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2 DO OUTRO AO ESTRANHO: O ITINERÁRIO DA

2.1 A IMPOSSIBILIDADE DE OUTREM EM DESCARTES

O pensamento objetivo e a análise reflexiva, ao procurar explicar o fenômeno da intersubjetividade no âmbito de uma subjetividade tética, como o fez o idealismo cartesiano, tornou praticamente irrealizável a compreensão da percepção de outrem. Na perspectiva do cogito constituinte que considera o mundo a partir de uma transcendência redutível à razão, que possui a ilusão de um saber verdadeiro e definitivo acerca do fenômeno, outrem é apenas mais um objeto constituído pela consciência enquanto Kosmotheoros.21 Como considera

Bonan (2001, p. 10), “fazer da intersubjetividade um problema é aceder sem mediação a uma dimensão reflexiva”.

21 Kosmotheoros é uma expressão utilizada por Merleau-Ponty para dar significado a perspectiva sobre o conhecimento como uma espécie de olhar que paira sobre o mundo, a partir de uma atitude de sobrevoo e de dominação do objeto de investigação. “Perante o observador absoluto, Kosmotheoros que sobrevoa o mundo para contemplá-lo como espetáculo integral e sem poder habitá-lo, não opunha a inexistência da subjetividade, mas indagava porque o sujeito absoluto a dissimulava e anulava” (CHAUÍ, 2002, p. 7). A expressão aparece nos cursos sobre Instituição e passividade, de 1954-1955, como uma forma de criticar a antropologia de Lévi-Strauss. “Isso quer dizer que Lévi- Strauss admite um observador absoluto, Kosmotheoros, com o qual ele se identifica, e perante o qual o social é objeto” (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 120).

O exemplo da percepção do pedaço de cera utilizado por Descartes (1948) em sua segunda meditação metafísica demonstra a soberania do pensamento e do eu constituinte quando defende que o reconhecimento da cera após o derretimento não ocorre por meio de suas qualidades sensíveis, mas em função de um juízo. Apenas uma inspeção criteriosa do espírito em sua capacidade de julgar e distinguir clara e distintamente a verdade do erro, que reconhecerá a cera derretida como ainda sendo ela mesma. Não se trata da visão propriamente dita, mas sim do ‘pensamento de ver’22 que rejeita ao sensível a possibilidade

de oferecer qualquer informação sobre a essência.

Segundo Gouhier (1949), a física cartesiana se caracteriza pelo divórcio entre o sensível e o real, porquanto o exemplo do pedaço de cera visa a ensinar que o objeto real é um objeto inteligível. Nesse sentido, a verdade sobre o mundo é fruto de uma representação mental, de um ego cogito que tem sua potência naturante fundada na existência de Deus e na regra da clareza e da distinção. Inclusive a verdade no que se refere à percepção de outrem, visto que a mesma lógica aplica-se a todas as coisas que se situam fora do ego. Como, por exemplo, no que diz respeito à capacidade de diferenciar, do alto da janela de um grande edifício, pessoas de simples bonecos com casacos e chapéus, a se movimentar por meio de molas. Segundo Descartes (1948, p. 80), “julgo que são homens verdadeiros e assim compreendo, somente pelo poder de julgar que reside em meu espírito, aquilo que acreditava ver com meus olhos”. Seja o reconhecimento do pedaço de cera, apesar das mudanças ou alterações sofridas, ou o julgamento relativo às pessoas vistas do alto de um prédio, é apenas o entendimento que os concebe.

Merleau-Ponty reconhece a importância desse abandono das “coisas extramentais, que o realismo filosófico havia introduzido, para retornar a um inventário, a uma descrição da experiência humana sem nada pressupor que a explique inicialmente de fora” (MERLEAU- PONTY, 1972, p. 210). No entanto, o filósofo considera que Descartes teria se equivocado ao não perceber que sua análise do pedaço de cera “dá conta do pensamento de ver, mas o fato da visão, e o conjunto dos

22 Trata-se do modo como Merleau-Ponty considera que Descartes concebe a visão. “Minha visão, por exemplo, é ‘pensamento de ver’, se por isso se quer dizer que ela não é simplesmente uma função como a digestão ou a respiração, um feixe de processos recortados em um conjunto que acontece ter um sentido, mas que ela mesma é este conjunto e este sentido, essa anterioridade do futuro em relação ao presente, do todo em relação as partes” (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 466).

conhecimentos existenciais permanecem fora dele” (MERLEAU- PONTY, 1972, p. 212). Ao proceder pela dúvida metódica à descoberta do cogito como a unidade fundamental da consciência, a partir da qual seria possível a constituição do mundo e de outrem, Descartes funda o problema da intersubjetividade em seu sentido moderno. Conceber a percepção como uma espécie de ‘pensamento de ver’ conduz sua filosofia ao problema da percepção de outrem, visto que perceber se reduziria a ação do ego sobre o mundo e sobre o alter ego.

Segundo Merleau-Ponty (2009, p. 9, grifo do autor), “o Cogito desvalorizava a percepção de outrem, ele me ensinava que o Eu só é acessível a si mesmo, já que ele me definia pelo pensamento que tenho de mim mesmo e que sou evidentemente o único a ter, pelo menos nesse sentido último”. O problema da filosofia cartesiana é que ela reduz a percepção aos atos da consciência, na medida em que pressupõe o solipsismo do cogito como fundamento universal da verdade. Nesse sentido, não há verdadeiramente algo exterior ao ego, visto que de alguma forma tudo é oriundo de uma representação, não apenas o mundo e o alter ego, como também o próprio ego.

A análise reflexiva ignora o problema de outrem assim como o problema do mundo, porque ela faz surgir em mim, com o primeiro lampejo de consciência, o poder de dirigir-me a uma verdade de direito universal, e por- que sendo o outro também sem ecceidade, sem lugar e sem corpo, o Alter e o Ego são um só no mundo verdadeiro, elo dos espíritos. Não existe dificuldade para se compreender como Eu posso pensar Outrem porque o Eu e, por conseguinte, Outrem não estão presos no tecido dos fenômenos e mais valem do que existem. Não há nada de escondido atrás destes rostos ou destes gestos, nenhuma paisagem para mim inacessível, apenas um pouco de sombra que só existe pela luz (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 12).

Não há problema da intersubjetividade para Descartes porque a existência corresponde diretamente a consciência de existir, o que significa que não há transcendência no sentido de uma alteridade que extrapole os domínios constitutivos da subjetividade, pois existe uma correspondência direta entre ego e alter ego. A percepção de outrem não é problemática do ponto de vista do observador absoluto que sobrevoa o

espetáculo do mundo e coloca toda realidade como algo exterior a si mesmo, visto que sua própria subjetividade é pensada nessa perspectiva. O problema da intersubjetividade surge quando se admite o fenômeno da transcendência, no sentido da possibilidade de que outrem seja um si próprio transcendente ao ego constituinte, pois o alter ego se torna um paradoxo.

Para Husserl, ao contrário, sabemos que existe um problema de outrem e o alter ego é um paradoxo. Se outrem é verdadeiramente para si para além de seu ser para mim, e se nós somos um para o outro e não um e outro para Deus, é preciso que apareçamos um ao outro, é preciso que ele tenha e que eu tenha um exterior, e que exista, além da perspectiva do Para Si — minha visão sobre mim e a visão de outrem sobre ele mesmo —, uma perspectiva do Para Outrem — minha visão sobre Outrem e a visão de Outrem sobre mim (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 12).

O paradoxo consiste justamente em assumir ao mesmo tempo a experiência de encontro e desencontro com outrem, pelo entendimento de que toda a reflexão tem por base um fundo irrefletido, a partir do qual se distingue o existir da consciência de existir. Na perspectiva eternitária do cogito, instância atemporal privilegiada em que ser é ser consciência, se ignora o paradoxo da intersubjetividade, porém, considerando o sentido fenomenológico da consciência enraizada ao mundo, torna-se necessário explicar como se dá a apresentação de outrem. De acordo com Husserl (2001, p. 105), “precisamos nos dar conta do sentido da intencionalidade explícita e implícita, em que, sob o pano de fundo composto pelo nosso eu transcendental, se afirma e se manifesta o alter

ego”. Eis o problema da intersubjetividade conforme foi colocado pela

fenomenologia de Husserl: compreender como “o sentido do alter ego forma-se em mim e, sob as diversas categorias de uma experiência concordante do outro, afirma-se e justifica-se como ‘existente’, e mesmo à sua maneira como estando presente ‘ele mesmo’”. Em outras palavras, trata-se de pensar o paradoxo de uma existência que surpreende o ego constituinte como lhe sendo estranho, mas que só pode ser percebido na esfera de vinculação com ele, sem descambar no solipsismo da consciência, diante do qual outrem, enquanto uma existência autônoma e transcendente ao ego, é impossível.

2.2 O PROBLEMA DA INTERSUBJETIVIDADE E DO