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B.2.2 - A UNIÃO DOS MARCOS: UMA CONVERSÃO DE VALORES

A matéria, pode-se assim analisar, usa o processo da união dos marcos (o fim do marco oriental e a adoção do marco alemão por toda a república) para traduzir valores sociais, culturais e políticos envolvidos no processo de reunificação.

A narrativa é aberta com a música da Sinfonia número 9 (An die Freude, a "Ode à Alegria), de Beethoven, sobre cenas de pessoas quebrando o Muro com as próprias mãos. A música é o artifício que leva o espectador ao local de onde se fala, o "lá" da narração. O repórter abre o texto dizendo que "lá", no coração de Berlim, "...os marcos ocidentais esperam..." pelos alemães orientais, autorizados a converter o dinheiro deles, do regime socialista que perdia o valor, por notas ocidentais, que não só mantinham a valia como se expandiam naquela operação. Com isso, a narração apresenta o lugar dos acontecimentos como distante de nós: um é um país rico, onde o dinheiro espera pelos cidadãos (vejam só!) e o outro é um país falido, onde o dinheiro que as pessoas trazem no bolso deixa de valer, de uma hora para a outra. Esta diferenciação, feita logo na abertura, indica que o repórter julgou necessário explicitá-la, que a situação econômica e financeira das duas repúblicas não era um pressuposto para os espectadores brasileiros, como o era para o documentário dirigido ao público alemão abastecido de notícias diárias sobre esta condição.

A narração não pode desperdiçar tempo. Logo na sequência, o repórter apresenta um grupo de alemães orientais que "chorava o enterro do país".

O uso do termo "enterro" pode ser interpretado como a imagem imediata que tenta explicar toda a intenção da narração: mostrar, rapidamente, que um país deixava de existir por estar doente, podre, incapaz de prosseguir, ao contrário do que a ideologia marxista profetizava. A imagem condiz com a alusão de Michel de Certeau, em "A Escrita da História", de que "a historiografia separa seu presente de um passado", considerando morto o período anterior e outro o período que se inicia, sendo assim um corte postulado de interpretação, já que se constrói a partir de um presente. Neste sentido, a imagem do trabalho brasileiro se aproxima do documentário alemão, que também apresenta a RDA como "morta", mas os dois se diferenciam na forma e nos pressupostos de cada um. A imagem brasileira é simplista: usa o termo "enterro" como pílula instantânea para o entendimento de que um país morria. E ponto final. A narrativa já não fala mais nisso, segue na mesma direção, mas com novas apresentações. O documentário alemão, ao contrário, se detém aí e mostra como os alemães lidavam com isso, como colocavam em prática esta dupla situação de luto e adesão a uma nova república, trata dos problemas cotidianos, da burocracia, do comportamento dos cidadãos diante da necessidade de agir. Em resumo, o documentário alemão não mostra apenas que um país morria, mas como os alemães "imaginavam" a nova nação que nascia. Nação aqui entendida no conceito "uma comunidade política imaginada, limitada e soberana", apresentado por Benedict Anderson.21

A matéria se constrói, daí prá frente, com uma sequência de situações que se chocam, mostrando o desmantelamento da República Democrática da Alemanha em seus últimos dias. Assediado pela imprensa, um casal beija notas de

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cem marcos e sorri. No calor da metonímia, o dinheiro forte da Alemanha Ocidental pode acabar sendo tomado como símbolo do dinheiro de todo o ocidental, ou seja, do capitalismo, relegando, por um momento, as imensas diferenças que separavam o marco alemão do cruzeiro brasileiro, do peso argentino ou do sol peruano, igualmente ocidentais.

Da alegria de se possuir uma moeda forte, o roteiro coloca no ar o busto de Karl Marx fixado em frente ao prédio da STASI, a polícia política e secreta da RDA. O texto trata de dificuldades: "No antigo quartel general da odiada polícia secreta, a STSI, o rock varou a noite". A alegria de se poder curtir música no antigo prédio do ódio é interrompida pelas próximas frases, que trazem termos de comemoração, como "festa" e "cerveja" e tocam no problema do abastecimento de bens de consumo que o sistema socialista vivia: "Na festa, o marco oriental valia até de madrugada, mas a cerveja acabou antes".

Para o lado ocidental, ao contrário, a imagem é a eficiência: "De manhã, nos bancos, muito movimento e eficácia. As pessoas eram atendidas em menos de cinco minutos". Este recorte é citado e comentado pelo repórter para confirmar o estereótipo do alemão ocidental para os brasileiros: o do cidadão organizado e eficiente. O trabalho correto e rápido dos bancos, que é destacável para o Brasil, é pressuposto para os alemães.

Trechos do muro da parte oriental viram galeria de arte denotam uma radical mudança de comportamento: a criatividade, as cores, a liberdade chegam aos pontos intocáveis do socialismo. Caminhões chegam do ocidente carregados de mercadorias para lotar as prateleiras do oriente. O ritmo do revolver remarcador de preços nos supermercados (uma imagem tão familiar aos brasileiros) mostra

que a fartura tem seu preço, mas a escassez está morta: quem for esperto ou esforçado, em síntese, quem vencer na vida agora vai poder comprar, consumir. A alegoria que encerra a matéria é a do Muro sendo destruído, a mesma que abriu a reportagem. Ela é a conexão de volta para o mundo atual (inclusive dos brasileiros, que não têm o Muro de concreto de pé) e amálgama da narração: o Muro morreu e o negócio agora é o capitalismo: "... ao lado do Check Point Charlie, hoje uma rua livre, o Muro vendido aos pedaços está cada vez mais banguela".

C - O GLOBO REPÓRTER

C.1.1 - TRANSCRIÇÃO DA TERCEIRA MATÉRIA

Reportagem de televisão sobre a queda do Muro de Berlim e a travessia dos alemães orientais para o ocidente, exibida pelo GLOBO REPÓRTER, às nove e meia da noite de 16 de novembro de 1989, pela Rede Globo.

Duração: 16'34 (dezesseis minutos e trinta e quatro segundos). Repórter: Sílio Boccanera.

APRESENTAÇÃO (Cabeça):

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