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2. COM POSIÇÃO DO CORPUS

2.2. Composição do corpus pela análise da argumentação

2.2.3. Fatos, verdades e suas interpretações

O corpus desta pesquisa organizou-se em torno das interpretações com mais “presença”, conceito que, como anteriormente citado, diz respeito ao que é destacado na argumentação de modo a se fazer “presente” na consciência daqueles que compõem o auditório almejado. (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 135)

De acordo com o exposto, na primeira etapa de análise da argumentação, extraímos, dos capítulos conclusivos das dissertações, as interpretações centrais defendidas e, na segunda etapa, depreendemos, dos demais capítulos, os “objetos de acordo” apresentados enquanto dados presumidamente aceitos pelo auditório almejado.

Para que fique claro o procedimento metodológico adotado, expomos um exemplo, extraído da dissertação EPR02. Nela, no seu capítulo conclusivo, localizamos a seguinte afirmação:

Em ambos os momentos ([de] escrita reprodução e escrita produção) foi possível detectar que a professora apresentava um déficit na sua formação, no que diz respeito ao ensinar língua portuguesa no ensino fundamental11. (EPR02, p. 148)

Depreende-se, deste excerto, que a pesquisadora interpreta a formação da professora, observada no decorrer da investigação, como deficiente. Esta interpretação decorre do que foi apresentado, na dissertação, enquanto “fatos”, ou seja, enquanto aspectos da realidade observada. No caso, trata-se do que foi denominado como “momentos de escrita reprodução e escrita produção”.

Em nossa análise, metodologicamente, seguimos o processo de buscar no corpo do trabalho os “objetos de acordo” que as interpretações defendidas ao final da dissertação retomavam. Desta busca, quanto ao exemplo anterior, identificamos a seguinte passagem, que fazia referência a aulas relatadas nas páginas 103 e 104 da dissertação em questão:

O conteúdo transmitido neste tipo de prática ficava atrelado às normas, regras, modelos padronizados e com predominância da função normativa. Essas aulas de escrita reprodução, observadas por nós, sempre seguiram o mesmo ritual [...] e apresentaram o mesmo objetivo: fixar normas e regras através de exercícios mecânicos e repetitivos. (EPR02, p. 100)

Neste fragmento, verificamos o “fato” citado na interpretação de dados, categorizado como “escrita reprodução”, que é, por sua vez, caracterizada por focalizar no ensino de regras, normas e na aplicação de exercícios repetitivos. Esta abordagem é criticada em EPR02 e esse

11 Todos os fragmentos das dissertações apresentam-se em itálico e sem recuo de parágrafo. Estes trechos foram

se torna um dos elementos elencados na interpretação que avalia negativamente a formação docente, conforme discussão prévia.

Outro exemplo pode ser exposto a partir da afirmação a seguir:

Outra atividade produtiva foi a refacção individual e coletiva dos textos, uma vez que os alunos demonstraram-se participativos e autocríticos do que produziam. Tal atividade proporcionou a eles momentos de reflexão quanto ao uso da língua materna. (FMT06b, p.

124)

Como fizemos em relação ao exemplo anterior, não vamos apresentar comentários acerca da pertinência das interpretações feitas. Limitaremo-nos a demonstrar como, nas interpretações finais das dissertações pesquisadas, localizamos a retomada de dados que foram expostos no corpo desses trabalhos.

Na passagem transcrita, avalia-se a atividade de reescrever um texto como positiva. Sobre isso, FMT06b relata o seguinte “fato”:

Depois que todos produziram a primeira versão, selecionamos duas CLs [Cartas do leitor] para que juntos as reestruturássemos na lousa. Como os textos produzidos eram curtos, não escolhemos um ou dois aspectos a serem observados, mas todos os que os alunos percebessem. Escrevemos os textos em cartolinas e as fixamos no quadro para agilizar o trabalho. Antes que fizéssemos a primeira leitura oral ou que questionássemos sobre os textos, os alunos foram apontando o que deveria ser alterado. Dentre as sugestões, incluíram correções gráficas, concordância, pontuação, idéias incompletas, frases sem sentido, etc. Discutimos na CL 01 [referência à Carta do Leitor enumerada como a primeira e exposta na

dissertação] a troca das letras “f” e “v”. Gostaram de ficar pronunciando os fonemas para

perceber a proximidade dos sons. Esse foi um assunto que muito interessou à turma; por isso, sugerimos à professora titular que o retomasse com maior ênfase em aulas posteriores. Também discutimos os nomes dos acentos, principalmente o circunflexo, conhecido até então como “chapeuzinho”. O aluno produtor da CL [Carta do leitor] fora indagado se tinha certeza de que os bairros mencionados por ele em seu texto estavam de fato recebendo asfalto na linha de ônibus. Segundo ele, não tinha certeza. Havia apenas posto os nomes. Assim, a turma achou mais conveniente citar só o exemplo do bairro que conheciam e tinham certeza da veracidade dos fatos. Também comentaram o fato de a carta estar sem identificação. (FMT06b, p. 85-6)

Verificamos que a atividade de reescrever textos, avaliada positivamente na interpretação dos dados que expusemos anteriormente, está presente neste trecho de

FMT06b. Nele, a pesquisadora relata a proposta de ensino da escrita elaborada e desenvolvida por ela mesma em sala de aula.

Os exemplos citados demonstram a possibilidade de se compreender a argumentação das dissertações sob análise por meio do procedimento de identificar, em etapa inicial, as interpretações de dados com as quais esses trabalhos encerram a discussão proposta e, em etapa posterior, os dados propriamente ditos, ou seja, os “objetos de acordo”, em conformidade com a terminologia da nova retórica.

Concebemos esta divisão metodológica como um procedimento que colaborou para a padronização de um modo de lidar com textos longos e nos quais identificamos um conjunto disperso de elementos – dados, interpretações, abordagens metodológicas, referenciais teóricos, estilos de escrita – que compunham o todo textual, no caso, de dissertações de mestrado. Contudo, não ignoramos que a argumentação consolida-se no texto em sua íntegra, como defendem Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 174): “Não devemos esquecer, é artificialmente e para a comodidade da análise que se separam premissas e argumentação; na realidade, já há argumentação na própria posição das premissas”.

Os “objetos de acordo” funcionam como premissas na argumentação, as quais são retomadas pelas interpretações dos dados. A separação que efetivamos em analisar, de um lado, estas interpretações, e de outro, os “objetos de acordo”, foi uma opção metodológica para uniformizar uma postura de leitura de cada uma das dissertações do corpus. Também fez parte desta postura de leitura a extração das “interpretações finais” das dissertações, localizadas nos seus capítulos conclusivos, e a identificação de suas premissas nos demais capítulos.

Como se abordou, tais estratégias foram adotadas como modos de viabilizar um tratamento mais padronizado dos trabalhos em questão, o que não significa que as separações implicadas em nossa postura de leitura sejam estanques, tampouco que a argumentação concentre-se na “interpretação dos dados” e que a escolha das premissas não tenha valor argumentativo.

Esclarecemos que, em relação aos “objetos de acordo”, focalizamos aqueles categorizados como “fatos” e “verdades”. Os primeiros se voltam para o plano do observável, como se se referissem à realidade objetiva, ou possivelmente pudessem referir-se a ela. Já aqueles classificados como “verdades” definem-se como formulações subsidiadas por

determinadas teorias ou concepções científicas, dentre outras. (PERELMAN; OLBRECHTS- TYTECA, 2002)

Restringimos nossa análise da argumentação a esses dois “objetos de acordo” porque eles se caracterizaram como os mais esclarecedores do teor argumentativo das dissertações em questão, em relação ao “o que” era defendido, “como” e “por que” o era. Compreendemos que esse potencial elucidativo tem relação com o uso dos “fatos” e das “verdades” enquanto premissas defendidas pelo orador como “reais”, isso é, como passíveis de serem comprovadas pela observação da realidade.

Pela apreensão desses dois objetos de acordo, como fizemos na análise da argumentação das dissertações, foi possível indicar “o que” os autores elencavam como foco de atenção e “como” e “por que” o faziam, tendo em vista aquilo que admitiam como “verdades” a serem consideradas no tratamento da realidade em questão.

No que tange a esse “o que”, “como” e “por que”, destacamos, por exemplo, o fragmento a seguir, retirado da dissertação EPA08:

De modo geral, as falas das professoras demonstraram uma concepção de oralidade bastante restrita. Não há preocupação com as regras sociais que estão em jogo nas mais diversas situações comunicativas. Quando as professoras descrevem como trabalham a oralidade, sempre buscam a homogeneização da fala e da escrita, segundo a norma culta escrita.

(EPA08, p. 155)

Neste fragmento, o “o que” focalizado refere-se ao “ensino de oralidade”. Já o “como” a argumentação é construída relaciona-se à análise de que os professores buscam a “homogeneização entre fala e escrita”, o que é avaliado como inadequado. Tal argumentação decorre do que é apresentado pela dissertação em foco como sendo dados factuais, no caso, os depoimentos docentes. Esse recorte da realidade, apresentado enquanto “fato”, e o modo como ele é analisado, que é associado a uma compreensão docente restrita da modalidade oral da língua, justifica-se pelas concepções assumidas como “verdades” no interior desta dissertação, na qual se defende que o ensino de oralidade ainda não desfruta de abordagem adequada, sendo esse o “porquê” considerado para que os “fatos” em questão sejam investigados.

Na análise da argumentação das dissertações sob enfoque, avaliamos, em conformidade com os motivos expostos, que esses dados eram os mais expressivos quanto ao

que compareceu nas premissas de mais de uma dissertação. Os outros “objetos de acordo” discutidos na nova retórica – “presunções”, “valores”, “hierarquias” e “lugares do preferível” – não demonstraram o mesmo teor informativo quanto às características centrais dos trabalhos em questão, haja vista que não identificamos recorrências que estivessem relacionadas ao seu aparecimento.

Na elaboração do corpus, foi central a localização das recorrências argumentativas, que foram identificadas, em maior número, dentre os “fatos” e as “verdades” que passamos a expor na seção posterior, em conjunto com as “interpretações” que apareceram como correlacionadas.

2.2.4. Nosso corpus: dados e interpretações com mais “presença” nas