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1. Empreendedorismo e educação: por um diagnóstico possível do presente

1.6. Pedagogia: um foco, um corte, um problema

Do que foi até aqui exposto, tanto em publicações sobre empreendedorismo quanto em textos de publicações oficiais e em materiais de programas de pedagogia empreendedora, parece estar estabelecida certa aliança entre Estado e empresa como lógica e regramento dos sujeitos contemporâneos. Conforme destacamos, há uma convocação ao desenvolvimento de habilidades, aptidões e inteligências voltadas para o mundo produtivo, numa disposição normativa que deveria pautar a relação de si para consigo. Tal observação poderia levar à análise de que a pedagogia ocuparia lugar de coadjuvante nesse processo, como um sítio invadido por racionalidades que originalmente lhe seriam estranhas. No entanto – e esta é uma das questões que anima a presente pesquisa –, trata-se justamente de pôr em questão o próprio estatuto da pedagogia.

A concepção de pedagogia mobilizada no discurso do empreendedorismo remete a uma noção técnica que visaria acionar e desenvolver as capacidades e habilidades latentes no indivíduo, alterando sua forma de ser de modo a atingir um estado de existência. Ora, se tomarmos de empréstimo a terminologia de Foucault (2010a), podemos dizer que a pedagogia que aí se configura converte-se em uma forma de transmissão de uma verdade que tem por função dotar um sujeito qualquer de atitudes, capacidades e saberes que dantes não possuía e que, ao final da relação pedagógica, deveria possuir. Verdade e transformação do sujeito constituiriam, pois, o cerne de tal relação.

Acreditamos que lançar luz sobre o próprio discurso pedagógico pode evidenciar um jogo de governamento operado por meio de práticas de subjetivação. Claro é que a pedagogia governa, e isso não está em questão. Partindo de tal assertiva, buscaremos perscrutar de que

modo se dispôs/dispõe o funcionamento da pedagogia na formação do éthos empreendedor, a partir da figura do homem que produz a si mesmo. Para isso, pondo em xeque a própria discursividade pedagógica e duvidando de um suposto caráter inovacional do empreendedorismo, optamos por dar um passo atrás a fim de investigar como se conformou a definição do homem como produtor de seu destino e capital de si próprio. Quais foram, afinal, as condições que tornaram essa forma possível?

Tal como indica James D. Marshall (2008, p.31), dar um passo atrás “é diferente da noção de desenterrar um conhecimento subjacente ou um conjunto de práticas subjacentes, uma episteme, que permite às declarações serem consideradas verdadeiras ou falsas”. Dar um

passo atrás equivaleria ao movimento pelo qual é possível separar-se do que se faz,

estabelecê-lo como um objeto de pensamento e refletir sobre ele como um problema.

Para essa jornada, valemo-nos especialmente da companhia de Michel Foucault. Imiscuindo-se nas relações entre os modos de constituição do sujeito e os jogos de verdade, mesmo sem ter aportado diretamente na experiência tida como pedagógica stricto sensu, suas investigações últimas levaram a termo um estudo das relações que o indivíduo trava consigo, da relação de um si que se voluntaria a certas práticas com o objetivo de produzir e transformar a si mesmo a fim de atingir certo modo de ser. Essa relação consigo próprio, que implica um dizer a verdade sobre si, dá-se na presença do outro – filósofo, médico, psiquiatra, psicólogo, psicanalista, professor, amigo, amante, conselheiro etc. “O estatuto desse outro é variável, portanto. E seu papel, sua prática, não é tão mais fácil de isolar, de definir, já que, por certo lado, esse papel cabe à pedagogia, se apoia nela, mas também é uma direção de alma” (FOUCAULT, 2011, p.7). Na esteira dessa analítica, trata-se aqui de pensar as relações do indivíduo consigo e com os outros como relações pedagógicas, as quais tornam um modo de governo possível.

Exemplo disso é o pedagogo da Antiguidade clássica. Conforme apontam as fontes históricas, tal personagem, inicialmente tomado como simples escravo ou servo encarregado de acompanhar a criança nos trajetos cotidianos entre a casa e a palestra, vai progressivamente adquirindo outras funções, sobretudo ao nível da responsabilidade moral e do cuidado geral com a criança. Narra-se que, ao acompanhar a criança à palestra, ele devia protegê-la contra os perigos da cidade. Porque passava grande parte do dia com a criança, o pedagogo exercia sobre ela uma contínua vigilância. Nas palavras de Sêneca a um discípulo (apud

pegá-lo pela mão e guiá-lo”. Dito de outro modo, trata-se de velar pelo trajeto e pelo futuro daquele a quem se acompanha, aconselhando-o e conduzindo-o de tal sorte que, ao cabo de toda uma trajetória – que atualmente corresponderia aos anos que vão da infância à vida adulta –, à vigilância do outro seria acrescida da potência da vigilância de si mesmo.

Tendo como companheiros de viagem Foucault e outros autores filiados ao pós- estruturalismo, arriscamo-nos a dizer que contextualizar a pedagogia é atribuir-lhe um caráter contingencial e conformador de sujeitos, o que, de certa forma, implica desvinculá-la de uma “função mediadora” (LARROSA, 1994, p.37) e neutra em que meramente se dispõem os recursos para o desenvolvimento dos indivíduos. Trata-se, portanto, de considerá-la como portadora de um papel produtivo e ativo na fabricação de indivíduos. Ademais, nesse jogo de condução da alma, ela teria como aval a qualificação de determinado saber.