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1 PRA COMEÇO DE FESTA: PALCO, TEXTO E ATORES

S. Udilo: Pra dividi É Base pra toda divisão.

Seu Udilo ergueu sua voz firmemente legitimando sua história frente ao outro: prevalece o mais velho sobre o mais jovem. Esse fato remete ao traçado para divisão das terras, onde uma linha de base foi traçada e todas as outras seriam demarcadas em função daquela. Em cada linha traçada foram sendo construídas capelas, no espaço erigia-se uma igreja e por vezes também uma venda, um bolicho. Este passava a ser um centro de interações, de relações sociais e econômicas, políticas e culturais. Mais tarde e já recentemente, junto às capelas ou pequenas igrejas foram sendo construídos salões para abrigar atividades do grupo, em especial as festivas e de cunho religioso. Esse espaço continuou a ser denominado como capela, provavelmente em função do reduzido tamanho da igreja, embora capela atualmente signifique o espaço como um todo e não apenas o edifício religioso, comportando também um sentido simbólico de lugar em comum daquele pequeno grupo. Assim, temos o seguinte desenvolvimento:

no mês de fevereiro, quando sobraria o campeão do jogo de bochas e do de futebol. Ver fotos e mais detalhes no capítulo 2, item 2.1.

65 O jogo de cartas é o mais recorrente, equiparando-se às bochas. Os jogos mais comuns são “cinqüilho”,

Na Grande Colônia Divisão por léguas Nas Léguas Divisão em linhas Nas Linhas Lotes para cada família

Linhas com os lotes Agrupamento de indivíduos: Comunidades Nas Comunidades Construção da capela (igreja, salão, etc.)

Atualmente o território da capela pode ser referido também como Sociedade ou apenas como Comunidade, dependendo dos vínculos estabelecidos entre indivíduos e dos indivíduos para com aquele espaço. Assim, capela denota a construção religiosa, mas, além disso, passou a significar um espaço de encontro, de sociabilidade66. É designada Sociedade, quando os indivíduos ligados àquela estabelecem regras gerais que são legalizadas, quer dizer, passa a ser uma associação valendo-se de seus direitos jurídicos através de seus associados. Para isso, o grupo organiza-se seguindo regras gerais de administração: um presidente, um vice- presidente, etc. Nas Comunidades, a organização é semelhante à das Sociedades, a diferença está nos vínculos que não são legalizados juridicamente. Ainda assim, esta conta com administradores (diretoria) e normas coletivamente estabelecidas. Cabe ponderar que nem sempre a divisão é clara, motivo pelo qual estarei me referindo às localidades simplesmente como capela, e, quando necessário pontuarei qual o regime adotado pelo próprio grupo em sua identificação.

Em torno do pequeno centro, a capela, construída em cada linha, ocorreu um fenômeno de interação social bastante peculiar. Nas palavras de Santin (1990: 43):

A partir da Sede, Silveira Martins, os núcleos foram se estendendo desde a várzea do Vacacaí até as cabeceiras do Soturno (...). Em cada local, em geral, surgem duas construções mais ou menos inseparáveis: a capela e a venda. Não há uma ordem de procedência. A capela é, no espírito do imigrante, a mais importante, mas na medida que ela se instala, automaticamente surge uma ou mais vendas, bem como outros estabelecimentos necessários ao bom andamento do novo núcleo.

A formação de capelas ao longo do território, no período da colonização, teria facilitado a povoação em certos aspectos; ao lado da capela surge também uma venda, também chamada de bolicho, que se tornava um núcleo de compra, venda ou troca de produtos essenciais para o colono, além, de tornar-se um espaço de encontro. Entretanto, também encontramos relatos de desavenças entre capelas, principalmente na disputa por um

66 Na perspectiva do desenvolvimento teórico de Simmel, tendo a concordar com a proposição de que a

sociabilidade, enquanto categoria sociológica, é uma forma lúdica de sociação, sendo esta, a própria interação. (SIMMEL, 1983).

pároco que pudesse presidir os rituais religiosos, e disputas entre os indivíduos de uma mesma capela, pela escolha do Santo(a) padroeiro(a).

Na narrativa de Seu Udilo encontro elementos que elucidam o movimento de integração entre os colonos “naquela época”, fazendo de seu tempo livre, um tempo sagrado e uma válvula de escape entre os pesados afazeres a que se submetiam (trabalho na roça):

Todos domingo de tarde se unia toda linha, sim toda linha, mulher, criança, homem. E tinha uma árvore aí, um tal de loro... iiii a gente dançava, chegava a seca a grama, a grama em baixo daaa, embaixo da, daquela sombra. (...) É, é... e vinha, até vinha gente até daaa, das outra todas as linhas, né? Sabia que a gente dançava às veze (...) Num tinha, num tinha a sociedade, a sociedade. Era só aaa.. recolhe as folha da árvore e ... jogava baralho, e depois teve quem dançava.. (...). A maioria de lá vinha pra cá. É mais difícil os daqui sai, né? Aqui era mm mais divertido como dizia, né? É, vinha o pessoal de linha Mantuan aqui em cima também [aponta acima do morro], eles desciam de domingo. É a gente se divertia. O rapazinho tocava gaita e todas família dançando, gurizada, os casais... (Seu Udilo, 25/jan/09)

Essas memórias de Seu Udilo mostram as atividades de entretenimento nas Linhas, quando ainda não havia construção de salões, locais onde atualmente o grupo se reúne para diversão, com jogos de bochas e cartas. Seu Udilo ressaltava que, apesar do trabalho árduo durante toda semana, ou justamente por isso, o final de semana, o domingo em especial, era tido como sagrado. No domingo iam à missa, divertiam-se, bebiam, jogavam, dançavam e principalmente, cantavam. As “cantorias”, como chamam, são citadas recorrentemente como uma forma de divertimento característico: onde se encontra um grupo de pessoas, seja numa festa, num filó67 ou num jogo de bochas, haverá cantoria. Nas cantorias, o repertório geralmente é composto por músicas com letra italiana, ainda que não composta por italianos. Aliás, este é um fato bastante interessante, boa parte das músicas conhecidas e difundidas como “italianas” têm brasileiros como compositores. A essas, que em geral narram uma história ou algum fato referente à imigração ou aos valores do imigrante, devota o povo de origem italiana um culto e um sentimento de valorização significativos. Além disso, um bom divertimento para os imigrantes significa muita música e para completar, muito vinho, o que leva a mais diversão ou a momentos de “efervescência coletiva”, tomando emprestada a idéia de Durkheim. Ao final do dia, contou Seu Udilo que, de tanto tocar e dançar debaixo da árvore de loro, o balde, no qual estava o vinho, encontrava-se mais cheio de grama do que da bebida. Seu Udilo situou-me quanto à narrativa: ela é anterior à construção e organização da Sociedade na Linha Val Feltrina e anterior à construção do salão. Embora o narrador não soubesse precisar a data, seus cálculos apontam uma idade aproximada de 40 anos.

67 O filó ou seron é uma forma de visita, na parte da noite, à casa de um dos vizinhos. Geralmente reúnem-se

nessa casa mais de uma família; “naquele tempo” nas noites de seron as mulheres faziam trança com a palha do trigo ou outro afazer e conversavam; os homens jogavam cartas e bebiam vinho. Em algum momento, quase sempre havia uma reza, podendo ser acompanhada por todos ou apenas pelas mulheres.

Eu: Quanto tempo faz que foi construído aqui [o salão]?

Seu Udilo: É, essa nova... ma que foi construída da... Há faz uns trinta anos, acho. Certo non ... Ma faz

uns trinta ano (...)

Eu: E a igreja também?

Seu Udilo: Noo. A ingreja, a ingreja faz cem ano majomeno. (...) Sim. Foi feito, foi feito os tijolo, tudo

feito aqui, pra construi. (...) Meus pai, meus bis..., os antigo, né?

Eu: Eles faziam os tijolos? (...)

Seu Udilo: Faziam os tijolo e fizeram, fizeram a capela (...) É, é a cavalo. Ela amassava o barro de

cavalo, né? Punha os cavalo pra amassa, pra faze, faze os tijolo... (...)

Complementando a idéia de divertimento através de festas, de jogos e do lúdico, temos o trecho citado abaixo, de Ancarani (1900 in ISAIA; SANTIN, 1990: 74), a respeito da sua descrição sobre a Quarta Colônia:

Com a máxima liberdade, os colonos comemoram suas festas nacionais, quase sempre por iniciativa das sociedades locais italianas, e as autoridades brasileiras intervêm com prazer nessas reuniões patrióticas. A vida social do colono é limitada às funções religiosas dos dias festivos. Nos domingos todos vêm, os de mais longe a cavalo, para assistir à missa da igreja paroquial: homens, mulheres, rapazes e meninos, conversando em vêneto entre eles, enchem a praça da igreja, de modo que dá a mesma uma idéia dos pequenos lugares do Vêneto. É nos domingos que, após a missa os colonos fazem as compras nas lojas vizinhas. A única diversão do colono veneto é o jogo delle bocce, acompanhado com freqüentes libações de vinho nacional: os velhos jogando tresette e os moços dançando ao som da gaita.

A descrição de Ancarani, no século XX, retrata a época inicial da colonização, mas já conta com alguma infraestrutura como a Igreja Paroquial (Matriz), já construída na sede de Silveira Martins, e com os colonos como possuidores de cavalos. Outro aspecto de relevância apontado, sob a ótica de Ancarani, é a comemoração de “festas nacionais” pela iniciativa das “sociedades locais italianas”. A criação deste tipo de Sociedade é resultante de iniciativas privadas com vistas a criar um centro de apoio aos imigrantes, o que as difere das Sociedades/Comunidades citadas anteriormente, que tem como base as capelas.

O aspecto mais relevante para este trabalho, a partir da citação de Ancarani, está na distinção entre a vida social, relacionada às atividades religiosas, e o divertimento nos dias de domingo. Esta perspectiva distintiva pode ser observada no cotidiano atual, ainda que as fronteiras entre sagrado e profano, estejam borradas, dissolvidas em práticas comuns a ambos. A sede comum a essas práticas é a capela, centro de relações e, aqui, de nossas atenções. Ainda, citando Ancarani (1900 in ISAIA; SANTIN, 1990: 74), temos a seguinte passagem, que permite avaliar a relação do imigrante com a nova terra e seus valores:

(...) Para quem conhece a fundo a psicose [psicológico] do colono italiano não se admirará deste seu culto aos templos religiosos; a religião foi sempre a grande força que guiou seu espírito nas várias tristezas, tornando-o fator abnegado da vida social econômica dessa região, e missionário do progresso desta sua nova Pátria de adoção.

Em geral, a igreja era a primeira construção erguida pelos imigrantes68. É motivo de orgulho para as gerações atuais poder dizer que seus antepassados participaram da construção da igreja (ou do salão) de sua localidade. Esse comportamento deve-se à importância que a instituição religiosa possui no o grupo, o que assinala os vínculos entre a devoção, o trabalho e também a comemoração festiva. Também é motivo de prazer para os descendentes narrar o modo como foram construídas as igrejas, em geral, com os tijolos fabricados artesanalmente por seus antepassados e a construção ter sido erigida com a força braçal. O que parece estar em jogo é a dimensão temporal das experiências, num contexto histórico e num fluxo de ação coletiva.

Uma das narrativas mais recorrentes e de maior significado entre os Silveirenses, é a construção da Igreja Nossa Senhora da Pompéia, cuja forma octogonal destaca-a das demais capelas. Essa igreja foi inteiramente construída por “braços imigrantes”, desde a fabricação dos tijolos que foram usados, até as altas paredes, desprovidas da junta de argamassa ou de qualquer outro material aglomerante. Conheci essa igreja por meio de Dona Santa e Seu Olinto, o casal que me acolheu, tão logo cheguei a Silveira Martins. Grandes admiradores e fiéis de Nossa Senhora da Pompéia, contaram-me toda história que deu origem à igreja, desde a doença que acometeu um senhor (Vicenzo Guerra) - que o levou a fazer uma promessa - até a graça da cura por ele alcançada. Vicenzo Guerra prometeu à Nossa Senhora da Pompéia que, sendo curado, edificaria a igreja. E assim, teve início a construção da Igreja Nossa Senhora da Pompéia. De modo geral, cada capela tem sua história e seu reconhecimento perante o grupo.

Figura 11- Igreja na Capela Nossa Senhora da Figura 12 – Ao lado da igreja, a olaria (desativada) Pompéia e Menina – Linha Pompéia onde os tijolos usados na construção foram fabricados.

68 Uma perspectiva comparativa pode ser apontada aqui, entre imigrantes italianos - chamados de “gringos” - e

imigrantes japoneses, diferenciando-os em seus aspectos valorativo-culturais. Nas palavras do professor André Luis Soares, estudioso da Imigração Japonesa no Rio Grande do Sul: “Enquanto a primeira coisa que os “gringos” erguem é uma igreja, os japoneses erguem uma escola”. Seminário do Local ao Global, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFSM, 03/12/2009.

Conheci Seu Guido, nos preparativos da Festa de São Valentim, na Linha Seis Norte, que me narrou a construção da igreja e do salão nessa localidade, diferenciando-as quanto ao tempo de construção e à sistemática para angariar fundos, que foram destinados a reformas:

Eu: Vocês que construíram o salão aqui? Seu Guido: Sim...

EU: Construíram tudo a braço?

Seu Guido: Ah, tudo a braço. É é, as perede os pedrero. Ah foi mexido cinqüenta vezes. (...) Primeiro

era de madera... era fechado de madera. (...) conforme o pessoal ia fazendo dinhero ia construindo. (...) Porque aqui a gente não pega dinhero da prefeitura pra faze... porque não é da prefeitura. É é da comunidade, da capela, né? pertence à capela.

Eu: E fazem com que?

Seu Guido: Ah com o dinhero da capela, quando faz festinha, quando sobra dinheiro, né? Dali enton

faz, né? (...)

Eu: E a igreja sempre (existiu)?

Seu Guido: Non. Foi reformada. Essa aí uma vez – a a - a slavina69, que diz o ditado, a slavina encheu

de tera até, até janela. (...) não tinha esse salon aqui, né, non tinha. A igreja fico tapada de terra dentro. Té tinha um sino, um sino pequeno, foi pára lá embaxo. Depois acharam ele enterado lá embaxo. (...) É de 41, a slavina foi de 41 [ano de 1941].

Eu: E fazia tempo já que tinha a igreja?

Seu Guido: Siiim. Faz tempo, faz tempo. Essa aqui é antiga, faz mais de cem anos. Sim, só depois foi

desmanchada. Fizeram uma mais grande. Era pequeninha. (...) Deve tá com cento e dez ano essa daí.

Figura 13 - Igreja da Capela São Valentin Figura 14 - Salão da Capela São Valentin. Linha Seis Norte. Ao fundo os morros que circundam o local.

É importante destacar, a partir da fala de Seu Guido, que as reformas da capela – salão, igreja e mesmo dos cemitérios, quando existem no espaço dessas capelas, dá-se através do dinheiro arrecadado nas festas. O que seu Guido estava a reforçar é a autonomia da capela. Os indivíduos que dela fazem parte nomeiam-se como “comunidade”, a qual é necessária, uma vez que não há um regime de associação que permita angariar fundos por meio de instituições como a Prefeitura, por exemplo. Outro aspecto importante a apontar é o tempo de existência da igreja, aproximadamente 110 anos, o que significa que foi construída por volta

69 Slavina, termo utilizado entre o grupo, significa um deslizamento de terra por ocasião de chuvas intensas,

de 1899, apenas dois anos após a chegada dos colonos italianos na região. Embora não tenha informações precisas quanto à data de construção da igreja, através dos relatos de vários moradores pude perceber referências a sua longa idade e sua reconstrução ao longo do tempo. Já o salão é obra posterior. Primeiramente foi construído um salão de pequeno porte e de madeira, matéria-prima mais acessível na época. Mais tarde foi incrementado através de extensões construídas em alvenaria, expandindo-se suas medidas. Por último foi reconstruído integralmente, desta feita todo em alvenaria, resultando num local com capacidade espacial bem maior que a anterior. Reformaram-se então as cozinhas e incrementaram a parte interna do salão, o que incluiu os banheiros, (antes, só havia do lado de fora, as chamadas latrinas). Essas mudanças foram fazendo-se necessárias sob o ponto de vista de alternativa estética entre os grupos ou afirmação de legitimidade da comunidade frente a outras, bem como para expansão do “negócio” das festas, ou seja, para poder acomodar maior número de pessoas e de forma melhor, à medida que as festas cresciam como investimento grupal.

Na linha Val Feltrina, Seu Udilo fala de seu trabalho na construção do salão:

Seu Udilo: Ahh... ajudei. Desde o começo ao o fim. (...) É. Do começo ao fim.

(...) É, todos dias vinha aqui, aqui ajuda. Não só eu, como toda linha, né? toda linha aqui.

Dentre as capelas que conheci, no total de seis, a única que ainda possui o salão construído em madeira encontra-se na Linha Val Feltrina. Embora a estrutura externa ainda seja de madeira, com longas e largas tábuas na posição vertical, no interior, o chão é revestido com piso e a cancha de bochas, com material sintético. Apenas a cozinha permanece o chão de terra batida.

Figura 15– Salão da Capela São Vitor e Santa Corona – Linha Val Feltrina.

O orgulho de ter participado da construção da capela é tão grande quanto ter uma em sua linha. Esse espaço serve para a realização das festas, principalmente as de cunho religioso. Também sedia reuniões e a diversão no final de semana, já que há nos salões em geral, estrutura para jogos de bochas e de cartas. A importância da igreja também ultrapassa a celebração, que geralmente se dá uma ou duas vezes por ano, por ocasião das comemorações em homenagem ao santo(a) padroeiro(a). Uma igreja na comunidade significa proteção

divina. Há capelas que possuem, pelo menos, dois padroeiros, dadas as disputas pela escolha. Teria colaborado para as desavenças o fato de cada indivíduo querer homenagear o padroeiro de sua localidade de origem na Itália. Como já citado, o pertencimento desses indivíduos na Itália dava-se mais a nível regional e não unificado nacionalmente.

A noção de que havia diferenças ou rivalidades entre os imigrantes também impõe a reflexão acerca da classificação destes enquanto grupo étnico homogêneo, quer dizer, da referência genérica a eles endereçada. Zanini (2006) capta este quadro de confronto dos emigrados entre si e destes na consideração das autoridades brasileiras, na qual eram todos, genericamente italianos. Isso desemboca numa dupla representação, do ponto de vista das autoridades brasileiras. Segundo essas, os imigrantes, fossem italianos ou de qualquer outra etnia, pertenciam a uma “cultura”, sendo agregados sob uma única denominação “os italianos”, mesmo que dentro do grupo houvesse distinções. O ponto entre os indivíduos do grupo era apenas o fato de serem imigrantes. Cabe a pergunta aqui a respeito de como hoje são vistos e vêem-se os descendentes do grande grupo de imigrantes. Falar de uma identidade não dá conta das múltiplas representações desencadeadas neste lento e contínuo processo. Falar de múltiplas identidades tampouco resolve o problema, incorrendo a generalizações apressadas. Nesse caso, sigo descrevendo tal grupo buscando interpretar os pequenos detalhes que me foram sendo demonstrados e que fazem, per se, a diferença e a identidade do grupo.

1.5.1 Trabalho e Religiosidade

Este que por ora é chamado de imigrante passou por um período de turbulências que o expôs, digamos, a uma situação fronteiriça e desta, partiu para uma nova construção identitária. Seria essa construção calcada em quê? Talvez construção não seja o termo mais apropriado, pois parece comportar algo de edificante. Talvez seja melhor pensar esta questão sob a perspectiva de composição. A composição de uma ideologia voltada para o lar, para a família, uma ideologia de crenças, de si mesmo e de um espaço de convívio, entre outros, baseia-se, afinal, em quê? Cabe investir na compreensão de como fatos historicamente selecionados interferiram e interferem num cruzamento de pessoas, espaços, sentimentos, subjetividades e interpretações, considerando-se que certos fatos são legitimados adquirindo

relativo poder sobre outros70 na produção de uma imagem do grupo bem como, compreender como esses fatos foram sendo assimilados e internalizados pelo grupo e pelos indivíduos.

Deste processo de composição, resultante da dialética entre o “ontem” e o “hoje”71 decorre uma série de fatores que definem o novo homem: o colono ou colonizador. Foi por meio de um processo contínuo que a imagem do imigrante-colono foi sendo composta e, como tentarei mostrar, continua sendo, à semelhança de um ciclo dialético:

A imagem do italiano imigrado é identificada invariavelmente pelos traços de um homem trabalhador, afeito a iniciativas rudes e corajosas, capaz de enfrentar situações de grande adversidade. Ele é apresentado como um agricultor habituado a trabalhos fortes e extremamente penosos. [...] O princípio do trabalho era tão básico que ele se tornou uma atitude ideológica. É por isso que o trabalho não é apenas uma força de produção, mas um critério de avaliação das pessoas. (SANTIN, 1986: