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3. LES ANNÉES: UMA AUTOBIOGRAFIA IMPESSOAL

3.1 LEITURA DE OS ANOS

3.1.3 Foto 5: no ritmo da bicicleta

A quinta foto descrita por Ernaux é uma foto em preto e branco de uma menininha de quase nove anos na praia. Como sempre, faz-se referência a essa menina, que sabemos ser Ernaux, na terceira pessoa, por meio do pronome ela. A partir da descrição da pose e da expressão dela na foto, a escritora constata que “a cena mostra um desejo de posar como as estrelas da revista Cinémonde ou de um comercial de protetor solar e de escapar daquele corpo de menina, humilhante, sem a menor importância” (ibid., p. 30). O desejo rememorado é mais uma manifestação da conexão entre memória pessoal e coletiva que estamos buscando retraçar neste trabalho: ao mesmo tempo em que o suposto desejo diz respeito àquela menina específica, pode-se imaginar que se tratava de um desejo compartilhado por toda uma geração, por dizer respeito à cultura, ao imaginário da época e especialmente à publicidade, que também se torna, como veremos, uma espécie de arqueologia da memória. Para além da época, acreditamos que o desejo dessa pré-adolescente de deixar a infância mais rapidamente e experienciar a vida enquanto adulta seja bastante comum dessa idade e perpasse diversas gerações, podendo então ser considerado algo do âmbito da coletividade.

A foto em questão data de agosto de 1949 e foi tirada em Sotteville-sur-Mer, praia da Normandia, na França. É frequente, na menção às fotos ao longo de Os anos, a referência ao verso da foto, onde estão anotados normalmente a data da foto, o local em que foi tirada e eventualmente as pessoas presentes na foto. Acreditamos que se, por um lado, a captação da imagem em que consiste a fotografia é a captação de um presente destinado a virar passado e história, por outro, o verso da fotografia funciona como uma espécie de avesso da história, que narra e se refere a um tempo já definitivamente inscrito no passado.

Ernaux se refere aqui também à dificuldade de saber o que se passava na cabeça dela, da menina da foto, lembrando mais uma vez a ideia de que aquela que narra não é a mesma que já foi um dia ou ainda que o esquecimento é inevitável no processo de recordação, impressões confirmadas pela frase que vem logo a seguir: “Talvez não tenha restado mais nenhuma outra imagem além destas que resistiram à dispersão da memória” (ibid., p. 31). Parece-nos, na frase anterior, que a natureza representada da memória é justamente a da dispersão e do esquecimento, e não a do armazenamento. Mais adiante, um trecho que recupera a mesma impressão e o mesmo estranhamento em relação àquela que foi um dia:

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A única certeza era seu desejo de ser mais velha. E a ausência completa da seguinte lembrança: a primeira vez em que viu uma foto de um bebê de camisola sentado em cima de uma almofada, entre outras fotos idênticas, ovais e de cor castanha, e disseram a ela: “esta aqui é você”, fazendo com que fosse obrigada a ver a si própria naquele ser gorducho que tinha vivido uma existência misteriosa naquele tempo passado. (ibid., p. 32-33)

Ganham destaque, nesse momento, diversas lembranças da escola, “aqueles anos da escola que ficaram para trás” (ibid., p. 31), bastante voltadas para a memória pessoal, fazendo- nos pensar que as crianças estão muito mais centradas em sua esfera individual e no seu arredor, envolvidas com os próximos, do que estarão os adultos, que se conectam mais com os acontecimentos do mundo, com as notícias, com os eventos que costumam ser vistos como históricos: “Sem dúvida, não há nada em sua cabeça que se ligue a acontecimentos políticos e faits divers, àquilo que mais tarde ficará claro que pertence à paisagem da infância, um conjunto de coisas sabidas e genéricas” (ibid., p. 32). Assim, as lembranças dessa época dizem respeito a alguns acontecimentos da escola, brincadeiras com as colegas de aula, passeios feitos em turma, sem deixar de haver menções a lembranças que poderíamos tomar como coletivas, como as competições de ciclismo do Tour de France ou, quando estava em um passeio na praia com uma tia e presenciou soldados mortos na guerra sendo desenterrados para serem enterrados novamente em outro local.

Também devemos nos ater à representação que é feita da França nos anos de infância de Ernaux, já no final dos anos 1940. Devido à dificuldade de locomoção dentro do país e em um tempo em que as viagens não eram acessíveis para sua classe social, a França é narrada como um país enorme, com regiões muito diversas entre si e onde seus habitantes levam suas vidas limitadas a espaços mais restritos: “A maior parte das vidas se desenrolava dentro do mesmo perímetro de uns cinquenta quilômetros. [...] O exótico começava na cidade grande mais próxima. O resto do mundo era irreal” (ibid., p. 33). Além disso, a capital, Paris, era vista como um local inacessível, belo e poderoso, e quem já tivesse, por acaso, colocado os pés na capital era dotado de uma aura de superioridade. No lugar da viagem, a família acompanha o deslocamento dos ciclistas do Tour de France em um mapa colado na parede da cozinha. É possível notar, ao longo do livro, que a percepção da narradora em relação ao tempo e ao espaço muda, e acreditamos que isso se deva não apenas à mudança de idade e consequente visão do mundo, como também ao desenvolvimento e popularização dos meios de transporte, a uma aceleração do tempo e ao progressivo processo de globalização.

62 Neste período englobado pela quinta foto, aparece pela primeira vez a relação das pessoas com as compras e o consumo, outro aspecto que será retomado ao longo de toda a narrativa. Segundo Os anos, no final dos anos 1940, as coisas duravam muito tempo e não eram facilmente descartadas: “Tudo o que havia nas casas tinha sido comprado antes da guerra. [...] Tudo deveria durar por muito tempo. [...] Nada era jogado fora” (ibid., p. 34). Assim, as mesmas panelas eram usadas por muito tempo, mesmo depois de perderem o cabo e o esmalte; as roupas eram remendadas diversas vezes, repassadas para os irmãos; mesmo aquilo que hoje tomamos como descartável, como fezes ou jornais, eram reutilizados: no primeiro caso para adubar as plantas e no segundo caso para embrulhar legumes, secar os sapatos por dentro e se limpar no banheiro.

Vivíamos uma situação de penúria. De objetos, de imagens, de distrações, de explicações para a própria existência e para o mundo, limitadas ao catequismo e aos sermões [...], às histórias que as mulheres contavam de suas vidas e da vida dos vizinhos durante a tarde, tomando uma xícara de café. As crianças acreditavam em Papai Noel por muito tempo e também que os bebês vinham de dentro de uma rosa ou de um repolho. (ibid., p. 34-35)

Isto é, não só as viagens se davam em um espaço mais restrito, como também circulavam em um espaço mais limitado as histórias e as notícias. Era uma época em que o compartilhamento das narrativas e das crenças também ecoava mais. Por fim, Ernaux menciona outros aspectos relacionados à sensação da passagem do tempo na época, como o fato de a vida ser pautada por “um ritmo regular”, em que o silêncio estava bastante presente, em que a bicicleta media a velocidade da vida e em que se vivia muito próximo à merda (cf ibid., p. 35). Assim, começamos a notar que a narrativa de Os anos revela que a memória também está ligada à velocidade e ao ritmo da vida. Uma vida circular, uma vida em que as coisas são reaproveitadas, é uma vida mais lenta, o que contrastará, como logo perceberemos, com as formas de narração da vida acelerada do pós-guerra.