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FILIAÇÃO INSTITUCIONAL, FILIAÇÃO INTELECTUAL E FILIAÇÃO DE

O processo de desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a democratização do acesso à universidade instaurou a busca de equalização desse processo e, por outro lado, provocou uma explosão demográfica de novos alunos e o ingresso de uma diversidade de estudantes que a universidade não costumava receber anteriormente, dentre os quais, estudantes que trabalham e estudantes que retomam os estudos após vários anos de interrupção.

Com base nessa problemática, Alain Coulon (2008) desenvolveu sua pesquisa fundamentada no questionamento das altas taxas de evasão e de insucesso no ensino superior francês, no período compreendido entre a década de 1980 e 2000, tomando como foco de análise a Universidade Paris-8, onde lecionava, caracterizada como instituição pública de pouco prestígio e de ingresso livre para qualquer aluno. Sua publicação intitulou-se “A condição de estudante: a entrada na vida universitária”, com primeira edição francesa em 1997, e brasileira, em 2008.

Coulon (2008) destaca que o principal problema enfrentado pelos estudantes não é entrar na universidade, mas permanecer nela, discutindo que a democratização do acesso ao ensino superior não foi acompanhada por uma democratização do acesso ao saber. Ao ingressar na universidade, o estudante depara-se com um mundo novo, repleto de novos códigos e desafios, vivenciando múltiplas rupturas que permeiam a complexa transição entre o ensino médio e o ensino superior.

Na busca de compreensão do processo de afiliação ao mundo universitário, Coulon lançou mão da etnometodologia, incluindo observações intensivas dos primeiros dias e semanas dos alunos ingressantes na universidade, conversas informais, entrevistas individuais e coletivas entre alunos de diferentes períodos letivos e análises de diários pessoais de ingressantes. No processo de análise dos dados obtidos, Coulon descreve cada uma das etapas vivenciadas pelos estudantes, que envolvem dificuldades e problemas no processo de afiliação, organizando, sequencial e categoricamente, o tempo de estranhamento, o tempo de aprendizagem e o tempo de afiliação.

Na contribuição dada pela pesquisa de Alain Coulon, tomamos as indicações feitas, como parâmetro para a coleta de dados com os jovens, sujeitos da pesquisa, estudantes da primeira turma do curso Técnico do IMD, sobre o tempo de

estranhamento, que ocorre logo no início do curso, com duração aproximada entre uma a quatro semanas. Nessa fase, as rupturas associadas à nova fase de vida agem como elementos limitadores ou obstáculos, suscitando insegurança e fala de estabilidade. Em princípio, a ruptura emocional envolve a perda da turma do ensino médio, com certa proximidade entre os alunos e sentimento de pertencimento, para a imersão, geralmente provisória, em um sentimento de solidão, como ilustra o seguinte comentário,

SLFL / WEB: - Eu não conhecia ninguém. Conhecia só um garoto, mas ele não era da mesma turma minha. A maioria do povo que eu tinha na sala, meus colegas de sala, hoje em dia, estão nas redes sociais, eu converso normalmente com eles.

Outras rupturas são estabelecidas, de ordem intelectual e cognitiva. Muitos estudantes provenientes de camadas populares enfrentam sérias dificuldades de leitura, interpretação, escrita e, até mesmo, de compreensão do vocabulário dos professores, este último percebido por uma aluna referenciada na pesquisa como uma linguagem extraterrestre.

Além disso, a dificuldade de concentração nas aulas denuncia, por um lado, que esta não é uma disposição natural, mas uma aprendizagem técnica a ser desenvolvida pelo próprio estudante e, por outro, que complexos fatores agravantes cooperam para a falta de concentração: conciliação de estudo e trabalho, deslocamento da residência ou do trabalho para a universidade por longas horas, cansaço decorrente de noites mal dormidas.

Ainda há que referir o consenso dos estudantes que trabalham em torno da falta de tempo cronológico para ler os textos, estudar para as provas e envolver-se em projetos promovidos pela universidade. Rupturas institucionais são também referidas no processo. Os estudantes se referem à diferença entre o espaço de liberdade do contexto universitário e o exercício de controle ainda presente no ensino médio. Se, por um lado, essa tal liberdade permite sensações agradáveis aos estudantes, por outro, muitas vezes, não está combinada com o exercício da autonomia, o que compromete o processo de afiliação.

A pesquisa de Coulon (1995) aponta perplexidade e dificuldade dos estudantes no processo de construção do currículo e dos horários de aulas, já que nem todas as regras do currículo são explícitas com clareza e o estudante precisa saber planejar e

organizar, por conta própria, seus créditos e pendências. A título de exemplificação, no IMD, a proposta de atividades avaliativas respeitava um calendário com datas e horários de início e término para sua execução. A falta inicialmente de organização e planejamento dos estudantes do IMD, foi um aspecto comentado neste trecho da coleta de dados, em 2012. Isso pode ter ocasionado perdas significativas, tais quais as notas baixas referidas no seguinte trecho,

SLFL / WEB: - Todo material quando abria a atividade, eu via que abria e já estava estudando o material para nos últimos dias responder, mas eu fui estudando durante toda semana. Tinha gente que deixava para estudar no último dia, aí acabava não dando conta de responder tudo e aí ficava com uma nota mais baixa.

Pesquisadora: - Aquele sistema de fechar, não é? O horário da postagem das atividades no ambiente virtual.

MCCB / WEB: - É. Até às 23h59 do vigésimo quinto dia após abrir a atividade.

O período posterior é definido com o tempo de aprendizagem, que trata do progressivo processo de adaptação aos códigos locais e às novas rotinas institucionais da nova realidade. Nesse período, o estudante adota uma série de estratégias de ordem cognitiva e institucional que o leva a incorporar novas referências intelectuais, como a competência do uso sistemático e autônomo da biblioteca, como enunciam, a seguir, os jovens participantes da pesquisa,

MCCB / WEB: - A experiência de fazer informática. Eu sempre quis, mas nunca tive. Eu cheguei no zero e aí comecei a evoluir um pouquinho. Tanto eu como algumas pessoas da minha sala. Então como eu morava no interior, lá não tem internet. Dificilmente tem. Chegou internet lá um ano antes de eu conhecer o Metrópole. Eu comecei mais por curiosidade de saber como é que é, como é que funciona a internet e tudo. Mas os meus amigos... Eu posso falar dos amigos. Tem alguns que eu não sabia e eu ia tirar dúvidas. Outros que se juntavam comigo, para perguntar; outros, para tirar dúvidas, e alguns que se eu soubesse alguma coisa, eu falava. Mas toda turma é assim...

SLFL / WEB: - Quando eu entrei no Metrópole, eu não sabia nem o que era programação. Eu só conhecia mesmo aquele que eu estou vendo. Aí quando eu comecei a ver a linguagem de programação “C”, eu me interessei mais por essa área. Pensei assim: Ah, então por trás de um programa sempre tem uma linha de códigos.

O primeiro trecho do segmento analisado explicita a existência anterior de um processo de curiosidade e desejo com relação ao campo da tecnologia da informação,

cujo acesso foi impossibilitado pela falta de recursos da cidade. A aproximação em relação ao objeto de curiosidade suscitou a constituição de um método investigativo, que envolve o desenvolvimento tanto da capacidade de aprender a perguntar, como desenvolver abordagens de aproximação do objeto da dúvida, que, nesse caso, contou com o intercâmbio de experiências e impressões entre pares na busca do conhecimento em questão. Lembrando a importante de significados compartilhados na construção do conhecimento, citada no Capítulo 2, quando abordamos o porquê da técnica grupo focal nessa coleta, possibilitando intersubjetividade.

O segundo trecho do segmento indica o mesmo processo de questionamento, em um movimento interiorizado de diálogo, processo este que constitui o pensamento. Em outras palavras, o processo de construção do pensamento do eu pressupõe a existência de interações sociais estabelecedoras em diálogos, passíveis de internalização. (Capítulo 2).

Coulon (1995) sinaliza, em sua pesquisa na França, que as escolhas de muitos estudantes, especialmente de origem popular, nem sempre são resultado de ponderações racionais. Talvez mais por estratégia de sobrevivência do que por promoção social ou plano de carreira, muitos estudantes escolhem o curso “ao acaso”. A estratégia do acaso indica que estudantes com formação cultural insuficiente experimentam um curso para ver no que vai dar, com a possibilidade em mente de abandono ou mudança de curso, caso nada dê certo.

Em geral, tais experimentações envolvem alternativas menos concorridas de cursos, ainda que a preferência ou o desejo seja diverso. Coulon pondera que o acaso verbalizado pelos estudantes não é propriamente casual, pois as estratégias de escolha são perpassadas por sua história escolar, suas estruturas cognitivas, e sua posição social e cultural. A tese da causalidade provável de Bourdieu (1998) é retomada por Coulon, para levantar a discussão do quanto às condições objetivas desses estudantes impelem as escolhas práticas como respostas adaptadas às suas contingências e circunstâncias para alcançarem seus objetivos, tais como o diploma universitário.

Nesse aspecto, identificamos na pesquisa, a aproximação nas reflexões apontadas na tese de Bourdieu (1998), quando um dos sujeitos na coleta de dados em 2012, evidência sua dúvida sobre a escolha do Curso Técnico do IMD, que possibilitaria uma profissão,

GLSN / WEB: - Quando comecei eu não conhecia ninguém, nem era o que eu queria para mim. No fundo, vou fazer por fazer, mas eu não vou seguir essa área não. Aí comecei fazer algumas amizades, e aí, essa área, como é que é? É ruim? E tal. Aí eu comecei a fazer amizade com o pessoal que gostava e tal, ia falando. Aí até hoje eu mantenho o contato com muitos que tiveram alguns grupos para o congresso, para fazer um trabalho e tal. Mantenho amizade com uns três, quatro.

Apesar do desconhecimento do curso e da área, e da aparente aleatoriedade da escolha por parte do jovem em questão, a possibilidade de apropriar-se dos códigos comunicacionais e das rotinas institucionais, tendo a interação e a vinculação com o outro e suas atribuições de valor e sentido, lugar de destaque para a constituição de um referencial próprio de entendimento acerca do processo vivenciado, foi algo que permitiu que o jovem optasse pela continuidade dos estudos no mesmo campo, em modalidade de ensino superior. Em outro recorte do grupo focal, da coleta em 2012, o mesmo jovem menciona,

GLSN / WEB: - Quando comecei o Metrópole eu estudava no Maristella. Hoje em dia eu faço Ciência e Tecnologia. E é isso. Espero continuar na área de Tecnologia da Informação.

A tese da causalidade provável, anteriormente referida, indica que grande parte do processo de optar pelo ingresso no curso, de maneira ocasional e “para ver no que dá”, esteve, ainda, associada à possibilidade de obtenção da remuneração proposta pela bolsa, envolvendo, com certa frequência, os já mencionados processos de desistência,

MCCB / WEB: - Muita gente desistiu porque não gostou do curso, ou gostou do curso por causa da bolsa. Porque eles não entenderam nada. Comecei a gostar também, é óbvio, da programação aplicada ao objeto, a entender um pouco.

O terceiro período, denominado tempo de afiliação, envolve o êxito do estudante em seu processo de afiliação institucional e intelectual. A afiliação institucional exitosa envolve a interpretação correta das regras, implícitas e explicitas; a habilidade de lidar com as regras e construir um currículo adaptado às suas necessidades pessoais; compreensão e interpretação dos múltiplos dispositivos institucionais que regem o cotidiano da universidade; a capacidade de prever quais

estratégias devem ser implementadas no futuro. É possível observar a situação de afiliação do jovem participante do IMD, através de seu despojamento de circular a partir da organização de si próprio e do estudo,

GLSN / WEB: - O Metrópole, para mim, digamos que desenvolveu muito a disciplina. Porque eu tinha datas, tinha atividades, tinha que entregar nessa data, nesse fim. E autodidata. Estudar só. Então tem o professor, tem o tutor para tirar uma dúvida, às vezes ele dava uma aula, mas não tinha um professor ali todo dia dando aula, escrevendo no quadro...

Pesquisadora Que é a educação à distância, inclusive.

GLSN / WEB: - É, exatamente. Era. Autodidata mesmo. Porque tem que estudar, aprender, tirava dúvida, tinha datas para entregar as atividades. E em que me ajuda na universidade? O curso que eu faço é basicamente português, sociologia e matemática. Aí ajuda muito em matemática, e as disciplinas de programação ajudam demais. Se você já entra sabendo o que vai ver, ajuda muito. É basicamente isso.

A organização do próprio aprendizado pelos sujeitos da pesquisa ocorre de maneira diversa. Enquanto alguns optaram pelo autodidatismo, o estudo pessoal, como anteriormente descrito, outros preferem um sistema de troca de informações e esclarecimento de dúvidas face a face. Independentemente da forma investigativa, é importante ressaltar que,

GLSN / WEB: - Sempre havia aquela troca de informações. A questão é só que “conseguiu fazer?”, “Consegui”, “Como é que faz?”. Mostrar, tentar, explicar. Digamos assim: no começo eu era aquele cara que estava lá, mas estava empurrando com a barriga. Não era o melhor, mas acredito que não era o pior. Ficava ali, não é? Aí depois eu comecei a gostar e minhas notas aumentaram. Aí eu tirava mais dúvidas, mas mesmo assim eu tinha muitas dúvidas também. Tinha muita gente do IFRN na minha sala. Então, querendo ou não, sabiam mais. Aí eu perguntava: e aqui? Como é que eu faço isso aqui? Aí ia aprendendo, aos poucos. Quando eu não sabia também eu perguntava, mas ele se referindo ao tutor – grifo nosso não sabia muito, eu jogava na internet e eu ia pesquisando na internet para conseguir a resposta. Era mais ou menos assim.

Aos poucos, o “como é que eu faço?” Dirigidos ao outro concreto ou virtual foi delineando uma série de escolhas não mais “empurradas com a barriga”. E o exercício da autonomia não esgota a continuidade de trocas, questionamentos e a busca de respostas balizadoras de um percurso.

No plano intelectual os indicadores de afiliação intelectual são: o manejo competente das múltiplas obrigações escolares; a interpretação correta das

expectativas da universidade de seu papel enquanto estudante; os bons resultados nas avaliações; autonomia para identificar e concluir trabalhos não solicitados explicitamente; a capacidade de contestar e julgar a atuação do professor que julgar inapropriada; a capacidade de conciliar suas obrigações escolares de trabalho fora da universidade.

Coulon (1995) conclui sua análise assinalando que o estudante bem sucedido é aquele que se afiliou. Para facilitar esse processo, propõe a construção de uma “pedagogia da afiliação”, capaz de valorizar as possibilidades dos estudantes, ao invés de estigmatizar suas lacunas, na tentativa de favorecer que muito mais estudantes permaneçam no curso. Essa proposta abrange a estrutura física, o número de professores e funcionários, o projeto pedagógico e a capacitação do professor. Negligenciar as questões discutidas significa valorizar a função conservadora e pseudodemocrática da escola, na medida em que adia a inclusão dos excluídos potenciais e legitima a falsa ideia de que o fracasso está localizado nos indivíduos, ao invés de na sociedade e suas políticas.