• Nenhum resultado encontrado

Festa-questão e festa-fato: uma leitura das festas de forró pé de estrada

4 O FORRÓ: uma referência cultural do nordeste e a peculiaridade do estilo pé de

4.1 Festa-questão e festa-fato: uma leitura das festas de forró pé de estrada

As festas tem se apresentado como um campo fortuito de pesquisa antropológica, para a realidade de Fortaleza tida como uma capital festeira, pois chegou a ocupar o título de segunda-feira mais animada do mundo embalada pelas festas da casa de show Pirata, a festa se constitui como uma característica inerente ao funcionamento da cidade, parte, em razão de ser uma cidade de forte apelo turístico, durante o dia as praias são o destino, durante a noite as festas ocupam a preferência de turistas e das/os fortalezenses. É nesse contexto que o forró ganha relevância como atração artístico-cultural da cidade e suas festas se tornam atrativos. Se o baião de Luiz Gonzaga foi “cartão-postal” (VIEIRA, 2012) do nordeste, o forró pé de estrada seria o cartão-postal de Fortaleza.

Pensar a festa como categoria de análise propõe sua compreensão em dois aspectos: “festa em perspectiva (festa-fato)” e “festa como perspectiva (festa-questão)”, (PEREZ, 2012). Aqui neste debate assumo a festa como um composto de elementos e significações, no qual a diversão, o ritual e o espetáculo, habitam seu universo.

Não é difícil reconhecer a presença da festa no cotidiano social, contudo sua conceituação representa um desafio, pois seu “potencial pode ser, e frequentemente o é, constantemente desgastado pelo esgaçamento de seu alcance heurístico” (PEREZ, 2012, p. 22). Tomando a observação de Guarinello (2001), a autora destaca:

[…] festa é um termo vago, derivado do senso comum, que pode ser aplicado a uma ampla gama de situações sociais concretas. Sabemos todos, aparentemente, o que é uma festa, usamos a palavra no nosso dia a dia e sentimo-nos capazes de definir se um determinado evento é, ou não uma festa. Contudo, essa concepção quase intuitiva de festa choca-se, frequentemente, com a diversidade de interpretações de um mesmo ato coletivo: o que é festa para uns, pode não ser para outros (GUARINELLO apud PEREZ, 2012, p. 22).

Com base nas colocações de Guarinello (2001), a festa pode assumir vários significados para sujeitos diversos, uma celebração religiosa pode assumir o sentido de festa para um devoto da religião em questão, diferentemente de um forró que para ele poderá ter uma conotação mundana de pecado, entre outras adjetivações. A relação inversa também pode ocorrer, uma celebração religiosa não expressar o sentido de festa para uma pessoa

frequentadora das festas de forró. Seus sentidos são “fluídos, negociáveis, contestáveis” (GUARINELLO apud PEREZ, 2012, p. 23).

Perceber a “festa como perspectiva”, festa-questão como denomina Perez (2012), é um movimento que caminha na contramão da antropologia clássica, na qual a mesma foi tomada como “objeto/fato”. A festa-fato abre espaço para classificações, relacionadas com algo que lhe é exterior, um “epifenômeno”. Festa-questão propõe que os estudos acerca do tema ultrapassem algumas reduções a que o conceito foi submetido.

Tendo Durkheim e Mauss, sido importantes por suas “reflexões seminais sobre festa”, Perez (2012), aponta os limites dessas reflexões, essencialmente por tê-las congelado no tempo e no espaço, reduzido-as a “uma data no calendário”, “uma efemeridade temporal extraordinária, sem maiores implicações para a vida social”, além de estabelecer a festa como “uma manifestação coletiva característica de um determinado tipo de sociedade e/ou grupo, geralmente de fraca diferenciação social, onde impera a religião como eixo organizador da existência humana em coletividade” (2012, p. 25).

Para Perez, à luz de Duvignaud (1984), Durkheim ao tratar da efervescência da festa a reduz como uma “exteriorização dramatizada da substância social, dispersa e difusa na vida quotidiana, uma vez que, mesmo correspondendo a um momento especial no qual a vida coletiva é mais intensa, permanece inteiramente integrada à sociedade” (PEREZ, 2012, p. 25). Sob esta perspectiva o dinamismo da festa é compreendido como algo que lhe é exterior, quando na verdade essa dimensão lhe é própria.

Essa condição de epifenômeno ao qual a festa é situada e conceituada a reduz. Festa não deve ser pensada apenas para referir algo que lhe exterior, ao contrário dessa perspectiva festa deve ser percebida “menos como um problema de substância73

e mais como uma questão de contraste74

” (PEREZ, 2012, p. 34); ser “um mecanismo”, um “operador de ligações”, no qual se abrem as portas do imaginário.

Para Perez (2012) festa não se reduz à vida coletiva esta imbricada ao “desejo”, ao inaceitável fora de seu mundo, do “imprevisível”, do “indeterminado”. Sob esse olhar, utilizo

73

DA MATA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

74

as contribuições de Perez (2012) para pensar as festas de forró pé de estrada. Entretanto, o que me diferencia e em alguns momentos me distancia da festa-questão, é a busca por compreender as percepções e as análises das interlocutoras da pesquisa acerca das festas de forró. Por essa razão, não abandono por completo à possibilidade de compreender que determinadas expressões da festa a coloquem em perspectiva (festa-fato), buscar articular as duas possibilidades é de certo modo reconhecer o caráter híbrido das negociações de gênero nas festas de forró pé de estrada.

As festas de forró pé de estrada (compreendendo aqui não só a música, a dança, as letras, os artistas ou público – mas toda essa gama de elementos em constante relação) não se encontram numa relação direta de determinação ideológica da macroestrutura, contudo, não há por parte dos sujeitos que a fazem uma suspensão completa de seu cotidiano e das relações de socialização que carregam. O que porventura me leva a compreender que sendo a festa uma construção coletiva na qual, sujeitos movidos por vários interesses interferem no dinamismo da festa, ela assuma em alguns momentos o caráter de festa-fato, no qual o mundo exterior que não a determina, por diversas vezes ressona dentro de seus espaços.

O imaginário de quem vivencia o cotidiano das festas de forró sofre como ressalta a autora uma liberação frente às regras e normas que figuram na sociedade, entretanto, são as regras que lhe são 'caras', e, portanto cada sujeito decide quais delas devem permanecer mesmo durante a festa, que impõem limites a certas situações desenroladas no decorrer da festa. Relações negociáveis, mesmo sob uma conjuntura do indeterminado e do imprevisível.

Realizar esse exercício teórico-metodológico de articular festa-fato e festa-questão sem recair num sincretismo teórico ou em uma análise contraditória é o desafio que assumo e, por tratar-se de um desafio, incorro no risco de superá-lo por vezes e/ou de me limitar em suas fronteiras.

Destarte, parto para a estrada do forró com as entrevistadas da pesquisa, na qual festa, forró, gênero e violência dialogam com a teoria e o campo, na busca pelas elucidações acerca dos discursos e das vivencias nas festas de forró pé de estrada em Fortaleza. O convite é para que de malas prontas leitoras/es possam ingressar nessa viagem com as forrozeiras pesquisadas.