credor contra o devedor. Num conceito mais completo, a obrigação é um vínculo jurídico transitório em virtude do qual uma pessoa fica sujeita a satisfazer uma prestação econômica em proveito de outra [...] o Direito das Obrigações trata das relações entre pessoas, então em toda obrigação tem dois sujeitos, um ativo, chamado credor, e um passivo, chamado devedor”.

O temor da sociedade diante das relações afetivas e sexuais alternativas é grande, pois elas significariam ir contra os valores religiosos e morais. A tendência é de desconsiderar e negar a existência das relações homossexuais ou de marginalizá-las, compreendendo-as como anormais. Entretanto, ao negar a legitimidade social e jurídica das uniões homossexuais, elas não irão desaparecer. O não reconhecimento torna-se apenas uma forma de repressão e opressão a essas pessoas (DIAS, 2006).

Como nos leva a refletir o médico Dráuzio Varella (2003), muitas mulheres e homens podem sentir desejos homossexuais e escondê-los por muito tempo ou por toda a vida; estabelecendo uma relação heterossexual ou não estabelecendo vínculo algum. Porém, atitudes como essas não significam que o desejo homossexual dessas pessoas tenha desaparecido.

Pensemos: a sociedade teria medo de que a família composta por pais/mães homossexuais abalasse sua estrutura de tal forma que ficasse impossível governar e a nação se desestabilizaria? Mas como e em que sentido ela faria isso? Será que se a família composta por pais/mães homossexuais fosse reconhecida ela não ajudaria no desenvolvimento da sociedade, visto que “no campo das políticas sociais a família hoje é vista de distintas formas: beneficiária, parceira e mini-prestadora de serviços de proteção e inclusão” (UNICEF, 2004, p. 18)?

Acreditamos que os casais homossexuais podem desenvolver as mesmas habilidades e estabelecer as mesmas funções que um casal heterossexual em seu cotidiano. Sendo assim, Dias (2006) considera que a inclusão dessas famílias, consideradas minorias, na esfera social e jurídica do País pode ajudar no crescimento social, econômico e cultural nacional. A autora explicita que:

Estudos comprovam que as sociedades que alcançaram o mais alto nível sócio- econômico-cultural são aquelas que promoveram a integração de suas minorias. E não só a integração, mas também – e isso é o mais importante – favoreceram o desenvolvimento da identidade desses grupos (DIAS, 2006, p. 45).

Zambrano (2006) corrobora a opinião de Dias ao constatar que a Associação Americana de Antropologia, entidade que reúne o maior número de antropólogos do mundo, confirma por meio de documento oficial que os estudos realizados durante mais de um século relatam que não há nada que indique que uma sociedade só pode garantir seu sucesso caso se constitua apenas por casamentos heterossexuais. Os estudos confirmaram o contrário, que a

variedade de famílias, incluindo a constituída por pais/mães homossexuais, contribui para o crescimento e o desenvolvimento das sociedades.

Além de os dados indicarem que a inclusão das diversas formas de família seria benéficapara o desenvolvimento da nação, também o seria para as pessoas que as constituem. Para Mello (2006), apesar dessa marginalização, todos os casais, sejam eles hetero ou homossexuais, podem compartilhar esforços afetivos e financeiros e construir modos de vida que venham a fortalecer a satisfação afetivo-sexual, a segurança pessoal e material, elaborando projetos de vida individuais e coletivos. Se ambos os casais, tanto hetero quanto homossexuais, podem contribuir para o bem-estar de sua família, tudo indica que tanto um quanto o outro poderiam assumir com eficiência a criação e o cuidado de seus filhos.

Nesse sentido, Silva Júnior (2006a, p. 34 e 35) complementa:

Enfocando-se a família como realidade ou dado psíquico, percebe-se a verdade socioafetiva mais relevante do que a biológica, porque é o amor e a afeição recíproca que marcam o liame de respeito entre seus membros. Assim, na edificação subjetivo-familiar, onde cada pessoa ocupa uma função (a de pai, mãe ou filho, por exemplo), não é preponderante o vínculo biológico ou a orientação sexual dos integrantes, mas o afeto que os prepara para enfrentar os desafios da existência.

Levando em conta o preconceito presente acerca das relações homossexuais e, logo, da criação e educação de crianças por parte de homossexuais, analisaremos, no próximo capítulo, as crenças sociais sobre o assunto e o que as pesquisas científicas têm a dizer.