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3. LES ANNÉES: UMA AUTOBIOGRAFIA IMPESSOAL

3.1 LEITURA DE OS ANOS

3.1.10 Filmagem 12: no ritmo da televisão

O décimo segundo documento de registro descrito em Os anos não é, para nossa surpresa, uma fotografia, mas uma filmagem caseira, sendo esta uma nova forma, para a época, de documentar e guardar lembranças da vida cotidiana familiar. Assim, a descrição à qual temos acesso não é feita a partir de uma imagem estática, mas de cenas em movimento. Nesta filmagem, feita pelo pai da família, aparecem uma mulher — Ernaux — e seus dois filhos, constrangidos e desconfortáveis diante da novidade da filmadora. Sem saber muito bem o que fazer, se comportam como se posassem para uma foto que não termina de ser tirada. Desta vez não no verso da fotografia, mas na etiqueta da bobina do filme, consta “Vida familiar 72-73”, indicando que foi gravado no início dos anos 1970. Além da filmadora, que permitia filmar as cenas cotidianas, havia os gravadores, que permitiam gravar a própria voz e os sons ao redor, gerando também o constrangimento de escutar a si próprio pela primeira vez. Sem dúvida esta é também uma forma de falar sobre os avanços tecnológicos da época e sobre a mudança dos suportes para a rememoração.

No contexto do assassinato de Salvador Allende, das manifestações contra Pinochet, da morte de Mao e dos últimos anos da Guerra do Vietnã, acompanhamos, em Os anos, a realidade da entrada cada vez mais expressiva das mulheres no mercado de trabalho, tendo que conciliar com exaustão a maternidade, a vida familiar e a vida profissional, desprovidas de qualquer possibilidade de tempo livre e sem contar com uma divisão igualitária das tarefas domésticas com o marido. Tudo isso devia ser feito pelas mulheres sem que elas deixassem de ser femininas, de cuidar da aparência e de estar na moda. A preocupação com a aparência revela não apenas a mentalidade de uma sociedade patriarcal, como também de uma sociedade identificada com os valores individualistas de que falava Lipovetsky (2005), que vê a alta performance, a juventude e a boa apresentação pessoal como importantes valores a serem zelados.

Acompanhamos também o desenrolar deste movimento, sobre o qual falamos no período da undécima foto, após Maio de 68, que valorizará a individualidade, o prazer, a liberdade e a diferença. Assim, conquistas como o voto aos dezoito anos de idade, o divórcio

90 por mútuo consentimento e a descriminalização do aborto são finalmente alcançadas. Além disso, há uma sólida modificação dos valores morais, sendo possível a partir de então assistir a filmes pornográficos no cinema ou então a cenas até então chocantes, de violência e sexo, em filmes para o grande público. Têm também destaque os shoppings centers, paraíso do consumo, em acordo com os valores de uma sociedade hiperindividualista. Ernaux, assim como Lipovetsky (2005), também discorre sobre a primazia da indiferença entre as pessoas.

Perdíamos o hábito de usar palavras correntes associadas à moralidade, passando a usar outras que julgavam ações, comportamentos e sentimentos de acordo com o prazer, “frustração” e “gratificação”. A nova maneira de se estar no mundo era a “descontração”, ficar à vontade com seu tênis, mistura de segurança de si e indiferença aos outros. (ibid., p. 118)

É nos anos 1970 que Ernaux e sua família, apesar de idealizarem uma vida mais calma no campo, deixam o interior da França e se mudam para a região de Île-de-France, passando a morar nos entornos de Paris. Tal mudança é percebida como uma “entrada completa na modernidade” (ibid., p. 118), havendo uma mudança radical de rotina e estilo de vida para os membros da família. A gama de produtos para comprar aumenta expressivamente, a vida se torna mais acelerada e não conhecer ninguém em uma cidade com tanta gente é visto como algo normal. Com o tempo, todavia, eles se acostumavam com aquela realidade tão diferente da infância de Ernaux após a Segunda Guerra no interior da França.

Ao migrar do interior para a região parisiense, o tempo ficava mais acelerado. O sentimento de duração das coisas não era mais o mesmo. [...] Era como ser transplantado para outro espaço-tempo, outro mundo, provavelmente o futuro. Por isso a dificuldade em nomear, era possível apenas ter a experiência atravessando a área de pedestres aos pés da torre Bleue, no meio de pessoas que nunca se conheceriam e de skatistas. Ninguém nunca pensava no outro, eram milhares de indivíduos morando naquela região e milhões até a região da Défense. (ibid., p. 119- 120)

Ao longo das semanas, da rotina estabelecida e da prática para estacionar o carro, a sensação de estranheza se dissipava. Com espanto, percebíamos que fazíamos parte desta população imensa e informe cujo ruído indistinto, percorrendo as estradas de manhã e à noitinha, parecia nos entregar à realidade invisível e potente. (ibid., p. 122)

A televisão colorida invade então os lares franceses e, diferentemente da televisão em preto e branco, as cores fazem com que a distância percebida entre o mundo da tevê e o mundo real diminua, contribuindo para reforçar diversos processos que vêm sendo progressivamente observados em Os anos: a globalização, com as notícias vindo instantaneamente de toda a parte do planeta para a casa das pessoas; a aceleração do tempo e a contração do espaço, com a oferta

91 cada vez maior e mais imediata de informações; e o consumo, com a difusão das propagandas, direcionadas a diferentes públicos. Assim, a televisão garantia a todos, de crianças a idosos, a possibilidade de se distrair a qualquer momento, havendo aí uma crítica quanto a uma possível alienação, apesar do acesso maior à informação: “O saber comum se alargava, um saber feliz e sem consequências” (ibid., p. 125).

Se há algumas décadas, na passagem dos anos 1940 para os anos 1950, no período abarcado pela quinta foto, era a bicicleta que ditava o ritmo da vida, agora sem dúvida era a televisão que marcava, com sua programação, os períodos do dia. Assim como observamos em relação aos jingles e à rádio, que, com a repetição e a forte presença no cotidiano da população, contribuíam para a formação da memória coletiva, o mesmo ocorre sem dúvida com a televisão. Assim, a repetitividade e o retorno dos mesmos programas, anúncios, publicidades, informações para uma sociedade já mais individualista parecem colaborar mais para a atualização e organização da memória coletiva do que as narrativas orais em torno do almoço, como ocorria antigamente. Não podemos deixar de observar que neste momento a família não se reúne apenas em torno da mesa, como também — e provavelmente por mais tempo — em torno da televisão.

O registro heterogêneo e contínuo do mundo, à medida que o tempo passava, era transmitido pela televisão. Uma nova memória estava nascendo. […] O que ficava eram as propagandas que duravam um tempo maior, as figuras mais pitorescas ou expostas, as cenas insólitas ou violentas […]. (ibid., p. 125)

E, retomando alguns dos personagens emblemáticos em Os anos para a memória coletiva francesa, Beauvoir e Sartre reaparecem, relacionados curiosamente à televisão: Beauvoir aceita finalmente ir pela primeira vez falar na tevê, enquanto Sartre, considerado gagá, ainda se recusava a fazer o mesmo. Poucas páginas depois, morrem Sartre e celebridades como Barthes, Brel e Brassens, também mencionados anteriormente em outras ocasiões em Os anos.

As conversas da refeição em família do final dos anos 1970 narradas em Os anos giram em torno dos novos modelos de carros, das novas compras, das últimas férias e sobre valer ou não a pena comprar uma casa.

No fim dos anos 1970, a memória estava ficando mais curta nos encontros familiares (tradição mantida, apesar da dispersão geográfica de uns e outros). [...] Ninguém mais remexia nas lembranças da guerra e da Ocupação […]. Os laços com o passado se esvaíam. Apenas o presente importava. (ibid., p. 126-127)

Apesar de constatarmos, neste contexto de Os anos, tal primazia do presente e o rompimento com que estamos chamando neste trabalho de experiência benjaminiana, não acreditamos que

92 o que está em jogo no livro seja a morte da memória coletiva. Segue havendo a atualização e a manutenção da memória coletiva, ela está apenas apoiada em outros critérios e fatores, como, por exemplo, na rádio, nas propagandas, nos jingles, na televisão.

Tem destaque também no almoço em família a preocupação dos pais em relação à educação dos filhos, visto que esses estavam sendo criados e educados a partir de novos valores, pautados em maior liberdade. É bastante interessante observarmos, na passagem “Os pais se julgavam os únicos responsáveis pelo sucesso individual da prole. O tempo dos filhos substituía o tempo dos mortos” (ibid., p. 127), alguns aspectos que revelam o imaginário da época conforme ele vem sendo representado em Os anos. O primeiro é a preocupação com o sucesso dos filhos, que se alinha bastante com os valores individualistas, conforme Lipovetsky (2005). O segundo é a ideia segundo a qual os pais seriam os únicos responsáveis por tal êxito, o que aponta para o triunfo do individual sobre o coletivo, visto que não se entende que esta responsabilidade se estenda a mais responsáveis, como o resto da família, a escola, a vizinhança, a sociedade. O terceiro é que, no momento em que o tempo dos filhos (o presente e o futuro) substitui o tempo dos mortos (o passado), temos a confirmação da impressão de que o presente e as projeções para o futuro passam a ser mais valorizados do que o passado. Esta é uma questão que se assemelha bastante com o que o Benjamin descreve em relação à Erlebnis, como se houvesse um desvencilhamento com a tradição, a história e a memória, e um constante choque com a atualidade.

Por fim, a narrativa do período dos anos 1970 em Os anos termina em torno do divórcio “dela”, que sabemos ser a própria Ernaux. O que mais nos chama atenção, nesse sentido, é que o divórcio se dá em um momento em que a separação dos casais já é mais bem aceita socialmente, e é igualmente interessante notar que o fim do casal se confirma com o inventário dos objetos e a separação dos bens adquiridos ao longo de todos os anos juntos (cf. ibid., p. 131). Ou seja, mesmo as relações humanas, como neste caso o divórcio, são compreendidas a partir da perspectiva do consumo, da aquisição e da posse de bens materiais.