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CAPÍTULO 2 A POESIA DE CAZUZA NA CARREIRA SOLO

2.5 FAZ PARTE DO MEU SHOW: tudo que aprendi de amor esta aqui

Cazuza, na canção Faz parte do meu show, uma música de muito sucesso em 1988, pois foi o tema que embalava o amor de Solange por Afonso, na novela Vale Tudo de Gilberto Braga, diz em um de seus versos: Se eu te escondo a verdade, baby é pra te proteger da solidão. Este verso traduz um sentido que se

desloca da mãe para o objeto de amor, sugerindo o quanto é importante para o humano desamparado investir num objeto mesmo que este investimento se encontre impregnado de sentimentos infantis.

Muitas vezes, é preciso mentir para não ferir, a mãe faz isso. O baby é o bebê, o objeto de amor é tratado como criança. Nesse ponto, é preciso entender que a mentira materna é para proteger a criança do desconforto de sua ausência. Freud em Além do Princípio do Prazer (1920/2006) narra à história de uma criança que brincava com um carretel. Ele associou esta brincadeira infantil com a presença/ausência da mãe. O ato de arremessar o carretel e gritar fort e o ato de trazê-lo de volta com o grito da, considerando a brincadeira completa como desaparecimento e retorno da mãe. Freud pondera que (2006, p.142) “a criança renuncia a satisfação pulsional, por permitir a partida da mãe sem manifestar oposição”, no entanto, ele continua, “não é possível que a partida da mãe fosse agradável ou mesmo apenas indiferente para a criança” seria necessário que “o ir embora fosse precondição da alegria do reaparecimento” sendo esse, segundo Freud, o verdadeiro propósito da brincadeira.

Cazuza na canção Faz parte do meu show, atua com esse amor, o materno, embora assuma a posição do amante apaixonado, suas palavras não negam um retorno de um amor recebido na infância, aquele que cuida, aquele que ampara, aquele que lamenta quando se ausenta, enfim, aquele amor incondicional. Seus versos dizem:

Te pego na escola e encho a tua bola com todo meu amor Te levo pra festa e testo teu sexo com ar de professor Faço promessas malucas tão curtas quanto um sonho bom Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão

Se eu te escondo a verdade, baby, é pra te proteger da solidão, a proteção materna é para amparar. É para dizer à criança que a solidão é passageira, é para diminuir a angústia da separação. Nesse sentido, a mentira é contada para recompensar a ausência e parcelar a satisfação pulsional, aplacando a sensação de desproteção.

Quando o poeta se autodenomina professor, produz um sentido que engloba uma superioridade, um suposto saber, testo teu sexo com ar de professor pode sugerir um conhecimento maior, uma experiência, uma supremacia sobre o objeto

que indefeso se submete à presença e ausência do indivíduo, tanto é que pegar na escola evoca uma relação de cuidado e comprometimento.

Como já foi dito, o amor do poeta é aquele aprendido, é o amor que ele conheceu e que re-produz para transmitir ao seu objeto. Observamos, então, uma inversão, antes o pedido de amor, eu quero a sorte de um amor tranquilo com sabor de fruta mordida, agora um amor re-produzido para o objeto sob a forma daquele amor aprendido, ele diz então: Faz parte do meu show, meu amor, faz parte do meu repertório, daquilo que experimentei de amor.

Convém lembrarmos que Freud (1920/2006, p. 144) adverte que “a reprodução que emerge tem sempre como conteúdo um fragmento da vida sexual infantil, ou seja, do complexo de Édipo e de seus sucedâneos”. Sendo, por isso, que o recalcado se repete como sendo uma vivência do presente. O amor, desta forma, é aquele já vivido, porém, esquecido, no entanto é pela recordação desse amor que o infantil retorna, forçando sua presença pela repetição, mostrando que tendências mais arcaicas atuam além do Princípio do Prazer.

O show de Cazuza acontece dessa forma, fazendo promessas malucas tão curtas quanto um sonho bom. Um sonho, que por ser sonho, dura pouco, uma repetição da vivência infantil no âmbito da poesia, reafirmando o que Freud (1920/2006, p. 143) considera quando afirma que, “mesmo sob o domínio do princípio do prazer, existem meios e caminhos suficientes para transformar o que em si é desprazeroso em objeto de recordação e de processamento psíquico”.

É nesse contexto que devemos observar que o aparelho psiquíco materno é o mediador do aparelho psiquíco do infante, dessa forma, o outro originário de todos nós é a mãe, se constituindo nas palavras de Birman (2009, p. 127) “no outro do infante no seu começo de vida”, aquela que retira a criança da fase autoerótica, fase em que os circuítos pulsionais se subjetivam. “Pela subjetivação, o circuíto da pulsão começaria a se interiorizar, deslocando-se do registro do fora para o do dentro”. Birman (2009, p.127).

Assim, quando Cazuza diz em seus versos: encontro um abrigo no peito do meu traidor, é se encontrar com o outro que lhe mostrou que os outros existem, mas faltam e que podem desparecer e retornar. Quando retornam afagam, quando desparecem, traem. Dessa forma, encontrar prazer no peito do traidor remete a

repetição de uma vivência desagradável porque um ganho de prazer de outra ordem, que seja a ilusão da completude, se vincula a essa repetição.

Culturalmente falando, é importante notar que essa trama amorosa encontra- se muito bem instalada e estruturada em nossas vidas. Vale, portanto, salientar, que o modelo de amor assumido pela cultura é aquele que serve para garantir a oportunidade ilusória da completude. Sem dúvida, o amado é uma pessoa, mas é, primeiramente, e sobretudo, essa parte ignorada e inconsciente de nós mesmos, que desabará se a pessoa desaparecer, mostrando o quanto é frágil a condição humana.

Luis Alfredo Garcia Roza no programa Espaço Aberto na Globo News (06.02.2010) afirma tacitamente que muito do que se escreve é a expressão da ética do autor, embora muitas vezes o teor não seja autobiográfico, a ética do escritor encontra-se ali, nas obras. Neste sentido, a visão de mundo é transmitida pela escrita. Há momentos, entretanto, nos quais o inconsciente vaza as defesas de forma evidente e uma palavra ultrapassa, preenchendo as lacunas deixadas pelo discurso do poeta.

Cazuza, em sua trajetória artística, mantém uma característica poética com marcas firmemente definidas que se impõem mesmo que em fases diferentes da sua atuação artistica, e o mais importante disso tudo é que os acontecimentos de sua vida são refletidos em suas composições. O amadurecimento profissional o fez visitar lugares não permitidos pelo rock, revelando um compositor romântico, eclético e inteiramente ligado no seu meio social, assim, pôde, por meio de sua obra, subverter valores ao misturar ritmos musicais, que, aceitos pelo público, viraram canções de grande sucesso.

Grande sucesso de público, esse é o que a poesia de Cazuza encontra, mostrando que o inconsciente é instância ativa que nos faz o que somos, sujeitos linguageiros, sempre em busca de sentido que a própria linguagem nos nega alcançar. Nesse sentido, buscar e imprimir significado às palavras compõe a nossa sina, para muitos a poesia de Cazuza tornou-se imortal e representativa evocando sentidos os mais diversos, já que na fala há uma distância intransponível entre querer dizer algo e dizê-lo de fato.

O fato é que, estando o indivíduo prisioneiro de um sentimento que aplaca a falta, ele tudo faz para mantê-lo, conservando a ilusão da completude e falando

sobre isso sem levar em conta que a nossa fala gira sempre em torno de um engano incorrigível, porque o ouvinte entende segundo a sua verdade.

Verdade que, surpreendentemente, um dia desaparecerá demonstrando que o indivíduo, além de faltoso e incompleto é finito, terminará um dia, e, com ele, morrerá tudo aquilo que ele disse, pensando que não sabia dizer.

CAPÍTULO 3 - A POESIA DE CAZUZA NA CARREIRA SOLO SOB O SIGNO DA