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Filigranas da Joalheria Contemporânea Brasileira

No documento Joalheria, arte ou design? (páginas 100-107)

3.4 A Concepção da Joalheria na Arte

3.4.1 Filigranas da Joalheria Contemporânea Brasileira

A joalheria contemporânea no Brasil teve alguns precursores, ainda que não se autodenominassem artistas joalheiros, o mais comum era serem chamados de joalheiros de autor. O que os uniam era possuírem um trabalho que se diferenciava do que era produzido pela joalheria industrial, no sentido de privilegiar a forma em detrimento dos materiais utilizados nas joias. Ainda que a intenção da pesquisa seja analisar o estado do campo hoje, a fim de compreender as obras dentro do campo artístico, conforme orientação de Wacquant (2005), vale localizar esse segmento dentro do campo de poder. Para isso, faz-se necessário conhecer alguns aspectos que contribuíram para o momento atual. Ou seja, aqui considera-e a dimensão histórica do campo, para a melhor compreensão do contexto atual.

Portanto, tivemos joalheiros na década de 1950 e 1960, que exerciam a joalheria com mais liberdade, assim tivemos Haroldo Burle Marx72, criador de uma nova forma de lapidação para as gemas coloridas, chamada “forma livre”, ao mesmo tempo em que foi pioneiro em utilizar gemas como água-marinha, citrino, turmalina, berilo, amazonita, ametista, enfim, gemas que na época não tinha valor no mercado joalheiro. Mas foi com o seu irmão, Roberto Burle Marx (1909 -1994), que as peças ganharam o estilo modernista, o qual reflete o ambiente artístico em que viveu.

Outro nome também muito recorrente, quando se pensa em precursores da joalheria contemporânea, foi Caio Mourão (1933 - 2005)73. O seu início na joalheria foi no final da década de 50, mas teve formação em pintura e escultura. Na década de 60, foi quem introduziu o termo de joalheria de arte, tendo sido um balizador para o campo. Em 1963, ganhou o 1º Prêmio Internacional de Joalheria na VII Bienal de                                                                                                                

72VER: http://www.kimpoor-jewellery.com/about_haroldo_burle_marx. 73 VER: http://www.ateliermourao.com.br/caio_mourao.html

São Paulo e, em 1968, trabalhou como designer de joias em Paris, para a marca Pierre Cardin. De volta ao Brasil, no fim de 1969, começou a abrir caminho para o que veio a se chamar arte joalheria. Nesse sentido, é importante observar que Caio como agente do campo da joalheria atuou em duas instâncias distintas, na indústria, como designer e como artista joalheiro. Vemos isso ocorrer com mais frequência na Europa, onde o joalheiro trabalha, simultaneamente, para a indústria joalheira e no seu projeto pessoal de joia. Outro aspecto da trajetória de Caio que chama atenção foi sua participação e premiação na Bienal de São Paulo. Nessa edição da Bienal, em 1963, além de pintura, gravura, desenho e escultura, teve a inclusão da joalheria de arte com a participação de onze expositores, entre eles, Roberto Burle Marx, Caio Mourão e Carlos Augusto Vergara, este último, mais conhecido como pintor. Ou seja, foi uma seção grande dedicada à joia, aspecto incomum e que depois não voltou a acontecer.

Conforme veremos com mais detalhe no capítulo 5, dedicado à joalheria de arte, não havia instituições de formação do joalheiro. Nesse período, imperava o autodidatismo, e para conhecer as técnicas da ourivesaria havia dois caminhos, ou se trabalha em oficina de ourivesaria, conforme fez Virgílio Bahde, um dos nossos informantes, para aprender o ofício, ou se optava por ter aulas em ateliês de joalheiros, como Caio Mourão, Márcio Mattar e o próprio Virgílio ofereceram.

A comercialização da arte joalheria é outro aspecto com muitos entraves, em geral as experiências com o comércio desses artefatos não são muito bem sucedidos, pois ao que tudo indica, o mercado é insignificante para a manutenção desse negócio. Assim, as duas primeiras galerias de joias no Brasil foram a Simetria74 e a Plural75. A Simetria, de acordo com Virgílio, foi a primeira galeria de joias do Rio de Janeiro a vender joias de autor, e representava Caio Mourão, Márcio Mattar, Alfredo Grosso, Rub. Yallouz, além do próprio Virgílio. Em 1987, depois da Simetria ter encerrado suas atividades, Caio Mourão abriu a Galeria Plural em Ipanema, Rio de Janeiro, a qual durou apenas dois anos. Em entrevista com uma das sócias da Galeria, Sonia Santa’Anna, ela conta, que nessa época, houve outras tentativas de criar galerias de joias, mas todas acabaram fechando. No início, o seu sócio foi Caio Mourão e mais outra amiga, que também era contadora, mas a                                                                                                                

74 De acordo com Virgílio Bahde a Simetria teve início de 1982

sociedade não durou muito tempo, eles saíram, e entrou outro, que ficou até o fechamento do negócio. Segue um trecho da entrevista.

“Alguns joalheiros representados pela plural: Caio Mourão, Márcio Mattar, Yvon Piederrière, Alfredo Grosso, Fred Pinheiro, Paula Mourão, Alain Viallon, Ana Luiza Rego, Abner Salustiano, Hilson Cunha, Sonia Sant'Anna. O público achava linda a loja, mas tinha dificuldade em aceitar como joias aquelas peças tão diferentes. Mas havia o grupo que não só aceitava como preferia essas joias, as quais se destacavam mais pela forma do que pelo valor monetário dos materiais. [...]”. (Entrevistada)

Desse grupo de joalheiros, quase todos foram alunos de Caio Mourão. Na década de 70 o seu prestígio era tão grande que chegou a representar a si próprio em novela da TV Globo, “O Rebu”. Alguns de seus ex-alunos também tiveram ateliês com o intuito de fornecer formação na prática profissional, como foi o caso de Marcio Matar, outros se afastaram da joalheria e tempos depois retomaram a atividade, como Alfredo Grosso, em atividade até hoje.

Em termos de profissionalização, de acordo com Rudolf Ruthner, a primeira escola foi em 1969 e partiu da iniciativa da H. Stern, cuja intenção era a formação de mão-de-obra para a indústria, o curso contava com 18 meses de duração e o público era formado por jovens entre 16 e 18 anos. A escola encerrou as atividades em 1998, ano em que Rudolf, mentor da escola, se aposentou. No Rio de Janeiro, depois dessa iniciativa, a formação passou a se concentrar nos ateliês e oficinas. O SENAI abriu o primeiro curso de ourivesaria em 1999. Em 2001 a PUC-Rio criou a pós-graduação em design de joias e, em 2004, a Veiga de Almeida criou uma graduação tecnológica em design de joias, tendo os dois últimos cursos encerrados as atividades. Porém, nesse mesmo período, final dos anos 1990 e início dos 2000, várias escolas, no formato de cursos livres de joalheria, surgiram em várias cidades do país. De forma que, temos pouca formação tanto no nível de graduação, quanto técnico em Joalheria, isto é, o que se encontra com mais frequência são cursos livres, nos quais as ênfases são nas técnicas de ourivesaria.

Em contraste com o Brasil, há uma série de graduações e ensino técnico de Joalheria no exterior. No que diz respeito à arte joalheria, a formação ofertada em algumas escolas da Europa e dos Estados Unidos, está vinculada ao departamento de arte. Algumas escolas, como a de Rhode Island School of Design, sofreu forte influência da “escola europeia”, Otto Kunzli foi um dos professores residentes dessa escola (TURNER, 1996). Mas, ao mesmo tempo, é curioso observar que a formação

da arte-joalheria associada ao departamento de arte, como por exemplo, na ESAD76, em Matosinho, Portugal, o programa possui disciplinas com forte ênfase no Design: (No 1º ano) Fundamentos do Design, (no 2º ano) Metodologias em Design e (no 3º ano) Teoria do Design. O questionamento que se faz não é no sentido de oferecer disciplinas que auxiliem na criação de volumes, na concepção espacial, expertise do design, de fato, mas é, sobretudo, por se ocupar com metodologia de design, instrumento especifico da disciplina do design e muito distinta do que é utilizado no processo criativo artístico. Como se as graduações de joalheria estivessem também no mesmo espaço liminar que a joalheria ocupa.

Virgílio Bahde foi outro joalheiro que teve um papel de mentor de muitos joalheiros atuantes hoje no mercado atual. A trajetória de Virgílio foi um pouco diferente, ele foi aluno da Escola de Belas Artes, da UFRJ, e o aprendizado da joalheria se deu diretamente na prática profissional. Ele é conhecido por sua habilidade técnica, e o fato de ter passado pela indústria lhe conferiu essa perícia técnica. No seu caso, a indústria funcionou como uma escola, após ter adquirido o conhecimento técnico, optou por desenvolver o seu trabalho mais autoral. Virgílio produz e comercializa suas joias até hoje, já teve loja própria, mas atualmente comercializa o seu trabalho em lojas de estilistas e em multimarcas.

Portanto, pode-se afirmar que os precursores da categoria foram devidamente reconhecidos pelas instâncias de consagração, pelas quais os aproximaram da arte. Foram as participações em Bienais e as exposições em galerias de arte, por um lado, e por outro lado, a atuação de artistas visuais produzindo e expondo joias. Nesse período, entre as décadas de 1960 e 1980, vemos a joalheria e a arte numa procura de estabelecer um diálogo franco e aberto, no sentido da joalheria ter participado da maior instância de legitimação da arte. Não obstante, de acordo com Bourdieu, os pressupostos de autonormatividade que cada campo estabelece são alvos de lutas, o que significa que estão sempre em tensão e em transformação. Nesse sentido, temos o depoimento do galerista Thomas Cohn que mostra como os pressupostos da arte podem mudar e estão sempre num embate.

“É só um preconceito, como o racismo e o casamento gay, isso também é. Isto não é porque é adorno... Não! Qual é a ideia na criação de joia? É por aí a coisa, se é uma expressão da pessoa, então é que é. Eu quando galerista eu tentei sempre correr atrás em

                                                                                                               

expandir os limites do meu trabalho. No ano 73, quando a fotografia, o pessoal da fotografia ainda se perguntava, mas fotografia é arte? Hoje em dia é uma coisa natural, mas em 73, fotografia era dúvida grande se era arte ou não era. Se pertencia à arte contemporânea, afinal as pessoas não fazem com os dedos, tem toda uma seria de argumentos contra. Então eu fui à Alemanha falar com o casal Bernd e Hilla Becher, eles faziam fotografias de moinhos ou de casa de operários. Eles moravam em um moinho, eu os visitei em Dusseldorf, estou falando de 40 anos passados. Eu perguntei vocês consideram que estão fazendo arte? Aí ele me respondeu na lata, eu não estou interessado se estou fazendo arte ou não, estou fazendo. Hoje em dia, os grandes expoentes foram alunos dos Becher. Eu trouxe em 85, quando você não via exposições como vê agora, eu trouxe uma exposição de Diane Arbus que deu folha inteira aqui na Folha de São Paulo.” (Entrevista).

Salvo os poucos episódios em que uma galeria abriu espaço para uma exposição de joias, ou alguma publicação do campo da arte se interessou por uma determinada ação da joalheria, de um modo geral, esse caminho é de mão única, só quem está no campo da joalheria se reconhece como pertencente ao campo da arte. Entretanto, alguns trabalhos de arte joalheria elaboram ideias muito próximas da arte contemporânea, se isso é verdade, como diferenciar os trabalhos dos dois campos?

Um dos aspectos mais crítico da categoria da arte joalheria é a exposição e consequente comercialização do trabalho. Segundo Mirla Fernandes, artista joalheira com crescente atuação internacional, nos diz que “existe um mercado bastante específico e limitado para a arte joalheria, que é predominantemente europeu e se distingue do mercado da joalheria comercial, seja ela industrial ou artesanal. Distingue-se ainda do mercado da moda e do acessório.” (Entrevistada). Assim, a inexistência desse mercado no Brasil, impossibilita a seu desenvolvimento para muito dos interessados pela atividade. Na medida em que não há instâncias de comercialização da arte joalheria, não dá para viver com os frutos dessa produção. A trajetória que Mirla77 optou em atuar foi comercializar e divulgar seu trabalho na Europa, onde, inclusive, realizou parte de sua formação. Ao mesmo tempo, Mirla opera como uma representante local do campo, ao promover eventos e criar diálogos com artistas de outros países, e dessa forma, aproxima os artistas locais das questões mais atuais do campo e cria uma ponte com o que ocorre nas regiões onde a arte joalheria é mais consagrada e berço desse microcosmo. Portanto, é na                                                                                                                

77 Mirla estudou joalheria em Pforzheim, Alemanha, na Hochschule für Gestaltung und Technik, como

Europa onde há mais tradição, não só na arte joalheria, como na Joalheria de uma forma geral.

Mirla não está apenas preocupada em agenciar sua carreira, mas também em criar um espaço local para a arte joalheria. Assim, ao se unir com outros artistas e joalheiros a fim de planejar a viabilização da vinda de artistas joalheiros consagrados na Europa e Estados Unidos, ela está simultaneamente travando a luta pelo reconhecimento e delimitação de um campo e a consequente atuação e reconhecimento desse campo.

Por fim, pode-se inferir do que foi dito acima, que a categoria da arte joalheria está em vias de constituição aqui no Brasil. Possuímos algumas instâncias do campo, mas não todas, não temos escolas com uma formação mais estruturada, a falta de espaço de comercialização é o reflexo da quase inexistência de um público consumidor desse tipo de artefato. Tentativas de criação de galerias de joias não faltaram, a última no Rio de Janeiro, foi o “Banquete”, cujo funcionamento se deu entre dezembro de 2007 e março de 2011. De acordo com Elizabeth Franco78, uma

das sócias, as vendas não cobriam as despesas com a loja. Ou seja, ocorreram várias tentativas de comercialização de arte joalheria no decorrer da última década, mas ainda sem o êxito necessário para manter o negócio aberto. Mas esse aspecto não é exclusividade nacional, especialistas de outras regiões do mundo também expressam a preocupação nessa mesma questão. Em uma matéria no Japan Times79, Mio Yamada, editora do jornal, informa que como o mercado da arte joalheria é novo, no Japão só há três galerias que comercializam arte-joalheria, todas em Tókio, mas é interessante observar que todas apresentaram trabalhos na feira de arte de Tókio, em 2012.

Em termos de crítica especializada e publicações sobre o campo, vê-se que aos poucos a produção está em vias de delineação. Em depoimento80, por ocasião do lançamento da coleção que desenvolveu para uma marca Suíça, Caspita, a arquiteta, Zaha Hadid, afirma que "atualmente há mais fluidez entre design de joias,                                                                                                                

78 Entrevista fornecida por Elizabeth Franco em 18/02/2014.

79VER:http://www.japantimes.co.jp/culture/2012/03/29/arts/the-precious-qualities-of-todays-art-jewelry- 2/#.UyOFGT9dWSq

80VER:http://tmagazine.blogs.nytimes.com/2013/12/16/by-design-zaha-hadid-jewelry- designer/?_php=true&_type=blogs&emc=edit_tnt_20131216&tntemail0=y&_r=1

arquitetura e arte. Muito mais polinização cruzada nas disciplinas". Todavia, o depoimento de uma arquiteta consagrada, ou seja, uma profissional emblemática no seu campo e, por conseguinte, no da arte, funciona como um demarcador favorável ou desfavorável na delimitação do estatuto artístico da arte joalheria? A coleção foi lançada na feira de Basel, em Miami, no entanto, em uma pop-up da Colette, loja de moda, e, simultaneamente, na galeria da própria arquiteta, em Londres. Nesse sentido, vale lembra que a primeira exposição de Andy Warhol, já como artista, ocorreu na loja de departamento Bonwit Teller, em Manhattan, NY. Inclusive, alguns artistas do período de Warhol, buscavam abertamente romper e fazer uma crítica ao “ambiente de preciosismo dos museus e galerias de arte criados para refletir a preciosidade da arte que exibiam” (DANTO, 2012, p. 56). De forma que, pode-se considerar que o caminho para romper alguns entraves impostos pelo campo da arte, seria questionar esses mesmos estatutos que legitimam a arte e que são problematizados também pela arte contemporânea.

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