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1. Empreendedorismo e educação: por um diagnóstico possível do presente

1.3. Felicidade, salvação e destino

Para investigar certa conformidade numa subjetividade empreendedora, na tentativa mesma de desfiar os nexos entre os saberes ali convocados (economia, administração, educação, psicologia), as práticas de governo e a pragmática de si, observamos que as noções de salvação, felicidade e destino constituem temas recorrentes em tais investimentos

discursivos. Perscrutar essas noções e os dispositivos de poder que são ali convocados pareceu-nos, inicialmente, um caminho promissor para observar o que torna esse tipo de governamento possível.

Em seu livro Foucault, Deleuze (2005) recupera de seu contemporâneo o lugar que a vida, o trabalho e a linguagem ocupam na formação de uma configuração específica ao homem: a vida descobre uma organização; o trabalho, uma produção; a linguagem, uma filiação (trata-se de forças de finitude que entram em interação com as forças infinitas no homem). Na esteira dessa observação, tratou-se aqui de mirar as formas por meio das quais os indivíduos lançam mão de suas próprias forças (criar, imaginar, conceber, recordar, querer etc.) para se tornarem sujeitos de determinado tipo. Tendo em vista o governo dos outros, interessamo-nos em interrogar: Como se dá a aderência a certo regime de veridicção? Como determinada forma de poder torna-se convincente e efetiva?

No rastro dessa inquietação, observamos que as noções de felicidade, salvação e destino, numa espécie de elã, costuram o discurso empreendedor. Tal nexo ocupa lugar gravitacional naquilo que se poderia definir como a formação de um regime de vontade que se estabelece no encontro e no debate das forças.

Conforme analisou Foucault (2010a) em A hermenêutica do sujeito, a noção de salvação é tradicional: ela já aparece em Platão e remete ao tema do cuidado de si e dos outros. Destaque-se que Foucault dedicou, em seus últimos cursos, especial atenção aos deslocamentos das noções de cuidado e conhecimento de si na Antiguidade, das quais se desdobraram asceses diferenciadas operadas pelos homens em diferentes épocas. Não é o caso, aqui, de estender tal questão, mas esclareça-se que a noção de cuidado de si convocada na contemporaneidade difere radicalmente de outras formas desenhadas em contingências diversas. O que interessa agora é a vinculação discursiva entre salvação de si e salvação do outro, questão nodal que articula o governo de si ao governo dos outros. Tal problemática remete a uma ideia positivada de passagem – da vida à morte, de um estado a outro, de um mundo a outro, do mal ao bem, da impureza à pureza – e, de acordo com Foucault, é sob o signo da falta, da transgressão, da queda e do perigo que ela se sustenta.

Salvar o outro e a si mesmo demanda uma postura alerta e resiliente, um posicionamento de quem detém domínio e soberania de si. Salvar a si mesmo apresenta

por exemplo, referir-se a felicidade, tranquilidade, serenidade ou êxito. Há na salvação, contudo, algo de revelação da verdade; esta, por sua vez, implica certo trabalho de si para consigo e para com o outro.

A noção de felicidade permeia os discursos e constitui certa virtue do governamento, configurando-se como meta e articulando-se à noção de salvação. No início do século XXI, passa a compor as estatísticas e as estratégias estatais, mantendo-se como elemento central nas invenções da atualidade. Dentre estas destaca-se o FIB, um índice de felicidade da população.

Georges Minois faz um breve recuo do termo até situá-lo no presente, dando a ver sua positividade desde o discurso político da Antiguidade.

A ideia de felicidade tem a ver com a ação política e social. Considerada universalmente um bem, ela suscita lutas de natureza ideológica. Na Antiguidade, é considerada exclusividade de uma minúscula elite de sábios e virtuosos que podem atingi-la apenas por uma disciplina de vida extremamente rigorosa [...]. Com a filosofia das Luzes, torna-se aos poucos um direito fundamental para todos os homens: é o que proclama a Declaração de Independência Americana em 1776 e uma das motivações essenciais da Revolução Francesa para a qual, segundo o célebre relatório de Saint-Just em 1794, “a felicidade é uma ideia nova na Europa”. Todas as ideologias dos séculos XIX e XX têm a pretensão de trazer a felicidade [...]. Hoje, finalmente, é uma preocupação essencial, tanto da Economia Política, que conta com o “moral dos lares” para garantir o crescimento, como das ciências humanas, que da Psicologia à Neurobiologia, tendem a garantir o sentimento de bem-estar do indivíduo. (2011, p.2)

A felicidade entra nos cálculos de governamento populacional já nas teorizações de Jeremy Bentham, filósofo e jurista do século XVIII que afirmava que

a maneira como qualquer pessoa devia buscar a felicidade era um assunto a ser resolvido pelo indivíduo em questão. Mesmo assim, em primeiro lugar, alguém tinha de assegurar que essa busca seria possível – e isso era o trabalho do governo: criar condições que permitissem que todos nós buscássemos a felicidade da maneira que achássemos melhor. (SCHOCH, 2011, p.38)

É de Bentham a equação: felicidade é igual a prazer menos dor. No alvorecer da racionalidade liberal, portanto, investia-se numa ação econômica do Estado voltada para a suposta busca racional da felicidade e para a garantia da liberdade, salvaguardando a vida e a propriedade do indivíduo em nome de sua satisfação pessoal. A liberdade, contudo, não

garantiria sozinha a felicidade, mas dependeria da vontade do indivíduo: é preciso querer ser feliz.

Em seu texto Omnes et singulatim: uma crítica da razão política, Foucault destaca que a arte de governar do Estado utilizou-se de técnicas próprias, como a polícia, que deveria velar pela preservação da vida sob a lógica de fazer viver e deixar morrer, numa razão inversa à máxima soberana de deixar viver e fazer morrer. “Em suma, a vida é objeto da polícia: o indispensável, o útil e o supérfluo. Cabe à polícia permitir aos homens sobreviver, viver e fazer melhor ainda”. Esse melhor estaria relacionado “à maior felicidade da qual ele [o homem] possa gozar nesta vida” (FOUCAULT, 2006a, p.381).

Sob a lógica de que governar menos é governar mais, convive-se em um estado

permanente de polícia em que o índice de felicidade-salvação constitui o termômetro – da educação, da família, da empresa, do Estado. Instigados a buscá-la em todos os locais de sua existência, os indivíduos são levados a reeditar cotidianamente a retórica da felicidade.

Por fim, cabe destacar que o Estado age por meio de políticas de intervenção diversas (na segurança, na moralidade, na saúde, na educação, na economia, na assistência social etc.), mas a responsabilização pela conquista (ou não) da felicidade, apesar de tutelada, é de caráter individual.