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Considerar o papel da argumentação na ciência exige algumas reflexões e a extensão dessa exigência deverá variar conforme o lugar que conferirmos à argumentação nas práticas científicas e conforme a natureza da argumentação que queremos considerar. Caso desejemos considerar apenas argumentos formalizados os quais, na maior parte das vezes, utilizam dos signos próprios de linguagens especializadas e de suas regras particulares de dedução, deteríamo-nos nas disciplinas matemáticas e nosso trabalho seria limitado e pouco ilustrativo em vista da nossa pretensão de realçar o papel que a argumentação desempenha nas práticas científicas. Por outro lado, caso considerássemos a argumentação no âmbito daquelas ciências alheias às deduções formais e que não se utilizam das linguagens artificiais, sendo talvez num caso limite as ciências jurídicas que inspiraram Perelman, provavelmente

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iríamos perceber com relativa facilidade o peso e a importância que as argumentações apresentam na edificação desses campos. Poderíamos, pois, dizer que nas ciências esteadas nas provas demonstrativas a argumentação é prescindível, predominando as provas apodíticas?

O próprio Perelman inicia enfatizando que “o campo da argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável, na medida em que este último escapa às certezas do cálculo” (Perelman & Olbrechts-Tyteca, [1958] 2005, p.1). Todavia, só não concederemos maior importância à argumentação nas práticas científicas se tomarmos as asserções da ciência num sentido que a filosofia da ciência atual já não é capaz de admitir.

Se considerarmos que o campo em que intervém os valores é também o campo em que intervém a argumentação, encontraremos algumas perspectivas que parecerão autorizar-nos a conceder um lugar mais elevado à argumentação nas práticas científicas. Podemos começar por enfatizar que as teorias científicas não são dedutíveis de fatos observados. Uma teoria científica não começa com a observação, embora a sua aceitação também se baseie em conclusões obtidas da observação. Teorias científicas envolvem constructos socialmente compartilhados e existem enquanto tal. Aceitemos que as coisas no mundo pertencem às esferas do que existe, com status ontológico, e do que é conhecido, com status epistemológico. Nessas duas categorias

encontraremos coisas que independem da existência de sujeitos conhecedores, ou seja, existem independentes da existência humana e de sua ação cognitiva sobre elas. Por existirem independentes de nós, tais coisas são

fatos brutos, em oposição aos fatos sociais que só existem enquanto existem

sujeitos conhecedores que lhes dão nomes e lhes atribuem propriedades. Os fatos brutos são ontologicamente objetivos, isto é, são dotados de uma existência objetiva independente da percepção humana. Já os fatos sociais não existiriam independentes da existência do homem e de sua ação cognitiva no mundo. Os fatos sociais são, portanto, epistemológicos, pertencem à esfera do conhecimento humano e podem ser epistemologicamente objetivos ou

epistemologicamente subjetivos.

A ciência pretende ser objetiva; esse é o entendimento mais comum da prática científica. É o entendimento atribuído por Hugh Lacey (2008) à filosofia do materialismo científico na intenção de derivar daí a concepção de

neutralidade da ciência, segundo a qual as teorias científicas são neutras e,

portanto, não apresentam implicações no domínio dos valores.

Assim, por exemplo, a partir da lei da gravitação de Newton, não se segue nenhum juízo de valor; não faz nenhum sentido perguntar se a lei é boa ou má, ou se devemos agir de acordo com ela. A lei de Newton – se realmente enunciar um fato – enuncia um fato bruto; fiel ao modo como os objetos do mundo

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realmente são, não há nenhum juízo de valor entre suas pressuposições ou implicações. (Lacey, 2006, p.253.)

É igualmente comum crer que, em seu ideal de objetividade, a ciência interessa-se pelos fatos brutos anteriormente discutidos. Essa é, aliás, uma crença bastante difundida mesmo entre os próprios profissionais da ciência. No entanto, não saberíamos dizer se os fatos que permeiam as teorias científicas são realmente fiéis às estruturas subjacentes aos fatos observados, ou seja, “como podemos saber se o mundo é tal como o materialismo científico afirma que ele é?” (Lacey, 2008, p.27).

As teorias expressam representações dos fatos brutos, e enquanto representações construídas no âmbito das práticas científicas, são produtos da interação humana com o mundo e portanto “não podemos comparar uma teoria

diretamente com o mundo” (Lacey, 2008, p.27) [itálico nosso]. Os fatos que permeiam as teorias científicas bem aceitas não são meros fatos observados, mas sim fatos confirmados. Há entre essas duas categorias uma distinção importante. Os “fatos confirmados são constituídos, parcialmente, por juízos de valor cognitivo” (Lacey, 2006, p.256), o que significa que os fatos articulados numa teoria científica são admitidos como tais por corresponderem a critérios que vão além dos dados empíricos, critérios que Lacey (2006, 2008) chamou de valores cognitivos. A satisfação dos valores cognitivos é que assegurará a qualidade de boa a uma teoria científica:

aceitar, corretamente, que uma proposta (articulada numa teoria) enuncia um fato confirmado é equivalente a sustentar o juízo de valor cognitivo, que os valores cognitivos são manifestados na teoria em grau suficientemente auto e que não precisamos empreender mais pesquisa com o fim de testar, mais rigorosamente, a proposta. (Lacey, 2006, p.256.)

Desde a polêmica teológico-cosmológica causada pela apresentação da teoria heliocêntrica de Copérnico, a distinção entre fato e valor veio à tona para “embasar a concepção de que a ciência é livre de valores” (Mariconda & Lacey, 2001, p.50). Na prática, isso significaria afirmar que a ciência lida com fatos e suas teorias são julgadas segundo critérios que obedecem à imparcialidade, isto é, na avaliação das teorias científicas não entram em conta “valores e crenças sociais, culturais, religiosos, metafísicos e morais” (Mariconda & Lacey, 2001, p.50), apenas a correspondência entre o que explicam e predizem e os fatos do mundo. Esta seria a dicotomia entre fato e valor em torno da qual

se constituiu o próprio campo da ciência natural no interior da ampla modificação que conduziu ao nascimento da ciência moderna, no arco temporal que vai, para o caso da ciência, de Copérnico a Newton e, para o caso da filosofia, de Bacon a Hume (Mariconda, 2006, p.453).

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A dicotomia entre fato e valor na ciência remete à distinção entre objetivo e subjetivo. Enquanto os fatos pretendem ser incontestáveis, devem existir na concordância entre os indivíduos e ser a expressão da objetividade, os valores exprimem preferências pessoais ou de determinados grupos sociais, como os valores éticos, religiosos, estéticos, etc. Os valores importam à conduta, devem servir de padrão para a avaliação do comportamento e, dada a sua subjetividade, poderão ser sempre contestados. Ora, fatos são objetivos e a ciência é objetiva. Por outro lado, valores são subjetivos e não devem ter significado para a prática científica. Esta foi sobretudo uma concepção levada a efeito pelos positivistas.

Argumentos atuais, no entanto, têm criticado a ideia de dicotomia entre fato e valor, notadamente na defesa de uma entanglement12 por Hilary Putnam. Também convém mencionar que Lacey (2003) demonstra que os valores cognitivos são valores com as mesmas características dos valores éticos e sociais e, em suma, se as práticas científicas estão imbuídas de valores e valores são por sua própria natureza epistemológica objetos comuns ao desacordo, de modo que é então razoável pensar que as práticas científicas envolvem, em alguma medida e com participação digna, meios de prova não- demonstrativos que vão além das vias apodíticas na elaboração do conhecimento.

12

Termo utilizado por Putnam em The collapse of the fact/value dichotomy and other essay (Putnam, 2002, p.28) e traduzido em Relações entre fato e valor (Lacey, 2006) como “imbricação”.

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CAPÍTULO 3