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figuras-arquétipo em “Terra sem Acalanto”

Capítulo 3: Práticas do ator-dramaturgo no espetáculo “Terra sem Acalanto”

3.2 o ator-dramaturgo e a tradução de impulsos físicos em imagens

3.2.1 figuras-arquétipo em “Terra sem Acalanto”

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O conceito de “arquétipo” foi introduzido no processo pela própria diretora Tatiana Henrique. Compreendi, ao longo da experiência, que o conceito auxiliava na interface dos elementos não-racionais que emergiam nas nossas percepções psicofísicas quando em jogo. E, posteriormente, descobri que o próprio Grotowski era adepto desse conceito junguiano em seus textos teóricos.

Destilar do texto dramático ou plasmar sobre a sua base o arquétipo, isto é, o símbolo, o mito, o motivo, a imagem radicada na tradição [...]. O arquétipo – como definido acima – é uma forma simbólica de conhecimento do homem sobre si mesmo, ou – se alguém preferir – de ignorância. Revelar por parte da encenação o arquétipo, a sua substância real, a sua essência, nos aproxima de fato do efeito que Broniewski caracterizou como “penetrar a fundo com a voz e com o corpo no conteúdo do destino humano”. (2007, p. 50 e 51).

O trecho acima é do texto “A possibilidade do Teatro”, em que Grotowski descreve procedimentos de trabalho com arquétipos na dramaturgia criativa, e sugere como agir sobre um texto concreto. “Penetrar a fundo com a voz e o corpo” no texto, para o pai do teatro pobre, pode ser entendido como uma incorporação (no ator) de arquétipos contidos na narrativa (texto), como conteúdos profundos, da ordem do inconsciente coletivo.

O significado do termo archetypus fica sem dúvida mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e o conto de fada. [...] O fato de que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma foi negado de modo absoluto até os nossos dias. O homem primitivo não se interessa pelas explicações objetivas do óbvio, mas, por outro lado, tem uma necessidade imperativa, ou melhor, a sua alma inconsciente é impelida irresistivelmente a assimilar toda a experiência externa sensorial a acontecimentos anímicos. (JUNG, 2012, p. 14)

Para nós, que não tínhamos o texto prévio, a incorporação de arquétipos se processou no próprio treinamento físico, diante do argumento dramatúrgico apresentado por mim, e passamos a ler como arquétipos as figuras que porventura se organizavam em nossa corporeidade, definindo com maior qualidade algumas atmosferas que julgávamos potentes, tanto no rasabox, quanto no ordinário-extraordinário, já podendo ler em nossos corpos os materiais que surgiram ao longo da repetição desses exercícios.

Dessa forma, os centros de rotação em vórtice, nos fluxos criativos da sala de trabalho, com o tempo deixaram de ser os estados emocionais e as partituras dilatadas (extraordinárias) e passaram a ser as figuras arquetípicas. A partir disso, em resposta ao treinamento inicial, me foi possível propor cinco “figuras-arquétipo” próprias à nossa criação, sobre as quais tratarei a seguir.

Essas figuras-arquétipo representariam os atingidos pelo rompimento da barragem nessa etapa do processo, não em termos específicos, como se cada uma tivesse uma biografia

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da ordem do sujeito, mas em termos amplos, como “entidades” capazes de fazer referências em sentido coletivo, tanto sozinhas como na relação entre uma e a outra. Dessa forma, cada figura-arquétipo trazia junto consigo uma atmosfera específica que contrastava com as demais.

Sendo assim retornei ao contexto da trama ficcional já esboçada, para ampliar as relações de ordem dramática com os personagens-base. Abri o delineamento narrativo inicial para a ideia de que cada uma dessas cinco figuras, quem em contraste às duas bases cabe chamar de “personagens-arquétipos”, teriam sido enterradas pelo coveiro em troca de um “objeto” que elas escolheram proteger no momento da tragédia, de modo que, após serem enterradas vivas por ele, chegariam às suas redenções. Dessa forma, cada objeto de valor se tornou um símbolo para o personagem-arquétipo.

São eles, a (1) velha dos espelhos, a (2) moça dos sinos, o (3) homem dos ossos, o (4)

senhor dos ninhos e o (5) menino das bonecas.

Assim que apresentei esses cinco personagens-arquétipos, a diretora reorganizou nosso procedimento criativo. De modo que o foco passaria a ser a experimentação devidamente separada de cada um deles como imagem, tanto para mim, quanto para meu companheiro de cena. Além disso, as bases “Zé Cabeça” e “coveiro” seriam também compostas e alimentadas pelas cinco novas composições.

Propomos para a direção a construção de painéis iconográficos22 de todas essas figuras. Assim, faríamos, nós atores, o painel específico dos nossos personagens-base e dobraríamos os painéis dos personagens-arquétipos. Em contrapartida, a diretora solicitou que escolhêssemos canções, elementos de figurino e objetos concretos, que pudéssemos levar para a sala de trabalho, referentes a cada um dos cinco arquétipos.

Algumas escolhas e questões da ordem da encenação do espetáculo cabem ser apresentadas nesse momento, a fim de elucidar a presença de elementos que vão aparecer nas descrições das etapas a seguir, mas cujos processos criativos não foram pormenorizados anteriormente, por serem paralelos aos procedimentos da função ator-dramaturgo, aqui recortada.

Dentre os objetos concretos trazidos e experimentados antes da proposição dos personagens-arquétipos, destaco os “sapatos”. Entendemos a potência semiótica desse elemento para a poética do nosso trabalho, que dizia sobre a “presença-ausente” do seu dono,

22 O painel iconográfico é uma ferramenta para se projetar uma composição, e tem origem no design. Um instrumento de linguagem visual que utiliza imagens para representar um determinado tema, tendo ou não subtemas, de modo a auxiliar o artista ou grupo de artistas a criar o projeto com base em composições do painel.

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a relação com o chão, o status social, e o diálogo com imagens icônicas23 de acúmulo de sapatos.

Dessa forma, a imagem alimentou muito a primeira parte do trabalho, de modo que fizemos uma campanha de arrecadação de pares usados e já tínhamos muitos deles para a experimentação na etapa de treinamento. Em segundo momento, começamos a rejeitar a presença desse elemento de forma concreta da encenação e, posteriormente encontramos seu lugar.

Uma segunda questão é que, durante o processo criativo, a companhia Sala de Giz mudou de sede, rumo a um espaço maior que permitia a realização da nossa futura encenação. o novo endereço passou a ser um mezanino, que dispõe de dois espaços, um no primeiro andar, mais amplo e com acesso à rua, e outro no segundo andar, uma sala menor. A possibilidade de deslocar o público no espaço de encenação determinou algumas escolhas na dramaturgia.

Feitas essas considerações, apresentarei análises específicas a seguir, a partir dos cinco personagens-arquétipo, de trechos selecionados da construção do texto “Terra sem Acalanto” em relação à minha experiência poética-corporal de criação dos personagens- arquétipo os quais corporifico no espetáculo. Dessa forma, destaco e apresento apenas trechos específicos da dramaturgia resultante.

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