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CAPÍTULO 3 A POESIA DE CAZUZA NA CARREIRA SOLO SOB O

3.1 O TEMPO NÃO PARA: ele me ultrapassa

Na canção O Tempo não para que, segundo Ezequiel Neves (2009)“fulmina o ouvinte com a mesma aura de celebração quase litúrgica que dominava o belíssimo

show”, Cazuza, já bastante fragilizado, mantém uma dignidade interpretativa de quem "vê a cara da morte e sente que ela está viva". Esta canção é um exemplo clássico de um desabafo, declarando em seus versos toda sua revolta contida e desesperançada frente ao irremediável.

Disparo contra o sol / Sou forte, sou por acaso Minha metralhadora cheia de mágoas

Eu sou o cara / Cansado de correr

Na direção contrária / Sem pódio de chegada ou beijo de namorada Eu sou mais um cara

Nesta poesia Cazuza usa de toda sua ousadia para falar de sua revolta contida ao longo da vida. Disparo contra o sol/ sou forte..., evoca uma força sobrenatural, uma forma de revolta contra o mundo, uma revolta contra o astro da luz, aquele que ilumina e clareia os caminhos. É o desaguar de uma represa há muito contida, revelando seu caráter de andarilho da contramão. O que por muito tempo guardou mágoas por correr na direção contrária e sem ter ninguém o esperando.

Minha Metralhadora cheia de mágoas, metralhar é disparar contra algo. No verso de Cazuza a metralhadora dispara mágoa. Mágoa de quê? Ou de quem? Ora, se magoa é um sentimento de tristeza ou desgosto causado por fato ou ação que nos fere moral ou emocionalmente poderemos supor que a mágoa revela uma revolta contra a vida, uma impossibilidade de percurso, uma interrupção brusca sem precedentes.

O pódio de Cazuza foi sua poesia, foi poder ter a possibilidade de dizer poeticamente sua revolta, no entanto, o beijo de namorada (o prêmio) parece que nunca o esperou. O fato de correr na direção contrária sugere um pensar sobre sua caminhada tortuosa, na contra mão. E é por meio da poesia que ele se declara um transgressor que subverte sua ordem familiar para ocupar o lugar de poeta da ousadia.

Mas se você achar / Que eu tô derrotado Saiba que ainda estão rolando os dados Porque o tempo, o tempo não pára

Dias sim, dias não / Eu vou sobrevivendo sem um arranhão Da caridade de quem me detesta

Mas se você achar que eu to derrotado / saiba que ainda estão rolando os dados. Sabemos pela psicanálise que o desejo é a mola propulsora do existir. Nesses versos, encontramos o desejo como motor da vida, no entanto a revelação do poeta é de uma dor de existir diante da derrota. A existência pura e simples, sem nenhuma ilusão ou véu. Ele diz: vou sobrevivendo sem um arranhão, da caridade de quem me detesta, configurando o limite do desejo em que a existência se converte no puro existir, só há espaço para a dor.

Podemos sugerir, a partir destes versos que, quando há uma condição de morte anunciada, revelando que a vida é finita, torna-se difícil manter o movimento do desejo. Revela-se aqui nas palavras do poeta que a vida perdeu seu principal combustível, o desejo. Ele diz ainda: da caridade de quem me detesta, é a doença, que ainda não habitando seu corpo por inteiro, lhe permite uma chama de vida em que só há espaço para dor.

Eu vejo o futuro repetir o passado /Eu vejo um museu de grandes novidades

O tempo não pára / Não pára, não, não pára

Eu não tenho data pra comemorar / Às vezes os meus dias são de par em par

Procurando agulha no palheiro / A tua piscina tá cheia de ratos Tuas idéias não correspondem aos fatos / O tempo não pára.

O futuro repetir o passado, um museu de grandes novidades. Esses versos demonstram o quanto o poeta anda na contra mão, ainda aqui há uma repetição, uma projeção futura do antigo, se configurando como o eterno retorno do mesmo. Freud adverte (1927/2006, p. 15) “quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente, mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro”, demonstrando que a compulsão à repetição se refere às experiências passadas que não incluem possibilidade alguma de prazer, nem mesmo para os impulsos que foram recalcados, se impondo esta pulsão como uma força demoníaca de forma completamente independente do princípio do prazer.

Podemos mesmo sugerir que, um museu de grandes novidades traz de volta as mesmas coisas com um novo ar, no entanto, são as mesmas coisas, confirmando aquilo que Freud afirma (1920/2006, p. 56) “seremos então compelidos a dizer que o objetivo da vida é a morte, e, voltando o olhar para trás, que as coisas inanimadas existiram antes das vivas”, portanto, o tempo não para ele caminha de volta ao estado inanimado, confirmando que a morte é o propósito da vida.

Procurar agulha no palheiro revela toda dificuldade em que o poeta se encontra frente à finitude. Considerar que este retorno ao inanimado é necessário, é poder afirmar o fracasso da condição humana, condicionado pelo fracasso narcísico, mostrando que não basta querer, algo de maior nos ultrapassa, levando ao fracasso de nossas intenções. As idéias não correspondem ao fato, há um desequilíbrio tortuoso entre as idéias, os pensamentos, as intenções e os fatos da realidade, o que se apresenta, é aquilo que pode ser visto mostrado pelo corpo. Nesse ponto, é o sujo que habita o corpo do poeta, ele confirma a piscina esta cheia de ratos. Ratos que vivem em esgotos, se alimentam de material em decomposição sugerem uma deterioração da vida frente a um mal incurável.

Vale ressaltar o que Freud (1917/2006, p. 104) alerta em Luto e Melancolia que de modo geral “o ser humano [...] nunca abandona de bom grado uma posição libidinal antes ocupada.” sugerindo que qualquer perda, seja ela de um objeto ou de uma condição, é vivida como sofrimento da perda. Portanto, ter a imagem corporal engolida por uma doença provocará um desconhecimento de si.

Podemos, por isso, afirmar que, no processo do luto, o indivíduo está de uma maneira ou de outra confrontado com a castração, diante de um limite. A morte, portanto, impõe ao narcisismo um golpe significativo, mostrando a incapacidade do humano de impedir seu acontecimento, e o poeta relata: eu não tenho data pra comemorar, às vezes os meus dias são de par em par expressando seu desencontro, seu impedimento diante dos fatos.

Cabe lembrar, entretanto, que a arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno do vazio, ela por si só já é uma demonstração metafórica de um estado de sentimento. Nesse sentido Castiel (2007, p. 110) afirma que: “as obras de arte imitam os objetos que elas representam, mas sua finalidade não é representá-los [...] o objeto é instaurado em uma certa relação com a coisa que a presentifica ao mesmo tempo em que está ausente”, portanto a expressão de Cazuza em sua poesia qualifica seus sentimentos, impõe a eles uma ordem dada em decorrência de sua vivência da finitude, mostrando que sua forma de elaborar a perda é dando sentido a ela pela expressividade artística.

Em fevereiro de 1989, Cazuza assumia publicamente ser soropositivo. Numa época em que a prevenção da doença ainda não era tão difundida, esse foi um ato de extrema importância, conscientizadora para a sociedade, especialmente porque se tratava da primeira personalidade pública brasileira a fazê-lo. Assumindo uma

postura serena, o poeta não se deixou lamentar pelo inevitável, e passou a aproveitar o tempo que ainda lhe restava para compor compulsivamente. O álbum duplo Burguesia foi o último de sua meteórica trajetória, gravado quando ele já estava numa cadeira de rodas. Transitando entre o rock e a MPB, seu derradeiro registro discográfico vendeu 250 mil cópias e lhe garantiu mais um Prêmio Sharp de Música, pela canção Cobaias de Deus.