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3 AS FESTAS DE CAPELA: IDENTIDADE EM PERFORMANCE

3.1 A Festa de Nossa Senhora da Saúde: Una bela festa se fà così

Quando si pianta la bela polenta, Quando se planta a bela polenta,

La bela polenta si pianta così [...] A bela polenta se planta assim [...]

Quando si smissia la bela polenta, Quando se mexe a bela polenta,

La bela polenta si smissia così [...] A bela polenta se mexe assim [...]

Quando si taia la bela polenta, Quando se corta a bela polenta,

La bela polenta si taia così [...] A bela polenta se corta assim [...]

La bela polenta - Canto popular Vêneto; Autor desconhecido (1919)

Esta será a última e, talvez, a mais importante festa a ser aqui analisada. Por isso trago no título desse item a indicativa de que esta festa poderia ser considerada um “modelo” de como se faz uma boa ou bela festa. Na verdade, esta é uma paráfrase da música La Bela

Polenta, cujas primeiras duas linhas das três primeiras estrofes estão citadas acima. Esta música descreve como se deve proceder em relação à polenta113, seja para fazer ou para

112 Essa noção também está presente nos trabalhos de Kapchan (1995) e Hartmann (2004).

113 A polenta, um cozido de farinha de milho em água e sal, formando uma massa consistente, é considerada um

prato típico italiano. Mas este não entra no cardápio festivo, pelo menos não no destas festas, pois é considerado um prato “menor”, ou seja, um prato do dia-a-dia, sendo que também é rondado pelo sentido pejorativo, dado seu baixo custo, como comida de pobre. No entanto, podemos perceber que essa situação, assim como a própria identidade estigmatizada do colono, tem sido invertida, ou seja, passa a ser uma imagem espetacularizada. Assim, temos jantares específicos que servem os “pratos típicos” com polenta, salame e queijo, assumindo o papel de protagonistas nestes eventos e a imagem de um colono heroico, por seu trabalho e valores morais.

comer, e esta ideia de como se deve fazer (se faz assim) parece-me ser propicia para começar a tratar desta festa, não só desta, mas, de modo geral, das Festas de Capela. Tento aludir, assim, estes modos de fazer, que permeiam a festa e os seus sentidos, tomando por empréstimo a ideia de Certeau (1990) sobre “As Artes de Fazer”, sugerindo a forma de apropriação e manipulação das ações ou maneiras de fazer, através de “táticas”. Acredito que as Festas de Capela também podem ser uma forma de resistência ou, talvez, o indício do sentido de continuidade, possível através das “astúcias silenciosas” (CERTEAU, 1990) que são transmitidas através de um sistema de valores, em ações e comportamentos.

Figura 57- Imagem de Nossa Senhora da Saúde, sendo tocada pela mão de uma senhora. Detalhe: na mão da senhora um terço.

Gostaria de salientar, inicialmente, que junto à festa de Nossa Senhora da Saúde fecha- se um ciclo festivo para minha pesquisa. Com ela, também se encaminha para o fim um ciclo festivo no próprio contexto de Silveira Martins, pois esta é penúltima do ano. A Festa de Nossa Senhora da Saúde é considerada pelo grupo o maior e mais importante evento festivo, motivo pelo qual foi incluído nesse trabalho e pelo qual considero que este ciclo festivo local atinge seu ponto máximo, pois ali não apenas se reúne um grande número de participantes (maior número dentre todas as festas), como também estes participantes podem ser identificados como fiéis ou devotos. Por ser em época de fim de ano, os fiéis ali presentes, tendo já participado de outras festas ou não, carregam consigo toda a bagagem, todas as “marcas” que foram adquiridas durante o ano. Acredito que isso faz sentido à medida que compreendemos o ponto de vista dos fiéis em relação à festa, e, em especial, no momento da missa. Essa foi a festa em que as celebrações religiosas tiveram maior peso, além de maior número de atividades que foram desenvolvidas para a celebração da Santa Padroeira, sendo que, principalmente, foi nessa festa que manifestações expressivas de fé e devoção eclodiram. Se finda um ciclo, para mim e para essa pesquisa, não porque é a última, mas porque acredito ter conseguido contemplar as diferentes dimensões das festas, através de um deslocamento do foco de observação neste itinerário.

Como já indiquei anteriormente, iniciei minhas observações nas festas enfocando a organização e apreendendo sua estrutura organizacional, passando, posteriormente, à festividade e, por último, à celebração religiosa. Nesta festa, meu intuito era o de contemplar todas essas dimensões, enfocando ainda as atividades religiosas, já que se apresentavam sob

configuração distinta das demais. No entanto, acompanhar a festa em sua totalidade é uma tarefa que se torna impossível para um único pesquisador, dado que suas “partes”, muitas vezes, se justapõem num mesmo tempo, mas não no mesmo espaço. Na tentativa de não deixar escapar momentos ou possíveis performances, recorri à ajuda de colegas para realizar a observação.114

A Festa de Nossa Senhora da Saúde se apresenta de forma peculiar e adquire uma dimensão maior em relação às outras festas, basicamente por dois motivos: primeiro, porque Nossa Senhora da Saúde é considerada a Santa Padroeira da Quarta Colônia de Imigração Italiana; por conta disso, desenvolve-se uma série de atividades que englobam não apenas a capela ou o município de Silveira Martins, mas também toda a região, como explicarei a seguir. Em segundo lugar, porque nesta capela a igreja foi transformada em Santuário, à semelhança do que ocorreu na Capela de Nossa Senhora da Pompéia (Quarta Festa). Acredito que todos os elementos e aspectos analisados nas outras festas também se fazem presentes nesta, em maior ou menor grau, sendo que alguns serão retomados. Mas também trarei novos aspectos que não foram abordados anteriormente ou que se mostraram pela primeira vez. Essencialmente, tratarei aqui do ponto de vista dos fiéis que participam da celebração religiosa e da emergência de manifestações de devoção. Nesse sentido, tento fechar, junto a este ciclo festivo, um ciclo em que as diversas instâncias festivas se apresentam, se cruzam, dialogam e constroem a festa e seu sentido, como um fato social total.115

Figura 58- Igreja Nossa Senhora da Saúde (Santuário)

Para se compreender o desenrolar dos aspectos trazidos aqui, vou brevemente relatar a estrutura deste evento festivo. O movimento na capela começou pelo menos 15 dias antes da festa. Nesse ano, a igreja do local passou por reformas, tendo sua pintura externa toda refeita. Também ocorreu a construção de uma pequena estrutura em material, um altar, para a realização da missa ao ar livre, que ocorreria no sábado à noite por ocasião do tríduo e no domingo, na missa das 10 horas e das 14 horas. Quanto aos preparos da festa, pelos organizadores, não há grandes diferenças na estrutura, exceto variantes como

114 Como já mencionei anteriormente, Francieli Rebelatto, Larissa Molinos da Silva e Fernanda Simonetti

auxiliaram nas observações, e Diogo Braggio, na filmagem.

quantidade e gênero de alimentos produzidos e também a divisão de tarefas relativas à produção de alimentos, no caso, entre a comunidade da capela e a diretoria da Igreja Matriz.

Há ainda um aspecto que considero de suma importância na produção desta festa: a criação de redes de trabalho, de modo bastante semelhante às outras festas, porém nesta ampliada para além da comunidade local. Aliás, a amplitude que adquirem todas as ações desencadeadas para a festa também será comentada, mas não apenas na ação em si, e sim, no que considero “o espírito” da ação, que constitui em grande parte o sentido da festa.

Quanto ao dia da festividade em si, abordarei alguns aspectos que foram evidenciados a partir do momento do almoço, como os espaços “transgredidos” e adaptados e, em consequência, também a lógica de mercado que ronda este tipo de festa. Desse modo, será importante também descrever as estratégias de comércio informal que são geradas nessa festa e as disputas, ou melhor, os conflitos que se estabelecem nesta situação. Alguns outros aspectos dizem respeito às performances provocadas em relação à imagem da Santa116, durante e após as celebrações das missas e até em outros momentos.

Como indiquei acima, Nossa Senhora da Saúde é a padroeira da Quarta Colônia de Imigração Italiana, e sua “sede”, digamos assim, é o Santuário da Saúde, que se localiza na Linha Quarta Norte, em Silveira Martins. Numa iniciativa recente, buscando contemplar os municípios vizinhos que conformam a região da Quarta Colônia, iniciou-se um processo de peregrinação com a imagem de Nossa Senhora da Saúde, que sai do Santuário da Linha Quarta e vai de igreja em igreja, em cada um dos municípios117, onde recebe homenagens, rezas, pedidos e agradecimentos. Esse processo é chamado de “novena móvel”, pois durante nove dias a imagem da Santa é transladada, às vezes de carro, às vezes em procissão a pé, de um lugar para o outro. Nos três dias que antecedem à festa, no Santuário da Saúde e, portanto, na Linha Quarta, também acontece um “tríduo”, ou seja, três dias de celebração religiosa como forma de preparação para a festa. Após cada celebração, na capela, ocorre um fato interessante, a venda dos produtos ali produzidos.

No dia da festa temos o seguinte itinerário: às 7h, a primeira missa, às 8h e 30min, a segunda missa, e às 9h e 30min, a terceira missa, sendo que nesta última ocorre a Romaria, quando a Santa é retirada do altar de dentro da igreja e transportada pelos fiéis numa caminhada pela estrada de chão batido que dá acesso à capela, retornando depois para a frente

116 Além da Imagem (estátua) de Nossa Senhora da Saúde, nesta festa também foi inaugurado um Quadro da Madonna della Salute (Nossa Senhora da Saúde), que seria a réplica do original trazido da Itália. As manifestações de fé tanto podiam se dar ao tocar a imagem (estátua) quanto o quadro.

117 Os locais da Novena Móvel, com a Imagem de Nossa Senhora da Saúde, são: Silveira Martins, Arroio

da igreja, onde tem sequência a celebração numa “missa campal”, ou seja, ao ar livre. Após a missa, ocorre o almoço, e, à tarde, às 14h e 30min, a última missa, chamada de bênção da saúde118. Dentre essas manifestações, tratarei aqui da Romaria, que ocorre na terceira missa, indicando algumas manifestações expressivas que ocorreram neste momento e também me deterei num trecho desta celebração, especificamente na parte do sermão.

No sermão da terceira missa ocorreu uma situação interessante, a meu ver: na execução da retórica litúrgica, o padre criou uma narrativa que mesclava informações pontuais sobre aquela festa e a devoção a Nossa Senhora da Saúde em relação ao povo da Quarta Colônia, este último evocado em sua trajetória de imigrantes até o momento presente. É a partir do sermão, como “modelo para ação”119, que problematizo algumas das performances produzidas na festa e a própria festa enquanto performance cultural. Além disso, ainda discorro sobre situações específicas, que dimensionam o sentido de festividade, da devoção, bem como as instâncias do divertimento e da socialização, como vertentes possíveis de percepção da festa. A discussão encaminha-se, enfim, para a reflexão acerca da(s) identidade(s) deste grupo em situação festiva, na perspectiva da identidade em performance, da qual emerge a dimensão que busca dar conta da totalidade de experiência proporcionada pela festa: a noção de encontro.

A fim de discutir esses elementos apontados, de modo coerente com a estruturação dissertativa, dividirei a abordagem em três itens: “As artes de [saber] fazer”, “O sermão e a devoção” e “Da religiosidade à festividade: o encontro”. Pretendo, com isso, dar conta das três principais dimensões que, para mim, tornaram-se evidentes nesse “modelo” festivo.