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ESTUDO COMPARATIVO

4.3 Comparação e Unidades de Análise

4.3.2 Federações Americanas: Trajetórias, Processos e Estruturas

4.3.2.4 A Federação Norte-Americana

O estudo da evolução da federação norte-americana é por si só uma tarefa árdua e quase que inesgotável pelo fato de ter sido a primeira experiência na era moderna em que a idéia de unidade com soberania compartilhada a partir de um arranjo democrático estava presente. Em decorrência disso não foi apenas um modelo teórico para a reflexão em torno do federalismo como princípio, mas foi um modelo real para aquelas lideranças em outras nações que buscaram um arranjo onde o compartilhamento do poder em termos regionais

pudesse ser implementado ao mesmo tempo em que são construídas ou reformadas as bases de um Estado nacional.

A sociedade que se converteu nos Estados Unidos da América adotou o princípio federal durante a Guerra da Independência em conformidade com os Artigos da Confederação estabelecida em 9 de julho de 1778, cujo objetivo era derrotar as forças britânicas e conseguir autonomia perante a metrópole. Este princípio federal no mundo real tomou a forma de uma Confederação a qual, diante das demandas em favor de uma autoridade central mais forte que garantisse uma ordem política mais estável, foi posta em discussão. A segunda Convenção Constituinte foi estabelecida em 1787 com o propósito de construir uma União Federal.

O debate em torno do novo formato do arranjo institucional norte-americano produziu uma das obras seminais para a compreensão não só dos princípios do federalismo como também da própria federação estadunidense. O Federalista que no seu Artigo 2 defende a idéia de um governo cujo formato seria de uma federação e argumenta que o povo deve ceder alguns direitos para a construção desse arranjo político. (HAMILTON, 1984: 103).

Hamilton e seus companheiros desconstroem os argumentos em favor da Confederação e afirmam que este tipo de arranjo, onde cada unidade é completamente autônoma e independente em relação a um poder central, jamais conseguiria fazer frente às potências estrangeiras e seus interesses, em virtude do fato que essas unidades teriam dificuldade de construir alianças frente a um inimigo comum e não seriam capazes de construir um exército conjunto, o que as tornaria fracas diante de potências estrangeiras. Além disso, numa confederação, a união é precária também pelo fato de que os membros constituintes desse arranjo não seriam iguais, sendo alguns dos seus integrantes mais fortes

do que outros, o que despertaria desejos e competição dentro da própria confederação. (HAMILTON, 1984:121).

Estes e muitos outros argumentos contribuíram para o desfecho final da Convenção da Filadélfia, em que a nova Carta Constitucional de 1787 substituiu os Artigos da Confederação por uma União mais centralizada que poderia, entre outras coisas, criar impostos e contribuições, estabelecer um poder judiciário nacional e nomear um mandatário independente do Congresso. (BENSEL, 1996: 67).

O surgimento da federação norte-americana, deste modo, é uma resposta, ao mesmo tempo prática e teórica, a questões como a necessidade de eliminar o espectro da guerra entre as colônias, facilitar o comércio, criar instrumentos de defesa contra a Grã-Bretanha e constituir uma nação. A federação norte-americana foi uma solução centralizadora para a resolução de problemas de eficiência econômica e política. (RABAT, 2002: 5).

Em 1812, durante a Segunda Guerra contra a Grã-Bretanha, a federação norte- americana viu-se diante de um problema, pois uma das medidas do governo federal foi o embargo comercial a Grã-Bretanha que teve uma forte oposição dos estados industrializados do nordeste, os quais chegaram mesmo a considerar a possibilidade de secessão naquilo que ficou conhecida como a Convenção de Hartford. Os participantes moderados da convenção evitaram o rompimento com o governo federal, muito em decorrência do fim das ações militares contra as forças britânicas (BENSEL, 1996: 67).

Outros episódios relacionados à possibilidade de secessão estiveram presentes em toda a primeira metade do século XIX, como o conflito entre a Carolina do Sul e o Governo Federal no que se refere à instituição de impostos. A busca de um equilíbrio entre estados diferentes e mesmo desiguais neste período foi constante até a eclosão da Guerra de Secessão em 1861. (BENSEL, 1996: 68).

A Guerra da Secessão foi o momento em que a federação foi definitivamente posta à prova e com a vitória dos estados do norte sobre a confederação sulista ficou claro que a adesão dos estados à união já não era uma decisão consensual cuja possibilidade de reconsideração ou mesmo de negação pudesse ser aceita. (BENSEL, 1996: 70).

Um traço característico do EUA da segunda metade do século XIX é que, apesar do avanço da União sobre os estados, a operação da democracia foi controlada pelos governos estaduais e locais, o que de fato gerou uma disputa pelo poder entre os atores locais e federais. Essa disputa, de certo modo, foi arbitrada pela mais alta instituição judicial, a Suprema Corte. Em certo sentido a federação foi resultado da evolução da estrutura legal ordinária e constitucional e do equilíbrio de poder na economia política nacional. (BENSEL, 1996: 70).

A dinâmica da federação americana tem como eixo principal um processo contínuo de negociação e disputa entre os governos locais e estaduais e o governo federal. De acordo com Riker, este processo não foi exatamente um processo em que o poder estava descentralizado e foi sendo concentrado paulatinamente no governo federal. Na verdade, a União já possuía, no momento do seu estabelecimento, instrumentos que possibilitariam a concentração de poder no nível federal. Um dos exemplos mais notáveis desse processo em que a União cada vez mais se sobrepõe aos estados é a transformação das milícias estaduais e posteriormente as Guardas Nacionais estaduais, no aspecto prático, em reserva das Forças Armadas da União. (RIKER, 1987: 162).

Durante o século XX a federação norte-americana sofreu poucas mudanças no que se refere à repartição de poderes entre os estados e o governo federal. Em 1913, uma emenda constitucional, por exemplo, permitiu ao governo federal a possibilidade de instituir imposto de renda a ser pago diretamente pelos cidadãos em caráter obrigatório.

Neste mesmo período os senadores, que antes eram eleitos pelas legislaturas estaduais, passaram eleitos pelo voto popular. Em 1920, o voto feminino foi instituído. O New Deal marcou o período de aprofundamento da concentração de poder na esfera federal e entre 1933 e 1939, o Executivo federal passou a ter autoridade para regular as disputas entre o capital e o trabalho quando interferissem no fluxo de comércio interestatal. (BENSEL, 1996: 83).

A alteração da interpretação da cláusula de comércio pela Suprema Corte favoreceu a ampliação dos poderes do governo central. Este episódio é importante, pois a Suprema Corte passa a ter um papel ainda mais relevante para as relações federativas nos EUA, no sentido em que não poderia mais atuar sem considerar a correlação entre as forças políticas e o anseio popular. Em meados da década de 30 e nos períodos subseqüentes, o processo de reconstrução da economia foi conduzido a partir da esfera federal com base na interpretação da norma constitucional de comércio feita pela Suprema Corte (RABAT, 2002: 8).

Os anos entre 1945 e 1970 nos EUA foram caracterizados por uma forte expansão econômica e consolidação do país como superpotência mundial. Uma das conseqüências deste processo foi o intenso investimento federal nos estados. Após a década de 70, a crescente crise fiscal e as crises do petróleo levaram a economia norte-americana a uma recessão que teve entre outras conseqüências cortes maciços em programas e orçamentos federais voltados para políticas estaduais (GITTELL, 1986: 11).

Durante os anos 80 do século XX, com a ascensão de Ronald Reagan à Presidência, o tema dos direitos e responsabilidades das unidades subnacionais voltou a ser discutido e desde então o papel dos estados no contexto da federação norte-americana tem sido objeto de debates e pesquisas.

A federação norte-americana é caracterizada, a partir de algumas análises, como uma federação em que a concentração de poder no governo federal é uma de suas características fundacionais e ao mesmo tempo a idéia de autonomia e soberania dos entes subnacionais, como um contraponto ao poder da união está presente não só no processo político como na própria transformação da Constituição no decorrer do tempo. A barganha entre o governo nacional e os entes subnacionais é um fenômeno necessário para a manutenção da federação e é possível sugerir que o seu colapso contribuía para as turbulências na dinâmica federativa norte-americana

Um aspecto importante da federação americana é que, mesmo tendo sido criada sob a égide da concentração de poderes na União, os estados sempre mantiveram sua identidade e foram durante boa parte do século XIX e início do século XX o eixo da política norte- americana. A identidade estadual talvez seja um dos traços mais marcantes dos EUA e que se distingue das outras federações até aqui estudadas, pois está definida tanto na sua estrutura constitucional como na dinâmica das relações federativas.