• Nenhum resultado encontrado

Fig 21 Joaquim Torres Garcia, América invertida, 1943,

47 x 22 cm, tinta, desenho e papel. Fonte : Museu Picasso26 .

Três das imagens presentes no mapa decorrem de objetos que foram encontrados no meu quintal, depois escaneados e digitalizados: uma folha desgastada, uma espinha de peixe e uma borboleta morta. Curiosamente só agora, quando passei a me dedicar em pensar sobre cada imagem, é que me dei conta de que todas são o resultado de algum tipo de decomposição, o que restou depois que a vida se foi. A espinha do peixe – provavelmente trazida por algum gato – foi o que sobrou de uma criatura que um dia percorreu livremente os mares. A folha foi o que restou do galho de uma árvore e a borboleta seca guardou seus dias de leveza. Folhas secas, borboletas secas, o peixe seco e a América Latina.

A outra figura que aparece no canto inferior direito é de alguém em queda – situação recorrente em sonhos –, uma imagem recortada de algum anúncio

26 Disponível em: https://www.museopicassomalaga.org/exposiciones-temporales/joaquin-torres-garcia . Acesso em: 3 de março, 2018.

publicitário e redesenhada, no contexto do trabalho é alguém cujo modo de existência é a queda. Quem cai pode se machucar ou até mesmo morrer, a queda gera consequências e sequelas, mas e quem está em eterna queda? É quase um Prometeu com seu fígado devorado e regenerado diariamente, mas, neste caso, o que o consome é a ansiedade do impacto num fundo que nunca chega. A América Latina segue melancólica com a espinha do peixe sem mar, com folha e a borboleta seca, no mar azul desbotado.

Quando estava terminando de escrever este texto resolvi incluir camuflados, em meio aos caracteres que compõem o mapa, trechos de um poema de Pablo Neruda – La lámpara em la tierra – que há tempos havia lido:

Nadie pudo, recordarlas después: el viento las olvidó, el idioma del agua fue enterrado, las claves se perdierom o se inundaran de silencio o sangre. Tierra mía sin nombre, sin América, estambre equinoccial, lanza de púrpura, tu aroma me trepó por las raíces hasta la copa que bebía, hasta la más delgada palabra aún no nascida de mi boca. (NERUDA, 2011, p. 107-108)

3.3.2 ROSAS E ERVAS DANINHAS

“The Hunting of Snark” (A caça ao Snark) é um longo poema publicado por Lewis Carroll em 1876 que conta a caçada épica feita por uma trupe bizarra composta de nove tripulantes e um castor. Conhecido como o autor de Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do Espelho (1871), Lewis Carroll – o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson –, professor de matemática na Christ Church, em Oxford, é consagrado por suas incursões no território do non sense e do fantástico.

O poema fala de uma expedição que navega com o objetivo de capturar uma criatura misteriosa chamada Snark. Os tripulantes têm ocupações que começam com a letra “B” bellman (sineiro) que é o capitão, baker (padeiro), banker (banqueiro), butcher (açougueiro) e assim por diante. Com a ajuda insólita de um beaver (castor) partem em busca do Snark. (CARROL, 1985)

Ninguém conhece e nunca viu um Snark, e ainda assim a aventura continua em meio a muitos comportamentos inusitados e situações absurdas.

O poema tem ilustrações de Henry Holiday (1839-1927), artista, escultor, designer de vitrais e ilustrador de livros. Holiday desenhou nove ilustrações para o livro, sendo que a décima ilustração representando um Snark foi sumamente rejeitada por Carroll, que preferiu que a criatura permanecesse inimaginável.

No início da viagem o capitão apresenta um mapa para a tripulação que brada em alto e bom som: “Abaixo Mercator, Pólo Norte e Equador, Eixos, Meridianos, Linhas Tropicais! Bradou o Capitão. E a tripulação: “Simples símbolos são convencionais.” (CARROLL, 1985, p. 9). Ainda, segundo a tripulação entusiasmada, “[...] ele nos trouxe o que há de melhor – Um branco perfeito e absoluto! ”27 (CARROLL, 1876, p. 16, tradução nossa).

O mapa que daria a localização da criatura, que ninguém sabe ao certo como é e que nunca foi vista, não poderia ser mais adequado, pois não remete a lugar algum, a não ser o mais perfeito e absoluto branco ou o vazio. Nas margens vemos os pontos cardeais Norte, Leste, Oeste e indicações cartográficas aleatórias: Equador, Equinócio, Zona Tórrida, Nadir, Polo Sul, Polo Norte Longitude, Latitude, Zênite e Meridiano, um perfeito mapa absurdo.

Muito se comentou sobre esse trabalho de Carroll e talvez seja esclarecedor o que ele disse em uma carta escrita pouco antes de sua morte:

Tenho receio de não significar nada além de um absurdo! Mas você sabe que as palavras podem ir muito além do que pretendemos expressar, assim o livro inteiro pode significar mais do que eu quis dizer, quaisquer que sejam os significados atribuídos a ele fico feliz em aceitá-los. Dentre eles o melhor que vi é o que diz que o livro é uma alegoria sobre a busca da felicidade. 28 (CARROLL, apud Cornell University, PJ Mode Collection of Persuasive Cartography Cartography, colector´s notes, tradução nossa)

27 “[…] that he's bought us the best” - A perfect and absolute blank!”

28 "I'm very much afraid I didn't mean anything but nonsense! Still, you know, words mean much more than we mean to express when we use them: so a whole book ought to mean a great deal more than the writer meant. So whatever good meanings are in the book, I'm very glad to accept as the meaning of the book. The best that I've seen is . . . that the whole book is an allegory on the search after happiness. Disponível em: https://digital.library.cornell.edu/catalog/ss:19343175. Acesso em 26 de junho, 2019.

A felicidade é o Snark que buscamos, mas que não sabemos bem ao certo o que é, pois nunca foi encontrada. Assim, um mapa que remete a lugar nenhum é o mais indicado: um vazio, um branco perfeito e absoluto, porém repleto de possibilidades.

Fig. 22 Lewis Carroll, The hunting of the snark,

Ocean-Chart (The Bellman’s Map).29 Fonte: Cornell University, PJ Mode Collection of Persuasive Cartography, colector’s notes.

Esse “mapa de lugar nenhum” inspirou o trabalho dos artistas conceituais britânicos Terry Atkinson (1939) e Michael Baldwin (1945), do grupo Art & Language, que realizaram uma série de trabalhos influenciados pelo mapa publicado no livro de Carrol. Dentre eles está o “Mapa do deserto do Sahara após Lewis Carroll em 1967”, e talvez o mais notório deles, o Map to not indicate: Canada...Straits of Flórida.