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2 AQUISIÇÃO DO SISTEMA VOCÁLICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

2.4 Fikkert (2005)

Apesar das diferenças do sistema vocálico do Português Europeu, doravante PE, com o PB, vale a pena termos em mente a proposta de aquisição de Fikkert para esta língua.20

Fikkert nos mostra que as sete vogais orais em posição tônica da língua reduzem-se a quatro vogais em posição átona: /i, e, ɛ, u, o, ɔ, a/ ! /i, ɐ, u, ɨ/. A autora toma como objeto de discussão em seu estudo o processo de redução vocálica em sílabas átonas, pelo qual /a/ manifesta-se como [ɐ], /e, ɛ/ manifestam-se como [ɨ], /o, ɔ/ manifestam-se como [u] e /i, u/ não mostram alternância, conforme exemplos em (19) abaixo:

20 O sistema vocálico do PE é composto de 7 vogais tônicas /i, e, ɛ, a, ɔ, o, u/ e 4 vogais átonas [i, u, ɐ, ɨ]

(19) a. m[a]la ! m[ɐ]linha b. s[ɛ]la ! s[ɨ]lar c. m[e]do ! m[ɨ]Dinho d. m[ɔ]da ! m[u]dista21 e. l[o]bo ! l[ʊ]bista f. l[i]vro ! l[i]vrinho g. t[u]bo ! t[u]binho

Com base nesse processo, Fikkert propõe a divisão do inventário vocálico do PE fazendo uso dos traços de ponto - labial, dorsal e coronal - e dois níveis de altura– alto e baixo - além de RTR. Fazendo uso da HCT (DRESHER, 2003, 2009), e de traços monovalentes e da subespecificação do traço coronal, Fikkert defende a seguinte representação para as vogais do PE (cf. Figura 7):

dorsal [a, ɐ]

[i,e, ɛ, ɨ]

/ʊ/ RTR /ɛ/ /i/ alto /i/ /ɨ/

bx [ɔ, o] [u, ʊ]

RTR /ɔ/ /o/ alto /u/

[i, e, ɛ, ɨ, ɔ, o, u, ʊ]

labial [ɔ, o, u, ʊ ] bx /a/ /ɐ/

bx[ɛ, e] [i, ɨ]

Figura 7 - representação do sistema vocálico do PE de acordo com Fikkert (2005)

Como podemos observar na representação acima, a autora atribui o traço [alto] às vogais /i/ e /u/ e não especifica alto para /ʊ/ e /ɨ/; já o traço [RTR] é especificado apenas para /ɔ/ e /ɛ/, e [baixo] para /a, ɔ, o, ɛ, e/. Quanto à ponto, o traço [dorsal] é especificado apenas para [a] e [labial] apenas para [ɔ, o, u, ʊ], enquanto que /i, e, ɛ, ɨ/ são subespecificadas.

Assumindo que as vogais tônicas perdem traços em sílabas átonas, a autora defende que o processo de redução vocálica pode, portanto, ser explicado através da perda do traço [baixo], bem como [RTR] dele dependente, enquanto que as vogais /i, u/ se mantêm inalteradas.

Com relação à aquisição das vogais do PE, a proposta da autora é a de que os segmentos recebem inicialmente a especificação de ponto de articulação: dorsal > coronal > labial, e só depois que essa distinção estiver estabelecida é que os traços de altura são especificados. Nos dados analisados, Fikkert observa que as crianças iniciam o processo de aquisição produzindo as tônicas [a] e [ɐ] variavelmente, o que indica que os traços de altura não estão ainda estabelecidos. Nesse estágio tem-se, portanto, a distinção entre o que é dorsal [a, ɐ] e o que não é dorsal [e, ɛ, i, ɨ, o, ɔ, u, ʊ]. Em seguida, a criança distingue as coronais das labiais, resultando em dois grupos, /e, ɛ, i/ e /o, ɔ, u/, cujos segmentos também ocorrem variavelmente por falta de especificação de altura. A autora salienta, ainda, que as coronais começam a ser produzidas antes do que as labiais por serem subespecificadas quanto à ponto e, por isso, constituírem segmentos mais simples na representação lexical. Somente após as distinções de ponto estarem especificadas, é que as vogais baixas se distinguem daquelas que não recebem especificação de [baixo], resultando na seguinte configuração: [a] vs. [ɐ], [ɔ, o] vs. [u, ʊ], [ɛ, e] vs. [i, ɨ]. Essa distinção é seguida da aquisição do contraste entre altas e não- altas: [u] vs. [ʊ] e [i] vs. [ɨ]. Por fim, as vogais baixas são adquiridas a partir da distinção entre [RTR] e não [RTR]: [ɛ] vs. [e] e [ɔ] vs. [o]. Uma evidência apresentada por Fikkert para a aquisição tardia da altura vocálica em relação ao ponto de articulação é que as crianças por ela analisadas raramente cometem erros no que diz respeito ao ponto de articulação das vogais, enquanto que erros relacionados à altura vocálica são mais frequentes. Ou seja, pelo fato de a criança ainda não ter adquirido a altura vocálica nesses primeiros estágios é que ocorre a variação entre os segmentos que compartilham o mesmo ponto vocálico. A aquisição precoce do ponto de articulação pode ser devida, segundo Fikkert (op. cit.) a uma generalização que as crianças adquirindo o PE podem extrair ao observar a distribuição das vogais na língua: o ponto de articulação é mantido independentemente da posição silábica do segmento vocálico, enquanto os traços de altura sofrem flutuações a depender da posição da sílaba em relação à palavra (pretônica, tônica, postônica).

Vemos que, diferentemente de Rangel (2002) e Matzenauer & Miranda (2009), na proposta de Fikkert a criança especifica somente ponto no primeiro estágio, enquanto adquire altura aos poucos nos estágio subsequentes. E sem a especificação de altura, os sons

da língua alternam entre si, mas sem violar ponto. Isso explicaria, por exemplo, a substituição encontrada nos dados de Rangel ([ni’ne] ‘nenê’, por exemplo). Mas veja que a proposta de Fikkert não explicaria a substituição [‘pa] ‘pé’ encontrada nos dados de Matzenauer & Miranda, pois, uma vez que /a/ e /ɛ/ recebem o ponto no primeiro estágio, e se distanciam na hierarquia por esse traço, tal alternância não seria mais possível na gramática da criança.

2.5 Resumo do capítulo

Neste capítulo discutimos duas análises de aquisição das vogais do PB, a de Rangel (2002), e a de Matzenauer & Miranda (2009). A primeira supõe que as vogais do PB sejam adquiridas à medida que os traços de altura integram o sistema. Entretanto, apesar de Rangel propor que os traços de ponto [dorsal], [coronal] e [labial] sejam ligados no primeiro estágio a fim de distinguir /a, i, u/, a autora lança mão da proposta de que há sub-estágios na aquisição das médias-altas /e, o/ e médias-baixas /ɛ, ɔ/ em que o ponto de articulação é novamente ligado a fim de poder explicar a aquisição de /e/ antes de /o/ e de /ɔ/ antes de /ɛ/. Estes sub-estágios são criados para dar conta de dados que se distanciam em apenas 1 mês, e não têm nenhuma motivação teórica, ao contrário dos dados. Outra questão que levantamos em relação à Rangel é que, por fazer uso de uma geometria de traços hierarquicamente pré- estabelecida e universal, a autora tem de fazer uso da subespecificação de traços para dar conta da ordem de aquisição da vogais por ela encontrada. Além disso, vimos que ao assumir subespecificação de traços, o modelo adotado pela autora não consegue dar conta de alternâncias do tipo [ni’ne] ‘nenê’. Já Matzenauer & Miranda (2009), fazendo uso da especificação de altura proposta por Lee (2003), propõem que o ponto de articulação seja ligado no primeiro estágio e que a estabilização dos segmentos vocálicos no sistema da criança dependa da especificação dos traços de altura que serão, nesse primeiro estágio, monovalentes: [baixo] e [alto], o que resulta, para as autoras, na especificação inicial de /a, i, u/. Quanto a essa proposta, questionamos qual a motivação encontrada pela criança para trazer à representação os traços de altura monovalentes, uma vez que a distinção entre /a/, /i/ e /u/ já se dá por ponto de articulação. Ou seja, qual papel os traços de altura teriam na primeiro estágio de aquisição? Além desses estudos conduzidos para os dados do PB, trouxemos também a proposta de Fikkert (2005) para o PE, segundo a qual os segmentos vocálicos da língua recebem inicialmente a especificação de ponto de articulação: dorsal >

são especificados. Para a autora, o fato de as coronais serem produzidas antes das labiais ocorre por elas serem subespecificadas quanto ao ponto, apresentando, portanto, uma representação lexical mais simples. Fikkert também nos chama a atenção para as flutuações no sistema decorrentes da subespecificação de ponto. Para ela, as substituições encontradas nos dados analisados não afetam o ponto de articulação, indicando, portanto, que esse traço seja especificado desde muito cedo no processo de aquisição das vogais do PE. Vimos também que a proposta de Fikkert dá conta das alternâncias encontradas nos dados de Rangel, pois se no primeiro estágio apenas ponto está estabelecido, é de se esperar que coronais alternem entre si, e o mesmo para labiais e dorsais. Entretanto, vimos que a proposta de Fikkert não explica a substituição [pa] ‘pé’ encontrada por Matzenauer & Miranda, [‘pa] ‘pé’, pois nesse caso, /a/ e [ɛ], estariam desde o começo em ramificações diferentes. E por fim, vimos Miranda (2013) segundo a qual os segmentos vocálicos são adquiridos com base no funcionamento dos mesmos na língua. De acordo com a autora, devemos esperar que os segmentos que sofrem processos fonológicos na língua devem ser adquiridos mais tardiamente pela criança.

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