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8. CIÊNCIAS NATURAIS E

2.2.2 Filosofia e Psicologia

Filosofia e Psicologia ocupam, juntas, a terceira posição entre as obras traduzidas na Itália e no Brasil. Enquanto a Itália tem 20 publicações brasileiras, o Brasil conta com 173 publicações italianas nesses trinta anos de corpus. Dentre as obras brasileiras traduzidas na Itália chama-nos a atenção a presença do Espiritismo, categorizado como Filosofia ou Psicologia pelo Index Translationum. De fato, a prática espírita é tema central de 18 das 20 publicações brasileiras na Itália nessa divisão. Inicialmente causou-nos estranhamento que a produção não seja classificada dentro de “Religião e Teologia” quando áreas como Ecologia (ainda que em contexto ligado à religião) lá se encontrem. Estaria o Index Translationum antepondo a religião católica face a outras religiões? Ou ainda, estaria desconsiderando outras religiões como pertencentes a essa classificação?

Além de a temática espírita ser considerada fora do contexto religioso, restava-nos ainda a questão: por qual razão o Index Translationum a classifica como Filosofia ou Psicologia? Por termos nos deparado, em princípio, com esse questionamento, buscamos entender como o Espiritismo é concebido por Allan Kardec, um dos maiores responsáveis pelo seu estudo e divulgação. Em “O que é o Espiritismo”, Kardec argumenta que o mesmo “é, ao mesmo tempo,

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47 Conforme Núcleo de Estudos José Comblim. Disponível em:

<http://www.unicap.br/comblin/?page_id=31>. Acesso em: 2 nov. 2016. 48 Conforme página dedicada aos 80 anos de Carlos Mesters. Disponível em

<http://mesters80anos.blogspot.com.br/p/aprendi-com-mesters.html>. Acesso em: 2 nov. 2016.

uma ciência de observação e uma doutrina filosófica” (KARDEC, 2013, p. 40). A partir dessa colocação, somos estimulados a repensar a concepção inicial para o termo. Por que pensaríamos o Espiritismo enquanto religião se o próprio Kardec o define como ciência ou doutrina? Uma das possibilidades seria o fato de que no Brasil seus adeptos vivem o Espiritismo como muitos fiéis vivem a religião. A pesquisadora Sandra Jacqueline Stoll, da Universidade Federal do Paraná, no artigo “A apropriação cultural do Espiritismo no Brasil” (1998) explica que a bibliografia sobre Espiritismo no Brasil indica diferentes interpretações para a grande difusão da doutrina no país, como por exemplo:

1) a familiaridade do cidadão brasileiro frente às práticas mediúnicas já experimentadas através das crenças de origem africana;

2) aproximação das virtudes cristãs através do legado de Chico Xavier.

Efetivamente, quando se discorre sobre o Espiritismo no Brasil, é difícil dissociar o médium mineiro da doutrina. Em seus noventa e dois anos, Chico Xavier psicografou cerca de 412 obras segundo a Federação Espírita Brasileira (FEB), tornando-se o maior expoente do Espiritismo no Brasil e tornando-o próximo da população brasileira através de suas publicações, uma afinidade que associará sua imagem humilde e filantropa à imagem da própria doutrina. A conduta benevolente de Xavier representa para Stoll um acercamento ao catolicismo quando, assim como nos votos católicos, prega o desapego material, a renúncia a projetos pessoais como lazer e casamento e doação integral de si em prol do coletivo. Tal verossimilhança, segundo ela, não é percebida pela maioria dos estudiosos. Observemos o parecer de Galetta e o de Stoll sobre este fato:

[...] è proprio in Brasile che lo spiritismo kardeciano ha acquistato un carattere molto più religioso, a causa della fusione tra cattolicesimo popolare, pratiche spiritiche e sistemi di credenze popolari autoctone, nonchè della sua iniziale assimilazione da parte delle classi sociali più umili, data la portata di riscatto e di crescita spirituale individuale insita nella pratica del movimento, attraverso la quale gli adepti effettuano una sorta di “addestramento mistico”

fortemente suggestionante. (GALETTA, 2016, p. 44).

Considero que uma das lacunas dessa literatura consiste justamente no fato desta não dimensionar como o imaginário e as práticas católicas impactaram sobre o espiritismo, influenciando, especialmente, o modo de expressão da religiosidade espírita no Brasil. Questão que nos remete à problematização da reinterpretação cultural: considerar a especificidade local do espiritismo como resultado de uma suposta predisposição “mística” e/ou “mágica” do povo brasileiro significa relegar a um segundo plano certas relações de poder inerentes ao campo religioso. (STOLL, 1998, p. 48).

De fato, a pesquisadora atenta que as relações de poder inerentes ao campo religioso (e em campo editorial, em geral, devido às instituições), não podem ser ignoradas. Como vimos, somente recentemente as crenças com origens africanas foram homologadas no currículo escolar, o que revela sua longa trajetória marginal. Não seria justo afirmar que a população brasileira não tinha contato com as práticas africanas, mas seu segregamento forçado pode ter sido uma das causas pelas quais o Espiritismo (em vias de reconhecimento) inclinou- se às práticas cristãs, estas amplamente legitimadas. Possivelmente a questão da localização do Espiritismo (no estranhamento de sua classificação em Filosofia/Psicologia no Index Translationum) derive justamente desse paralelismo à religião ocorrido no Brasil.

De todo modo, o Espiritismo no Brasil, seja apoiado nas religiões de origem africana, seja refletido nos valores cristãos, não foi introduzido no país de forma a substituir o cenário espiritual existente até então. De fato, para Stoll, ao contrário do que ocorrera na França, o Espiritismo se consolidou no Brasil por ter sabido apropriar-se da realidade corrente na sociedade brasileira (STOLL, 1998, p. 53). A questão da denominação e do pertencimento, no entanto, é muito mais complexa do que este trabalho poderia suportar e poderia ser melhor investigada pelos acadêmicos da área. A investigação do corpus nos possibilitou, contudo, perceber que a literatura espírita brasileira (principalmente a mediúnica de Chico Xavier), possui certa receptividade dentro do sistema literário italiano.

Por outro lado, as obras de filosofia e psicologia italianas traduzidas no Brasil não se encontram tão próximas à temática espiritual. O autor mais traduzido, Battista Mondin, concentra suas obras em torno da filosofia conceitual, sem muitas aberturas como em Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores, obras (1981), publicado 4 vezes no período estudado. Mondin é seguido por Antonio Meneghetti, fundador da Ontopsicologia e divulgador da mesma em diversos países do mundo. Apesar de a Ontopsicologia não ser considerada pelo Conselho Federal de Psicologia, sua prática repercute em outros campos do conhecimento no Brasil, um dos países que, junto à Rússia, melhor recebeu a proposta do italiano. No intuito de fazer conhecido o que chama de “ciência”, Meneghetti escreveu diversos livros, rapidamente traduzidos ao português com a ajuda de seus seguidores. A produção científica sobre a Ontopsicologia no país cresceu tanto que existe no interior do Rio Grande do Sul a Antonio Meneghetti Faculdade (AMF), inaugurada em 2008 e que ministra cursos de graduação em Direito, Administração, Sistemas de Informação, dentre outros. A faculdade, em sua página na internet, rebate as acusações de que a Ontopsicologia não seja considerada pelo Conselho Nacional de Psicologia, alegando que este nunca fora seu propósito. Reconhecida ou não, segue crescendo no Brasil e consequentemente, atraindo adeptos das diversas áreas, o que, consequentemente, movimenta o mercado da tradução.