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4. DESENVOLVIMENTO DA ESCALA DE AUTOACEITAÇÃO PARA PESSOAS

4.1 Estudo 1: geração dos itens

4.1.2 Resultados e discussão

4.1.2.3 FATOR 3: Proteger-se de estigmas sociais

Proteger-se de reações desfavoráveis ou julgamentos negativos de outras pessoas a respeito de si mesmo é uma característica que tem sido comumente considerada inerente ao quadro de autoaceitação. As pessoas que se aceitam são capazes de agir de acordo com sua avaliação de diferentes situações, sem se incomodarem com a aprovação ou o julgamento dos outros, ou seja, elas vivem seu dia a dia sem se incomodarem com que os outros pensam a respeito delas mesmas (BRILLHART, 1986; CARSON, LANGER, 2006; SHEERER, 1949).

Essa ação significa o desenvolvimento de um suporte cognitivo para capacitar o indivíduo a estruturar um filtro de proteção, no qual ele cria um esquema que o ajuda a aceitar e internalizar a maioria das informações positivas a respeito de si, enquanto grande parte das informações negativas é rejeitada (TYLKA, 2011). Com o suporte do referido filtro, o sujeito não muda como ele sente a respeito de si, inclusive quando ele se sente julgado negativamente por outras pessoas (WOOD-BARCALOW, TYLKA, AUGUSTUS-HORVATH, 2010).

Em pessoas com deficiência, uma proteção considerada necessária e importante é aquela relacionada aos estigmas sociais. Isso porque essas pessoas são frequentemente vítimas de preconceitos sociais (BRITTAIN, 2004; GALVIN, 2005; HUGHES, 1999; LOBIANCO,

SHEPPARD-JONES, 2007; SAHIN, AKYOL, 2010; TRIPP, 1997; WATSON, 2002), cujo impacto pode se estender a diferentes aspectos de suas vidas, incluindo mobilidade; educação; formação profissional; mercado de trabalho; estabelecimento de relações amorosas com pares videntes, entre outros. Em consequência, os indivíduos com deficiência podem apresentar alterações psicopatológicas graves, o que torna fundamental que elas se protejam de estigmas, ignorando ou dando pouca importância a esse tipo de julgamento negativo a seu respeito (FRIES, 1930; FOLEY, CHOWDHURY, 2007; FICHTEN et al., 1991; TUNDE-AYINMODE, AKANDE, ADEMOLA-POPOOLA, 2011).

Neste estudo, ao investigarmos a dimensão dos estigmas sociais na vida dos participantes, bem como suas sensações e atitudes frente a esses estigmas, nossos achados vão ao encontro das investigações prévias. Encontramos que os participantes não somente sentem frequentemente a presença desses julgamentos negativos da sociedade, como também os consideram prejudiciais a sua identidade. Os relatos abaixo exemplificam essas questões:

Não! Já vieram pra mim e já falaram: - “Puxa, você é tão bonita! Pena que é cega.” Ou - “Nem parece que é cega.” Ou - “Ah... você é cega nem parece, é tão bonita.”[sic] (participante 2).

Um dia que um cara estranho tava me botando no ônibus, aí ele falou assim: - “Puxa você se enxergasse ia ser o diabo hein!”. Aí eu pensei, será que eu sou tão bonita assim?[sic] (participante 3).

A mãe do meu pai falou que eu sou a cruz que meu pai ia carregar! (participante 4).

Ante a esses relatos, pode-se observar que os estigmas se refletem em opiniões que, comumente, evocam uma imagem de inadequação social. Todavia, os estigmas podem também serem expressos em forma de atitudes, como as relatadas pelos participantes 1 e 8, respectivamente:

Meu pai, que eu amo muito, que já não está mais aqui, onde ele está ele sabe agora que ele falou bobagem! Um dia, eu achei que eu tava grávida e falei: -“ Ih, pai, eu acho que eu tô grávida!”. Ele falou: “-Ai, Lindaura, você tem certeza? – “Tenho. Não sei não, pai, não sei, acho que eu tô.”, [...] Eu tenho uma cunhada, né. –“ Lindaura, já pensou se for menino? Você pode dar pra sua cunhada cuidar.” [sic] (participante 1).

Fui dar uma aula... e quando eu terminei minha aula, pô, dei a aula, tava cansando do trabalho... daí, tinha um casal de namorados no ponto de ônibus, falei: - “gente, vocês podem avisar quando vier o ônibus tal”? Daí a moça, simpática, me avisou. Ai, eu fui entrar no ônibus, daí o motorista vai, olha para mim e fala: - “Quem tá com ele?” Ai a moça, já intimada: - “Não tem ninguém com ele, ele só pediu para eu avisar quando o ônibus chegasse” – “Não, mas ele só pode subir se tiver com acompanhante”. Ai, eu tentei argumentar, eu trabalhei, eu tô cansado. – “Não, sem acompanhante, você não vai!” Eu fiquei com tanta raiva que eu entrei no ônibus e disse: - me tira daqui se você for capaz! Ai, ele ficou resmungando. Ele foi, mas, ficou resmungando: “Mas, quando chegar no ponto, tu vai vê só!”, como se quisesse dizer: eu não vou te avisar viu, cego sem vergonha! Eu, lá, só com o meu GPS, quando chegou no ponto, eu sai, né. (risos) Mas, eu suponho que ele deve ter ficado fulo da vida! [sic].

Em complemento, os julgamentos negativos em relação à cegueira podem ainda ser expressos com perguntas inadequadas e preconceituosas a respeito da condição de cego, como relatado pela participante 2.

Perguntar é uma coisa normal. Mas, não faça pergunta idiota que incomoda. “Como você faz para pentear o cabelo?” Isso é uma pergunta besta! Agora, você perguntar: “Como você faz para combinar uma roupa?” Isso é normal, porque não tem como vivenciar, a pessoa não tem esse convívio. - “ Como você toma banho?” Meu Deus!

Esses tipos de opiniões, atitudes e perguntas preconceituosas subjugam às pessoas cegas a uma posição que não condiz com a realidade. Conforme afirma Nunes e Lomônaco (2010), a forma com que a cegueira tem sido concebida na atual sociedade restringe a pessoa cega à sua falta da visão. O enfoque maior é dado na imperfeição e na deficiência, sendo comum que, quando um vidente conhece um cego, sua relação se estabeleça primeiro com a deficiência e, depois, com o ser humano que existe para além da cegueira.

Conceber o sujeito com cegueira primeiro pela sua deficiência e, em função disso, adotar atitudes preconceituosas em relação a essas pessoas é uma concepção social equivocada e reducionista. Esse tipo de atitude está fundamentado em reflexões fragmentadas a respeito das pessoas cegas, cuja consideração central é a limitação visual. Isso dificulta o reconhecimento dessas pessoas como seres humanos comuns, que transitam plenamente pela vida, experienciando, diariamente, suas capacidades e limitações, inerentes a qualquer ser humano.

Nesse contexto, inferimos que a autoaceitação tem como pressuposto as atitudes que ignoram as concepções e os julgamentos negativos da sociedade em relação à pessoa com cegueira, como um mecanismo de proteção. Há de se destacar que, por vezes, a proteção de estigmas pode ser confundida com uma certa conformidade social. Entretanto, em uma análise mais atenta e profunda dessa questão, podemos inferir que a proteção de estigmas deve ser entendida como um processo ativo de autoafirmação e não uma resignação passiva do fato. Neste estudo, alguns participantes demonstraram ter estruturado sua proteção de estigmas, evidenciando indícios de autoaceitação, como se observa nos relatos abaixo.

Quando eu tinha meus dezoito anos, lá... naquela fase... queria conhecer rapaz, namorar... na flor da idade e tudo mais! Incomodava saber e ouvir isso, assim, né? Aquilo me perturbava o juízo, mas hoje não! Se alguém falar pra mim e nada é a mesma coisa, não tô nem aí! Eu sou o que eu sou mesmo, o importante é que eu estou bem! Dane-se o mundo! [sic] (participante 2).

Independente desse paradigma, dessa estereotipia que a gente já sofre, pelo menos aqui, dos meninos que eu conheço, posso afirmar que nós cinco, a gente não perde as nossas características pra poder convencer as pessoas, não! A gente brinca, também, como as pessoas brincam: dentro do ônibus, brinca no ponto, a gente fala alto como as outras pessoas falam. É claro que a gente é suscetível, assim, poxa, ele tá falando alto porque é cego! Mas, não é! As pessoas esquecem de olhar que uma criança, um adulto, qualquer pessoa fala alto quando tá brincando [sic] (participante 10).

Em suma, considerando que a proteção de estigmas pode possibilitar aos sujeitos ignorarem ou darem pouca importância a informações preconceituosas a seu respeito, hipotetizamos os seguintes cinco itens para representar esse fator, como demonstrados na tabela 3:

Tabela 3: Hipótese inicial de itens do fator “proteger-se de estigmas sociais”

Itens Descrição dos itens* Suporte teórico

3 6

10 20 32

Você evita pessoas que te julgam pela sua cegueira?

Você se sente triste com algumas atitudes negativas da sociedade a seu respeito?

Você se preocupa com opiniões preconceituosas a seu respeito?

Você sente que tem valor, mesmo se sofre algum tipo de preconceito? Você se incomoda com perguntas inadequadas a seu respeito?

Brillhart (1986); Carson, Langer (2006); Sheerer (1945); Tylka (2011); Wood-Barcalow, Tylka, Augustus-Horvath

(2010); GF.

Fonte: o autor (2012)

Nota: GF=Grupo Focal; * as opções de respostas aos itens estão organizadas em escala Likert de 5 pontos, variando de (1) nunca até (5) sempre.

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