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2 AQUISIÇÃO DO SISTEMA VOCÁLICO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO

2.1 Rangel (2002)

Valendo-se da Geometria de Traços de Clements&Hume (1995), Rangelpropõe que a criança constrói os segmentos vocálicos aos poucos, adquirindo linhas de associação que são responsáveis pela aquisição dos traços de Ponto de V e Nó de Abertura. Através de duas análises, uma transversal de 72 crianças e outra longitudinal de 3 crianças, durante o período de 1;0 e 1;11, a autora propõe que a criança tenha todos os pontos já adquiridos em um primeiro estágio de aquisição das vogais do PB, enquanto adquire o Nó de Abertura dos segmentos vocálicos gradualmente. Para Rangel, no primeiro estágio a criança já tem /a, i, u/ no seu sistema como resultado da especificação de ponto e de [±aberto1] apenas.

Entretanto, entendemos que a aquisição desses segmentos só é possível se os traços de [aberto2] e [aberto3] também forem especificados na representação proposta por Clements (1989, 1991) e Wetzels (1992) (cf. Quadro 1) e adotada pela autora. Esse é um dos problemas em se assumir uma geometria de traços cuja especificação é pré-estabelecida. Ou seja, para o PB, a vogal /i/, por exemplo, recebe a seguinte especificação de traços: [coronal, -aberto1, -aberto2, -aberto3] (WETZELS, op. cit). O problema que colocamos aqui é: como a criança tem a vogal /i/ lexicalizada com apenas [coronal, -aberto1], por exemplo, como propõe Rangel? Ao nosso ver, uma das vantagens de se usar um modelo no qual a hierarquia é construída, e varia de sistema para sistema, tal como a HCT, é justamente essa: o número de traços especificados para representar um segmento dependerá do número de fonemas no

dois segmentos no seu inventário fonológico, apenas a especificação de um traço bastará para que ela tenha os dois segmentos lexicalizados, independentemente da especificação que esses segmentos recebem na língua.

Além disso, se assumirmos a especificação de [aberto1] como o primeiro contraste feito entre as vogais, além do ponto de articulação, teríamos que constatar no sistema da criança três grupos de vogais: a dorsal /a/, as coronais /i, e, ɛ/ e as labiais /u, o, ɔ/, sendo que a falta da aquisição do contraste de altura entre as coronais entre si e das labiais entre si implicaria em flutuações do tipo [e ~ i ~ ɛ] de um lado, e [o ~ u ~ ɔ] de outro. Entretanto, a autora apresenta em sua análise que a criança tem no primeiro estágio somente as vogais /a, i, u/ especificadas. E para dar conta do fato de a especificação de [aberto1] não trazer também [e, ɛ] e [o, ɔ], Rangel assume que esses segmentos sejam subespecificados nessa camada. Lembramos que [aberto1] é a camada que distingue as átonas finais, e, uma vez que as vogais médias altas e baixas não fazem parte desse subsistema, Rangel opta por dispensar a especificação desse traço para esses segmentos. Com isso, a formalização do grau de abertura e ponto de articulação do primeiro estágio na proposta de Rangel é como no Quadro 5 abaixo: a vogal /a/ é especificada com [dorsal, +aberto1], a vogal /i/ é especificada com [coronal, -aberto1], e a vogal /u/ é especificada com [labial, -aberto1]. Já as vogais /e, ɛ/ e /o, ɔ/ não teriam especificação alguma para [aberto1].

Uma última questão que se coloca aqui é: qual seria a motivação de se contrastar /a, i, u/ pelo traço de altura ([aberto]) nesse primeiro estágio, se a especificação de ponto já contrasta esses segmentos?

Quadro 5: 1o. estágio na aquisição das vogais – Rangel (2002)

Abertura Ponto

Dorsal Coronal Labial

/a/ /i/ /e/ /ɛ/ /u/ /o/ /ɔ/

[aberto1] + - -

(adaptado de RANGEL, 2002, p.145)

No segundo estágio, Rangel propõe que a criança especifique [+aberto2] e com isso adquira em seu sistema as vogais /e, o/. Entretanto, se estivermos fazendo uso da representação proposta por Clements (op. cit.) e Wetzels (op. cit.), a especificação de [aberto2] traria ao sistema não só as médias-altas /e, o/, mas também as médias-baixas /ɛ, ɔ/

pois ambas classes são especificadas com [+aberto2]. A distinção entre esses quatro fonemas só se daria com a especificação de [aberto3], então, neste momento, teriam de ser produzidos de forma alofônica [e ~ ɛ] e [o ~ ɔ].

Rangel faz uso, contudo, de uma representação subespecificada de [aberto2] para as médias-baixas /ɛ, ɔ/. Ou seja, já que essas vogais só contrastam na terceira camada, somente o traço [aberto3] seria relevante para distingui-las das outras vogais. Com isso, o segundo estágio é composto apenas das altas /i, u/, das médias-altas /e, o/ e da vogal baixa /a/. No Quadro 6 abaixo, veja que /e, o/ não precisam da especificação de [aberto1], e /ɛ, ɔ/ não precisam de especificação de [aberto1, aberto2], de acordo com a autora, e, como neste momento somente [aberto1] e [aberto2] estão especificadas, /ɛ, ɔ/ não fazem parte do sistema ainda:

Quadro 6: 2o. estágio na aquisição das vogais do PB – Rangel (2002)

Abertura Ponto

Dorsal Coronal Labial

/a/ /i/ /e/ /ɛ/ /u/ /o/ /ɔ/

[aberto1] + - -

[aberto2] + - + - +

(adaptado de RANGEL, 2002, p.145)

No terceiro e último estágio, a especificação de [aberto3] é trazida para a representação, e com isso a criança tem o sistema de sete vogais adquirido, como ilustra o Quadro 7:

Quadro 7: 3o. estágio na aquisição das vogais do PB – Rangel (2002)

Abertura Ponto

Dorsal Coronal Labial

/a/ /i/ /e/ /ɛ/ /u/ /o/ /O/

[aberto1] + - -

[aberto2] + - + - +

[aberto3] + - - + - - +

Além dos estágios expostos acima, Rangel também argumenta a favor da existência de subestágios a fim de explicar a não simultaneidade na aquisição de alguns segmentos com o mesmo traço [aberto] encontrada por ela nos dados. Desse modo, ao verificar que a maioria das crianças analisadas em ambos estudos, transversal e longitudinal, tem /i/ no sistema mas não tem /u/ em um determinado momento, a autora conclui que a vogal alta coronal /i/ é adquirida antes da alta labial /u/, fazendo com que o primeiro estágio seja dividido em três subestágios definidos pelo ponto de articulação: (1a) com a aquisição da dorsal /a/; (1b) com a aquisição da coronal /i/; e (1c) com a aquisição da labial /u/. No segundo estágio, Rangel também propõe que a coronal /e/ seja adquirida antes da labial /o/ apesar de as evidências não pareceram tão sólidas: “5 crianças do estudo transversal apresentam a vogal /o/ sem terem a vogal /e/ e 5 tinham /e/, mas não tinham /o/" (p. 146). A decisão da autora é feita, então, com base nas análises longitudinais: enquanto duas crianças já iniciam o estágio sem fazer subestágios, ou seja, iniciam o estágio já com todas as ligações concluídas, uma inicia somente com a coronal /e/ e só depois faz a ligação de /o/. Com isso, o segundo estágio é subdividido pela autora em dois subestágios: (2a) com a aquisição da coronal /e/; e (2b) com a aquisição da labial /o/. Por último, no terceiro estágio, todos os sujeitos transversais tem primeiramente /ɔ/ sem ter /ɛ/. Quanto aos sujeitos da análise longitudinal, um faz a ligação de labial (aos 1;6) antes de coronal (aos 1;8); outro faz a ligação simultânea de /ɛ/ e /ɔ/ aos 1;4; enquanto que, para a terceira criança, as produções de /ɛ/ e /ɔ/ não alcançaram, até o fim da coleta de dados, o número mínimo exigido (três ocorrências em palavras diferentes em uma mesma sessão) para que figurassem em seu inventário fonológico, não podendo, portanto, contar para a decisão da autora. Rangel propõe, portanto, que a labial seja especificada antes da coronal nesse último estágio, ao contrário do que havia sido proposto para os estágios anteriores. Entendemos, portanto, pela análise de Rangel que, para cada camada de [aberto], a criança deva especificar o ponto de articulação novamente, criando subestágios. Mas qual seria a necessidade desses subestágios uma vez que os traços de ponto já são ligados no primeiro estágio para distinguir /a/ de /i/ de /u/: dorsal > coronal > labial, respectivamente? Ou seja, se Rangel assumisse que o ponto de articulação fosse ligado unicamente no primeiro estágio, faltaria aos segmentos apenas a distinção de altura e, enquanto essa distinção não ocorre, temos segmentos flutuantes. Em outras palavras, se no primeiro estágio /a, i, u/ já estão no sistema da criança pela especificação de ponto e altura, [ɛ, e] e [ɔ, o] teriam ainda somente os traços de ponto, e, por isso, a flutuação entre eles, o que explicaria as substituições que ocorrem na fala da criança pela subespecificação de um traço, nesse caso o de altura. Por exemplo, Rangel nos diz que a produção de [ni’ne] para /ne’ne/ aos 1;2 é um

processo de desassimilação, não aventando a autora a possibilidade de essa produção ser resultante da subespecificação de altura nas coronais nesse estágio. Ademais, vale lembrar que para que a desassimilação ocorra é necessário que se tenha o segmento especificado. Do contrário, não se pode esperar que um traço seja desassimilado quanto ainda não se encontra na matriz que representa o segmento.

Finalmente, para a autora, somente por volta de 1;8 (ano; mês) é que a aquisição do sistema vocálico do PB estará plenamente concluída.

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