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Capítulo 3 – Doçuras e Agruras do Sertão em Grande Sertão: Veredas

3.5 Fome e miséria na guerra

São muitas as passagens em que a fome, a carência, ou a ausência total de alimentos é usada como referência à miséria. Ao atravessar o Liso do Sussuarão, depois que acabam os mantimentos da viagem, alguns dos jagunços são obrigados a comer terra:

Nesse tempo, o Jacaré pegou de uma terra, qualidade que dizem que é de bom aproveitar, e gostosa. Me deu, comi, sem achar sabor, só o pepego esquisito, e enganava o estômago. Melhor engolir capins e folhas. Mas uns já enchiam até capanga, com torrão daquela terra. Diadorim comeu. A mulher também aceitou, a coitada. (ROSA, 2001, p. 71)

O hábito de comer terra não é nada novo, e a vontade de se alimentar pode revelar naturalmente problemas relacionados à fome e à desnutrição, e mais especificadamente à falta de nutrientes como o ferro, cálcio e zinco. Comer terra é ligado a uma adaptação. A geofagia, ato de comer coisas que não são alimentos, já chegou a ser considerada como transtorno mental, o comportamento ainda que inconsciente dos jagunços serve para suprir minerais vitais e para desativar toxinas de alimentos e do ambiente:

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Atualmente parece não haver dúvida de que a geofagia é ainda mais comum no reino animal do que se pensava. Os pesquisadores observaram geofagia em mais de 200 espécies de animais, incluindo papagaios, veados, elefantes, morcegos, coelhos, babuínos, gorilas e chimpanzés. A geofagia também é bem documentada em humanos, com registros que datam da época de Hipócrates (460 a.C.). Os mesopotâmios e antigos egípcios usavam a argila medicinalmente: eles cobriam ferimentos com emplastros de barro e comiam terra para tratar de várias doenças, principalmente do intestino. Alguns povos indígenas das Américas usavam terra como um tempero e preparavam alimentos naturalmente amargos como noz de carvalho e batatas com um pouco de terra para neutralizar o amargor. A geofagia foi praticada com frequência na Europa até o século 19 e em algumas sociedades, como a etnia Tiv, da Nigéria, o desejo de comer terra é sinal de gravidez (STARKS E SLABACH, 2009, p. 1).

Esse índice de desespero e carência não é suficiente, porém, para que assuma para si alguns hábitos que identifica como inferiores:

Mas o esbagoar estirante das tanajuras vinha para toda parte, mesmo no meio da gente, chume-chume, fantasiado duma chuva de pedras, e elas em tudo caíam, e perturbavam, nos ombros dos homens, e no pêlo dos animais. Como digo que eu mesmo a tapas enxotei muitas, e outras que depois tive de sacudir fora da croa de meu chapéu, por asseio. Içá, savitu: já ouvi dizer que homem faminto come frita com farinhas essa imundície... (ROSA, 2001, p. 551)

Riobaldo coloca-se como civilizado em oposição ao hábito indígena e no tempo da narrativa popular, contraditoriamente, alguém que comeu terra rebaixa a formiga como forma de alimentação. A içá, fêmea da formiga saúva, também conhecida como tanajura é fonte de proteína animal magra, livre de gordura e ainda fonte de proteínas para alguns grupos sociais. No século XX, Monteiro Lobato menciona em diversas de suas obras seu consumo pelo vale do Paraíba, intitula-as como o “caviar do vale do paraíba”. As farofas de içá alimentaram a população autóctone, foi hábito adquirido pelos tropeiros e também alimentou gerações no novo mundo. O tipo de alimentação também é usado como distintor social para descrever com pena os catrumanos:

Quase que cada um era escuro de feições, curtidos muito, mas um escuro com sarro ravo, amarelos de tanto comer só polpa de buriti, e fio que estavam bêbados, de beber tanta saeta. Um, zambo, troncudo, segurava somente um calaboca, mas devia de ser de braço terrível, no manobrar aquele cacete. O quanto feioso, de dar pena, constado chato o formo do nariz, estragada a boca grande demais, em três. (ROSA, 2001, p. 400)

A monotonia da alimentação dos catrumanos se refletia na pele amarelada de tanto comer polpa de buriti, a saeta, bebida fermentada feita também a partir da polpa dos frutos do buriti. Mediante sua pobre dieta alimentar, sua fome e miséria, são os catrumanos descritos de maneira quase animalesca. Assim como em toda restrição alimentar, a falta de uma boa alimentação e de variade de nutrientes naquelas pessoas era evidente fisicamente. O buriti, utilizado para se referir a cor dos catrumanos e à miséria da alimentação, é usado ademais para descrever a cor da pele das moças desejadas, como em: “Um dia, no não poder, ele soube, ele

94 quase viu: eu tinha gozado hora de amores, com uma mocinha formosa e dianteira, morena cor de doce-de-buriti” (ROSA, 2001, p. 265).

Ainda a alimentação exótica, em outra passagem, é utilizada para descrever um jagunço: Jõe Bexiguento, sobrenomeado “Alparcatas”, deste qual o senhor, recital, já sabe; um José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto, cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um, José Félix; o Liberato; o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo tinha trazido: aquele Pantaleão, um Salústio João, os outros. (ROSA, 2001, p. 336) Tal exotismo alimentar já foi descrito no capítulo anterior por meio de trechos escritos pelo historiador Afonso de E. Taunay, 1717, também autóctone e incorporado pelo homem branco devido às necessidades alimentares do percuso, o que houvesse à disposição na natureza era aproveitado. Porém, a rejeição eurocêntrica aos insetos e rastejantes ainda existia concomitante a essa alimentação, traços da visão dessa alimentação como menor podem ser observadas na própria descrição de Riobaldo “José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto, cobra; um infeliz” (ROSA, 2001, p. 336).

Um dos exemplos relacionados à alimentação mais violentos da narrativa ocorre durante a tentativa fracassada de travessia do Liso do Sussuarão, no momento em que os burros fugiram com a carga de mantimentos e homens e cavalos morrem. O episódio que se segue à escassez do alimento e às suas consequências é, por assim dizer, a cena antropofágica do romance, quando o alimento, ou melhor, a falta dele, foi constante na vida daquele grupo. O canibalismo surge da fome, de alucinações causadas por ela; a fome parece aflorar mais a violência do grupo em relação ao estado animalesco/bárbaro:

Com outros nossos padecimentos, os homens tramavam zuretados de fome – caça não achávamos – até que tombaram à bala um macaco vultoso, destrincharam, quartearam e estavam comendo. Provei. Diadorim não chegou a provar. Por quanto – juro ao senhor – enquanto estavam ainda mais assando, e manducando, se soube, o corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano, morador, um chamado José dos Alves! Mãe dele veio de aviso, chorando e explicando: era criaturo de Deus, que nu por falta de roupa... Isto é, tanto não, pois ela mesma ainda estava vestida com uns trapos; mas o filho também escapulia assim pelos matos, por da cabeça prejudicado. Foi assombro. A mulher, fincada de joelhos, invocava. Algum disse: – “Agora, que está bem falecido, se come o que alma não é, modo de não morrermos todos...” Não se achou graça. Não, mais não comeram, não puderam. Para acompanhar, nem farinha não tinham. E eu lancei. Outros também vomitavam. A mulher rogava. Medeiro Vaz se prostrou, com febre, diversos perrengavam. – “Aí, então, é a fome?” – uns xingavam. Mas outros conseguiram da mulher informação: que tinha, obra de quarto-delégua de lá, um mandiocal sobrado. – “Arre que não!” – ouvi gritarem: que, de certo, por vingança, a mulher ensinasse aquilo, de ser mandiocabrava! Esses olhavam com terrível raiva. (ROSA, 2001, p. 70)

O canibalismo é causado pelo desespero, os homens só perceberam que o “bugio” era um ser humano após ser ele ser cozido e comido. Na narrativa, a desumanização causada pela vida jagunça levou aqueles homens a comerem José Alves, os jagunços em seu estado animal

95 e instintivo da necessidade. No “mundo civilizado”, o canibalismo aproxima o homem dos animais de uma forma negativa, estreitando o elo dos homens com o bárbaro – civilização versus barbárie. Além disso, o consumo da carne crua pode ser visto como sinal da ferocidade alimentar, pois a agricultura, a produção e a cocção, preparo dos alimentos são elementos que colocam um povo no âmbito da civilização, a transformação do alimento é, afora isso, elemento de distinção social.

A cena do canibalismo, somada à dimensão de absoluta ausência da civilização, representada pelo Liso do Sussuarão, constitui imagem poderosa da barbárie e da desumanização do jagunço em estado puro! – incapaz, aliás, de reconhecer o humano, ainda que a fome desempenhe aqui espécie de cegueira temporária, que de certo modo serve de atenuante ao crime perpetrado pelos homens de Medeiro Vaz. O canibalismo, em sua cena quase “crua” de incivilidade, representa em cores vivas o asp’ro da vida e da jagunçagem em sua dimensão mais violenta.