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Capítulo 3 – Doçuras e Agruras do Sertão em Grande Sertão: Veredas

3.6 Da fartura e da Festança

Ainda que as mazelas da alimentação no sertão pululem por toda a obra, há episódios de fartura na alimentação, seja no abastecimento, ou depois de guerrear; tais cenas revelam momentos de hospitalidade e comensalidade entre os convivas:

Modo mesmo assim, ele Jõe Engrácio reparou na quantidade de comidas e mantimentos que a gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que era despropósito, por amor daquela fartura – as carnes e farinhas, e rapadura, nem faltava sal, nem café. De tudo. E ele, vendo o que via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir junto. – “Bobou?” – foi só o que Medeiro Vaz indeferiu. – “Bobei, chefe. Perdão peço...” – Jõe Engrácio reverenciou.” (ROSA, 2001, p. 59).

Mais do que quantidades, o conforto e a afetividade de Riobaldo com a comida se revelam em rememorar alguns desses eventos: a ideia de conforto e boa comida são frequentemente referidas por Riobaldo em suas reflexões, já que, como ele mesmo já o disse: gostava era do bom e do melhor, sempre; como é o caso dos apontamentos do velho jagunço acerca das ternas lembranças que nutria de Emílio Wusp, o Sêo “Vupes”, o alemão vendedor de ferramentas que ele conheceu no Curralinho e após alguns anos seguiu viagem rumo à cidade São Francisco. A cozinha do Vupes, além de engenhosa, tinha como base guisados, cozido úmido em contraposição à alimentação seca:

Mas os caminhos não acabam. Tal por essas demarcas de Grão-Mogol, Brejo das Almas e Brasília, sem confrontos de perturbação, trouxemos o seu Vupes. Com as

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graças, dele aprendi, muito. O Vupes vivia o regulado miúdo, e para tudo tinha sangue-frio. O senhor imagine: parecia que não se mealhava nada, mas ele pegava uma coisa aqui, outra coisinha ali, outra acolá – uma moranga, uns ovos, grelos de bambu, umas ervas – e, depois, quando se topava com uma casa mais melhorzinha, ele encomendava pago um jantar ou almoço, pratos diversos, farto real, ele mesmo ensinava o guisar, tudo virava iguarias! Assim no sertão, e ele formava conforto, o que queria. Saiba-se! Deixamos o homem no final, e eu cuidei bem dele, que tinha demonstrado a confiança minha... (ROSA, 2001, p.88)

Diferentemente da comida de viagem, a comida de conforto para o jagunço é aquela ligada à paragem, à lentidão e ao repouso. Riobaldo prefere a comida molhada, diferente da comida seca que carrega em sua matula, e Vupes tem, por meio de sua engenhosidade de bricoleur, o poder de fazer a comida de viagem parecer a comida de casa: ele recolhe em movimento, mas prepara em repouso, transforma miserinhas do sertão em iguarias. O cozido é o alimento transformado, ainda que a farinha e a carne da paçoca tenham sido transformadas e preparadas também, não foram cozidos em fogo, é o alimento ligado ao fogo que remete à boa comida, à índice de civilização. O cozido, como afirma Lévi-Strauss (2008), é uma representação mítica da passagem da natureza para a cultura. Além das referências às técnicas do Vulpes para o preparo e cocção de alimentos, há outras referidas ainda, geralmente bastante engenhosas também que deixam transparecer o engenho do sertanejo e as agruras e padecimentos do sertão:

Queriam conversa comigo em só, apartada. Eu apreciasse aqueles homens. A valentia deles estava por dentro de muita seriedade. Urucuiano conversa com o peixe para vir no anzol – o povo diz. As lérias. Como contam também que nos Gerais goianos se salga o de-comer com suor de cavalo... Sei lá, sei? Um lugar conhece outro é por calúnias e falsos levantados; as pessoas também, nesta vida. (ROSA, 2001, p. 513) Riobaldo aqui, comentando as conversas que mantinha com os homens do bando, deixando entrever, decerto, algum ar de superioridade na sua figura de jagunço “letrado”, refere, nas histórias que narravam de lugares distantes, a técnica de salgar mantas de carne no lombo dos cavalos. Embora Riobaldo desconfie do enunciado, não endossando sua veracidade, certo é que a técnica existe, de norte a sul do Brasil: dada a escassez do próprio sal, o suor do lombo dos cavalos contribui para a salgagem das mantas de carne. A técnica se coaduna, assim, com as práticas típicas de viagem e de travessias de longas distâncias com tropas de animais e precariedade de recursos. Diferentes, porém, eram geralmente as narrativas de Riobaldo sobre as fazendas.

As cenas passadas em fazenda, com exceção da dos Tucanos, são geralmente de abundância, geralmente associadas, como vimos, à hospitalidade dos fazendeiros e proprietários que – por temor ou mesmo por interesse político – recebem o bando jagunço em

97 suas terras. Há outras cenas que não são de hospitalidade, mas simplesmente de comemoração e comensalidade, verdadeira festa, consoante a que sucede após o julgamento de Zé Bebelo na Fazenda Sempre Verde:

Daí, estávamos todos pegando o que comer, que eram essas grandes abundâncias. Angu e couve, abóbora-moranga cozida, torresmos, e em toda fogueira assavam mantas de carnes. Quem quisesse sopa, era só ir se aquinhoar na porta-da cozinha. A quantidade de pratos era que faltava. E assaz muita cachaça se tomou, que Joca Ramiro mandou satisfazer goles a todos – extraordinária de boa. O senhor havia de gostar de ver aquela ajuntação de povo, as coisas que falavam e faziam, o jeito como podiam se rir, na vadiação, todos bem comidos, entalagados. (ROSA, 2001, p. 299)

Após a sentença de Zé Bebelo que determinou seu exílio até que Joca Ramiro morresse, ou desse ordem contrária, o chefe jagunço oferece “goles a todos”. Abunda na fazenda as sopas – as comidas molhadas e guisados de que tratamos há pouco –, angu e couve, abóbora cozida, os torresmos, tudo havia de melhor para todos na demonstração de poder e generosidade de Joca Ramiro, vencida a guerra que travara contra o “deputado”. O festim, na sua exageração pantagruélica e na “vadiação” dos homens, teatraliza a comemoração, a vitória e tudo aquilo que se opunha à miséria e à penúria do sertão. Imagem similar de fartura é a temporada passada de Riobaldo com Diadorim na Guraravacã:

O que, por começo, corria destino para a gente, ali, era: bondosos dias. Madrugar vagaroso, vadiado, se escutando o grito a mil do pássaro rexenxão – que vinham voando, aquelas chusmas pretas, até brilhantes, amanheciam duma restinga de mato, e passavam, sem necessidade nenhuma, a sobre. E as malocas de bois e vacas que se levantavam das malhadas, de acabar de dormir, suspendendo corpo sem rumor nenhum, no meio-escuro, como um açúcar se derretendo no campo. Quando não ventava, o sol vinha todo forte. Todo dia se comia bom peixe novo, pescado fácil: curimatã ou dourado; cozinheiro era o Paspe – fazia pirão com fartura, e dividia a cachaça alta. Também razoável se caçava. A vigiação era revezada, de irmãos e irmãos, nunca faltava tempo para à-toa se permanecer. Dormi, sestas inteiras, por minha vida. (ROSA, 2001, p. 303)

Ao contrário da Sempre Verde, imagem de abundância festiva, Riobaldo vive nessa verdadeira vivenda campestre do sertão seu idílio quase romanesco com Diadorim. A despeito da guarda que montam sempre, da sua contínua vigilância de homens de guerra, todos se entretem na cachaça e nos peixes com pirão preparados pelo Paspe. A cachaça, que espanta os males, põe de lado, por princípio da bebida alcóolica, as preocupações, se soma à simboliga dos peixes e dos rios, lugar de abundância perene e força vital atávica, eterna. A cena bucólica aqui, vivida entre ribeirões e “sestas” preguiçosas, é rechaçada pela notícia de morte de Joca Ramiro, assassinado por Hermógenes e Ricardão, os Judas, que deflagra a guerra no sertão, rompendo abruptamente a paz idílica das tardes com Diadorim e os peixes do Paspe.

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