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1 DA ANTROPOLOGIA FENOMENOLÓGICA AO OUTRO

1.4.1 Fenomenologia da nostridade (Wirheit)

O interesse de Binswanger será cada vez mais o aprofundamento da estrutura ontológica do dasein enquanto ser-com, a tal ponto de considerar que o cuidado (Sorge) na perspectiva heideggeriana, não foi levada a suas últimas consequências quanto ao encontro com outrem. Em As Formas fundamentais do dasein humano, Binswanger visa pensar a estrutura existencial do dasein humano enquanto ser-com, considerando que Heidegger não fora suficientemente radical em sua explicação sobre a relevância desse mundo comum, quando comparado com a descrição dos demais aspectos essenciais do dasein.

Inspirado pela obra Eu e Tu, de seu contemporâneo Martin Buber, o psiquiatra procurou desenvolver a teoria do cuidado (Sorge) de Heidegger, por meio da noção de Wirheit12. Revelando uma análise

profunda e detalhada de Ser e Tempo, a obra de 1492 irá se distanciando de Heidegger na medida em que explora não mais a finitude do ser-para- a-morte, mas a infinitude do amor, não mais a ipseidade do ser que se

12 Wirheit é um termo alemão de difícil tradução, que na língua francesa é traduzido como noustrité e em português não há termo correspondente, talvez possamos utilizar a expressão nostridade, para explicar esse aspecto do Dasein, que para além do ‘ser-aí’, significa ‘ser-um-com-outro, a forma existencial do mundo comum, da identidade do nós como fundante do ego (CABESTAN; DASTUR, 2011). De acordo com Binswanger (1993), a noção de Wirheit é utilizada como um modo de “demonstrar como eu-mesmo e tu- mesmo – no sentido do amor – podemos ser, sem que Nós – no sentido do amor – cesse de ser” (p. 110). Seria justamente essa possibilidade que estaria comprometida das psicoses, em função do “‘estrangulamento’ ou ‘declínio’ do ser-um-com-outro degradado em simples ser-com ‘de um e de um outro’” (BINSWANGER, 1993, p. 10).

desloca no tempo, mas a anterioridade do Wirheit em relação à perspectiva do ego e do alter ego. A questão para Binswanger é que a noção de cuidado em Heidegger, enquanto elemento existencial próprio do ser do Dasein, é condicionada pela perspectiva temporal do ser-para- morte, contudo, o amor está fora ou transcende essa perspectiva. De acordo com Binswanger (1993), o ser-um-com-outro antecede a experiência de ser-para-morte, o que significa que o Dasein não poderia ter como sua estrutura mais fundamental o cuidado, uma vez que ele está condicionado à temporalidade.

Antes de pensar o Dasein como poder-ser enquanto cuidado, portanto uma ipseidade que se desenrola no tempo, é preciso pensá-lo como poder-ser-um-com-outro, como noustrité que se eterniza no tempo. Como explica Coulomb (2009), fazer do cuidado o aspecto mais essencial do ser-no-mundo é considerar que a preocupação e a utilização antecedem o ser-com-outro. Entretanto, Heidegger reagiu de forma radical contra a iniciativa do psiquiatra, considerando que a necessidade de Binswanger de acrescentar algo a sua ontologia e às estruturas existenciais do Dasein, como se o cuidado não desse conta do ser-um- com-outro, não passou de má-compreensão de Ser e tempo. De acordo com o filósofo o psiquiatra faz uma restauração do problema que ele próprio pretendia ultrapassar, a saber, dicotomia do sujeito e do objeto e o subjetivismo, conforme será analisado no último capítulo. Por enquanto, interessa saber que o foco de Binswanger na analítica do

Dasein diminuirá conforme surge a necessidade de descrever de forma

mais detalhada os estados alterados de consciência.

Na época em que Binswanger volta-se sobre o Ser e tempo de Heidegger, seu interesse maior estava na possibilidade de dar respostas aos problemas concretos que se colocam ao psiquiatra, que se referem a historicidade dos sujeito psicóticos. “Ele busca no ser-no-mundo heideggeriano, mais ainda que na intencionalidade husserliana, o meio de centrar o interesse sobre a trajetória própria do indivíduo concreto” (NAUDIN, 1997, p. 20). Daí seu interesse pelos delírios esquizofrênicos, compreendidos em sua dimensão biográfica e antropológica, conforme se evidencia em O sonho e a existência.

Nota-se claramente a influência de Heidegger que se exprime pelo fato de tentar uma interpretação existencial e biográfica do sonho relacionada com a dicotomia heraclitiana entre sonho e vigília, no sentido próprio de uma discriminação entre se

abrir ao mundo próprio e se abrir a um mundo comunitário (BINSWANGER, 1971, p. 42) Tratava-se, portanto, de uma investigação apoiada na antropologia fenomenológica, com um modo de ultrapassar a antropologia clássica do corpo e da alma. Contudo, não bastava para a psiquiatria enquanto ciência a ideia de que se tratavam de distúrbios relacionados a dificuldades na transição entre o mundo próprio e o mundo comum, ocasionados por modificações nas estruturas existenciais do Dasein humano. Seria necessário compreender de que modo essas estruturas foram alteradas. Segundo Naudin (1997, p. 20), “se a linguagem heideggeriana convém bem a compreensão fática e biográfica do delírio, ela não permite, talvez uma melhor compreensão de sua gênese”.

Sendo assim, passou a interessar a Binswanger saber quais os possíveis tipos de distúrbios psicóticos, de acordo com as características transcendentais que os fundamenta, o que seria encontrado na filosofia genética de Husserl, principalmente após a leitura da obra Introdução à

fenomenologia de Husserl (1959), do filósofo e amigo Wilhelm Szilasi,

na qual a questão da intersubjetividade e da gênese constitutiva do ego transcendental são trabalhadas. O que deve ter chamado a atenção de Binswanger é justamente a reflexão de Szilasi sobre como os estados alterados de consciência estão relacionados diretamente aos processos constitutivos do ego enquanto transcendências imanentes, quer seja na normalidade ou na psicopatologia.

A construção de meu mundo próprio – ou seja, do mundo da minha vida [Lebenswelt] – é um processo que consiste em ser permanentemente capturado por momentos puramente transcendentes. Em razão da transcendência imanente todo eu tem seu próprio mundo primordial [transcendência primordial]. Assim ocorre inclusive com o homem patológico [o melancólico, por exemplo], uma vez que reduz correlativamente a plenitude humana da atividade de seu ego puro ao Lebenswelt que lhe é próprio. Para a fenomenologia da constituição seria muito instrutivo investigar esses passos da redução. [O mundo é duplamente inadequado: em primeiro lugar pela imperfeição da inadequação e, em segundo lugar, pela redução que cada qual prática

da plenitude do mundo ao Lebenswelt.] (SZILAZI, 1973, p. 129, grifo do autor).

Esse é o tipo de passagem encontrada em Introdução à

fenomenologia de Husserl que interessou particularmente à Binswanger,

pois aponta para a possibilidade de descrever as características essenciais dos diferentes estados psicóticos, pela interpretação transcendental de sua gênese constitutiva.

1.5 O RETORNO A HUSSERL E A GÊNESE DAS FORMAÇÕES