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3.3 FORMAÇÃO DO EDUCADOR MUSICAL: CONTINUADA E CONTÍNUA

3.3.2 Filosofia para “ser” educador musical

Delimitando os campos, sem que isso gere hiatos abissais, mas apenas tomando consciência da pertinência de atividades de cada profissional: um educador musical, seja ele professor acadêmico ou exercendo atividades de educação em outros níveis de ensino da música, não necessariamente deverá ser um filósofo. Um filósofo tem seu campo de atividades bem definido e diferente do campo de atividades do educador musical. Mas ambos deverão desenvolver atividades pertinentes à filosofia (contemplação, reflexão e comunicação), ainda que não exclusivas desta, e alguns educadores musicais poderão se dispor a realizar atividades específicas da filosofia (como a criação de conceitos), ainda que essa atividade não seja sua exclusividade.

Deleuze e Guattari citam Platão para falar do ato de “contemplação”: “Platão dizia que é necessário contemplar as Idéias, mas tinha sido necessário, antes, que ele criasse o conceito de Idéia.” (2010, p. 12). Transpondo esse raciocínio, como poderá um educador musical afirmar: “É necessária a educação musical para o indivíduo” se antes, ele não tiver um conceito de “educação musical”? Como ele poderá falar, defender, valorizar, no universo que seu trabalho alcança, seus saberes, conhecimentos, ações educativas e musicais, se ele não souber de fato, quem ele é dentro de um conceito? Gallo (2000) explica que um conceito tem

uma “autoria”, um pertencimento a alguém responsável pela concepção ou ressignificação, e está vinculado aos processos mentais de construção daquele que o elaborou:

[...] todo conceito é necessariamente assinado; cada filósofo, ao recriar um conceito ressignifica um termo da língua com um sentido propriamente seu. Podemos tomar como exemplo: a Idéia de Platão; o cogito de Descartes; a mônada de Leibniz; o nada de Sartre; o fenômeno de Hursserl; a duração de Bergson... A assinatura remete ao estilo filosófico de cada um, à forma particular de pensar e de escrever. (p. 54. Grifos do autor.).

Em Educação (como em outras áreas) conceitos são utilizados, reinventados, ressignificados, modificados o tempo inteiro. Um conceito pode alcançar a simpatia de muitos e importantes representantes de diversas área de conhecimento, ou pode ser concebido e utilizado de modo mais particular, mais específico, direcionado a determinado contexto de modo singular. Um exemplo disso é o conceito de “conscientização”, vastamente utilizado por Paulo Freire. Ele se apoiou de tal maneira nesse conceito para colocar suas reflexões e teorias sobre Educação que muitos pensam que o conceito faz parte de sua teoria, ao que ele sente necessidade de esclarecer:

Acredita-se geralmente que sou autor deste estranho vocábulo “conscientização” por ser este o conceito central de minhas idéias sobre a educação. Na realidade, foi criado por uma equipe de professores do INSTITUTO SUPERIOR DE ESTUDOS BRASILEIROS por volta de 1964. Pode-se citar entre eles o filósofo Álvaro Pinto e o professor Guerreiro. Ao ouvir pela primeira vez a palavra conscientização, percebi imediatamente a profundidade de seu significado, porque estou absolutamente convencido de que a educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade.

Desde então, esta palavra forma parte de meu vocabulário. Mas foi Hélder Câmara quem se encarregou de difundi-la e traduzi-la para o inglês e para o francês. (FREIRE, 1979, p. 15).

Em Educação Musical, não é simples estabelecer um conceito que seja aceito por todos. A própria concepção de ensino da música tem se mostrado ampla, por vezes controversa, entretanto, não é certo que haja uma real necessidade de que a área de Educação Musical necessite de conceitos unânimes. O conceito de música não é unânime, o de professor de música também não, tampouco o de educação musical e do que é ser educador musical. Mas isso faz parte dos saberes que lidam com diversidade cultural, com entendimentos regionais, com construções de práticas e saberes em épocas nas quais os conceitos são muito específicos. Tudo isso faz parte, de modo especial, de uma área de conhecimento que lida com arte, cultura e educação, ou seja, uma área plural por si só.

Seria ir de encontro ao pluralismo orgânico, natural da área de educação musical, querer massificar cabeças pensantes, impregnadas de ideias oriundas de experiências tão únicas para cada pessoa, que talvez seja difícil que outro as conceba da mesma forma, com conceitos impostos só para preencher uma necessidade de conceituar. Então, para que serve a discussão sobre o conceito? Não diria que serve para criar um único conceito, mas para criar conceitos que articulem discursos fortes sobre o ofício e o profissional de educação musical, bem como suas práticas e princípios, seus valores, suas possibilidades e, principalmente, para tornar o conceito bem claro para quem o utiliza ou está sendo submetido a alguma ação relacionada com esse conceito.

Na abertura do texto “Educating Musically”, Bowman cita uma frase de Wittgenstein42: “Será que é mesmo sempre uma vantagem substituir uma imagem indefinida por uma imagem de contorno delimitado? Não é exatamente a indefinida que você precisa frequentemente43?” (2002, p. 63). Isso me faz pensar (como tantos outros educadores musicais já pensam sobre isso) que ter um contorno tão preciso, que tange ao concreto, aos conceitos que concernem aos termos e práticas da Educação Musical, seria anular as singularidades de percepções e compreensões sobre Educação Musical oriundas das idiossincrasias de experiências musicais, culturais, contextuais que os educadores musicais têm capacidade de desenvolver. A questão aqui não é o quanto um conceito é forte em si mesmo, mas o quanto ele é forte para o educador musical. A questão não é que um conceito sobrepuje outros, mas que o consenso sobre alguns aspectos seja estabelecido e fortalecido sem que, com isso, se elimine as possibilidades de particularidades e identidades do pensar e propor educação musical.

Neste caso, a força dos discursos proferidos pelos educadores musicais a respeito da prática, valor e função da educação consiste não num discurso único, igualitário (totalitário) e homogeneizante, mas na presença de consensos que serão fortalecidos em consonância com as singularidades de cada prática e de cada educador musical “pensante”. O fortalecimento se encontra na prática que reflete o discurso, no discurso que traduz o pensamento. Quanto mais fielmente se consegue traduzir e realizar a educação musical que se pretende que exista, mais fortes serão os conceitos de educação musical. A força consiste em colaborar conscientemente para o consenso, não negligenciando as particularidades, mas atenuando as imposições que são de algumas cabeças (inclusive a própria) sobre uma área de enorme abrangência de fazeres, e isso inclui o respeito ao outro, a outras práticas e fazeres.

42Wittgenstein, L. Philosophical investigations. Trans. G. E. M.. Anscombe. 1976. New York: Macmillan.

43 No original: “Is it even always an advantage to replace an indistinct picture by a sharp one? Isn't the indistinct one often exactly what you need?”